quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Relaxe


Bolsonaro, o inimputável

Estado é laico mas o presidente da República não é, e vai usar sem cerimônia as igrejas evangélicas para recolher as 491 mil assinaturas necessárias para criar seu novo partido, a Aliança pelo Brasil. O bispo Robson Rodovalho, da Confederação dos Pastores, e o deputado Silas Câmara, da Frente Parlamentar Evangélica, já botaram mãos à obra. Em tempos normais, num país normal, esse processo iria desembocar no mínimo numa impugnação do registro da legenda criada dentro de igrejas, entre uma oração e outra, a partir de assinaturas obtidas pelos pastores de constrangidos fiéis. Só que não. No Brasil de hoje, está ficando tudo muito natural.

Pouca gente parece ter se chocado também quando Jair Bolsonaro, na manhã desta quarta, submeteu à pequena platéia que o festejava no portão do Alvorada a decisão sobre vetar ou não o fundo eleitoral de R$ 2 bilhões para as eleições de 2020 que acabara de ser aprovado pelo Congresso: “ Veto ou não veto?”, indagou o presidente, para ouvir, obviamente, o que queria: “vetaaa!!”.

Sem dizer com todas as letras se vetará o fundo, o que deixaria todos os partidos na mesma situação de seu projeto de Aliança — sem dinheiro para a campanha municipal — citou o velho adversário PT e o neodesafeto PSL: “O PT vai ganhar R$ 200 milhões para fazer campanha no ano que vem. Aquele pessoal do PSL lá, que mudou de lado, também vai pegar R$ 200 milhões. Se quer fazer material de campanha caro, não vou ajudar esse cara, pronto".

Quando é que alguém vai explicar a Bolsonaro que o presidente da República não foi eleito para “ajudar” ninguém com os atos legais que lhe cabem por força do cargo? A lei que, mal ou bem, criou o fundo eleitoral tem que ser cumprida. A Constituição prevê que, ao presidente, cabe governar dentro dos princípios de transparência, probidade e impessoalidade previstos na Constituição. E ponto final. Mas parece que Bolsonaro ainda não entendeu isso, embora outro dia tenha recuado na decisão de excluir o jornal Folha de S.Paulo de uma licitação federal ao ser alertado de que o tratamento discriminatório poderia lhe render uma acusação por crime de responsabilidade — que pode até resultar em impeachment.

Bolsonaro caça problemas com vontade e velocidade superiores às de todos os seus antecessores juntos — e olha que teve gente complicada ali naquele Planalto nos últimos trinta anos. Imagine se algum deles tivesse resolvido nomear o filho como embaixador do Brasil nos Estados Unidos? Ou trocado desaforos com outros chefes de Estado e de governo? Ou ter seus parentes no alvo de uma investigação como o caso Queiroz e resolver interferir no Coaf, na Receita e na PF? Ou mandado tirar os radares de velocidade das estradas? O mundo lhes cairia na cabeça por muito menos — em alguns casos, até caiu mesmo.

Mas o atual presidente da República, quase completando um ano de mandato, parece ter conquistado uma certa inimputabilidade política, semelhante a que se dá, penalmente, aos índios ou a pessoas que sofrem das faculdades mentais. Pode falar todas as bobagens do mundo, e também praticar muitas delas, sem que nada lhe aconteça no âmbito político ou jurídico.

Difícil imaginar até quando irá esse estado de coisas. Possivelmente, enquanto durar a fé do PIB e das elites na retomada do crescimento da economia e na agenda de Paulo Guedes. Ou enquanto durar a paciência do povo.

Bolsonaro trata fundo eleitoral a golpes de hipocrisia

Conhecido por suas frases inspiradas, Tancredo Neves dizia que "a esperteza, quando é muita, come o dono". Jair Bolsonaro parece exagerar na esperteza quando insinua que pode vetar o fundo eleitoral de R$ 2 bilhões aprovado na noite de terça-feira pelo Congresso. O presidente arrancou aplausos da claque que foi aos portões do Alvorada para festejá-lo. Mas a insinuação é um flerte com a hipocrisia.

Deputados e senadores ensaiaram uma temeridade. Queriam converter o fundo eleitoral de 2020 num fundão de R$ 3,8 bilhões. Houve forte reação. De olho nas redes sociais, Bolsonaro sinalizou que vetaria. A contragosto, os parlamentares recuaram. Numa sessão tumultuada, com muita lavagem de roupa suja, destinaram R$ 2 bilhões em verbas públicas para a eleição de vereadores e prefeitos. 



Essa cifra de R$ 2 bilhões não caiu do céu. Constava da proposta de Orçamento da União preparada pela equipe econômica do governo para o ano que vem. Foi avalizada por Bolsonaro numa fase em que o presidente ainda estava filiado ao PSL, partido que ficará com a maior fatia do bolo: R$ 202,2 milhões pouco acima do PT, o segundo maior beneficiário, com R$ 200,6 milhões."

Agora, Bolsonaro cita o PT e o PSL para declarar: "Se quer fazer material de campanha caro, não vou ajudar." Ora, se queria uma campanha mais barata, Bolsonaro não deveria ter referendado o Orçamento que anotou R$ 2 bilhões. Essa reação tardia, que chega depois de o presidente ter deixado os quadros do PSL, soa como populismo barato de alguém que cospe num prato no qual já não pode comer. Vivo, Tancredo Neves farejaria uma reação do Congresso. E repetiria: "A esperteza, quando é muita, come o dono".

O triste Natal da família Bolsonaro sob o estigma da corrupção

Há mais de um mês, auxiliares do presidente Jair Bolsonaro que o procuravam para despachar ou tão somente jogar conversa fora ouviam dele que estava preocupado com o seu filho mais velho, o senador Flávio, que abandonara o PSL para embarcar na aventura do pai de construir um novo partido, o Aliança pelo Brasil.

Dos seus quatro filhos homens, Flávio é o mais introspectivo, o mais tímido, o mais ponderado. Sempre foi. Ao contrário dos irmãos Carlos, o vereador, e Eduardo, o deputado federal, Flávio se deixa abater quando desafiado. E mais abatido se tornou desde que começou a ser investigado por suspeita de corrupção.

Bolsonaro respirou aliviado quando o ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, suspendeu os inquéritos abertos no país com base em informações fiscais sigilosas compartilhadas sem prévia autorização judicial, o que beneficiou Flávio. Mas quatro meses depois a decisão de Toffoli foi revogada.

Então Bolsonaro passou a temer que Flávio pudesse ser preso. Era o que repetia nos seus desabafos. Até que há uma semana ele teve a certeza de que algo poderia acontecer com Flávio. Foi quando se antecipou ao que estava por vir, autorizou Carlos a disseminar a informação nas redes sociais e preparou-se para o pior.


Não foi desta vez. Mas o que aconteceu ontem marcará para sempre o final do primeiro ano de governo do mais improvável dos presidentes brasileiros. Estreitou-se o cerco a Flávio e ao seu ex-motorista Fabrício Queiroz. Mas não somente a eles, também a Carlos e a uma ex-mulher de Bolsonaro.

Todos estão sendo investigados por crimes de peculato, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio e organização criminosa. Bolsonaro é citado por ter recebido dinheiro de Queiroz. Parte do dinheiro, que Bolsonaro atribui a uma dívida, foi depositado na conta de Michelle, sua atual mulher, a terceira.

Bolsonaro encerrou mais cedo seu expediente no Palácio do Planalto para reunir-se no Palácio da Alvorada com Flávio, seu advogado e Eduardo. Durante o dia, evitou os jornalistas. Deu ordem para que seus ministros não comentassem o caso. Orientara os filhos a não escreverem nada a respeito nas redes sociais.

Um dos ministro, o general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, aproveitou uma solenidade no Palácio do Planalto para tentar baixar a tensão e alegrar Bolsonaro. “Em que pesem as críticas infundadas, presidente, o senhor está arrebentando”, disse. E mais: “Esses olhos azuis que conheci em 1973”. Não adiantou.

No relatório em que justifica a operação policial de ontem, o Ministério Público do Rio arrola 23 ex-assessores de Flávio da época em que ele era deputado estadual. Eles devolviam parte do salário que recebiam. Desses, 10 moravam em Resende, onde os Bolsonaro moraram. E dos 10, 9 são parentes de Ana Cristina Vale.

Que vem a ser... A mãe do filho mais novo de Bolsonaro, Jair Renan. Pelo menos 13 dos 23 ex-empregados do gabinete de Flávio fizeram 483 depósitos ou transferências bancárias para a conta de Queiroz em 11 anos. Foram R$2,6 milhões aproximadamente. A esse tipo de manobra dá-se o nome de “rachadinha”.

Pesa também contra Flávio a acusação de que ele lavava o dinheiro arrecadado por Queiroz por meio de uma loja de chocolate que tem com um sócio em um shopping da Barra da Tijuca. São sócios iguais. Mas entre 2015 e 2018, Flávio tirou da loja quase o dobro do lucro tirado por seu sócio – pouco menos de R$ 1 milhão.

O policial militar Diego Sodré e a empresa dele, Santa Clara Serviços, fizeram depósitos bancários na conta da loja de Flávio. A Santa Clara e Sodré foram alvos de uma investigação da Corregedoria da Polícia Militar sob a suspeita de oferecer serviço de segurança privada ilegal em Copacabana.

Sodré pagou uma das prestações de R$ 16.564,81 para aquisição de um apartamento de cobertura no bairro de Laranjeiras. O boleto estava em nome da mulher de Flávio, Fernanda Bolsonaro, proprietária do imóvel, assim como o marido. A ligação dos Bolsonaro com milicianos passa também por Danielle Mendonça.

Ex-funcionária do gabinete de Flávio, ela foi casada com Adriano Nóbrega, acusado de pertencer ao grupo de extermínio Escritório do Crime. Está foragido. No celular apreendido de Daniele há mensagens comprometedoras para ela e Queiroz. Numa, ela se diz “incomodada com a origem” do dinheiro que recebia.

Em outra mensagem, é Queiroz que a adverte: “Tá havendo problemas. Cuidado com que vai falar no celular”. Numa terceira, datada do ano passado, Queiroz escreveu: “Não querem correrem (sic) risco, tendo em vista que estão concorrendo e a visibilidade que estão". Foi o segredo mais bem guardado da campanha do clã.

Papai Noel do Brasil


O que aprendi no primeiro ano de Bolsonaro

Abaixo os comunistas da China e Venezuela, ouvia-se por toda parte no fim de 2018. "Nossa bandeira jamais será vermelha", era o lema. Um ano depois, devo constatar, o mundo está bem diferente.

Nesse ínterim, os comunistas chineses se tornaram amigos íntimos do Brasil, até mesmo ajudando o governo Bolsonaro a evitar que o megaleilão do pré-sal se tornasse um megafracasso. E aposto que o grupo chinês Huawei em breve construirá a infraestrutura 5G do Brasil. Mesmo que os EUA sob Donald Trump se oponham veementemente.

Surpresas também foram vistas nos países vizinhos. Em vez do maligno socialista Nicolás Maduro em Caracas, de repente quem cambaleia é o neoliberal Sebastián Piñera, presidente do Chile; e seu colega argentino, Mauricio Macri, já se foi de vez. Até Evo Morales, o único esquerdista com uma boa conexão com Bolsonaro, um pragmático e sobrevivente nato, foi-se embora. Se alguém tivesse me afirmado isso no começo do ano, eu teria dito que era louco.


Mas a vida é cheia de surpresas – e também não é. A luta contra a corrupção, uma das bandeiras de Jair Bolsonaro na campanha eleitoral, foi rapidamente suspensa assim que caiu na mira o filho do presidente Flávio. Os laços de família são fortes no Brasil, quer na esquerda, quer na direita.

Mas o emprego dos sonhos de embaixador em Washington acabou não se concretizando para o outro filho do presidente, Eduardo. De qualquer forma, em 2019 ficamos sabendo que Eduardo fala mal inglês. Mas, uma vez que seu pai não fala nada da língua de seu país dos sonhos, os EUA, isso é algo que Jair não havia percebido, até agora.

Mas certo está que ele notou que os EUA de Donald Trump não são o esperado melhor amigo. Os contratempos nas "relações especiais" com o irmão mais velho do Norte atingiram duramente os Bolsonaros. Não só a orientação da política externa do governo precisou ser questionada, mas o futuro projeto de Eduardo Bolsonaro de um movimento de extrema direita baseado no The Movement, de Steve Bannon, também sofreu com a recusa amorosa americana. O evento de fundação do movimento acabou se revelando um fracasso, semelhante ao primeiro congresso dos terraplanistas brasileiros, algumas semanas depois.

Olavo de Carvalho, guru da família Bolsonaro residente nos Estados Unidos, também foi vítima da aproximação com a arqui-inimiga China. Em janeiro, ele criticara membros do partido presidencial PSL que haviam viajado para o Império do Meio. Agora o astrólogo mantém silêncio. As más línguas dizem que ele perdeu toda e qualquer credibilidade o mais tardar quando afirmou que o filósofo alemão Theodor W. Adorno foi o verdadeiro autor dos sucessos dos Beatles.

Por falar em PSL, poucas vezes se viu um presidente simplesmente implodir assim sua própria sigla, a que forma sua base do Congresso. Depois de passar 30 anos mudando de um partido para outro, como um nômade, Bolsonaro agora se atreve a fundar sua própria legenda personalizada.

Com os grupos do WhatsApp que o levaram ao cargo, ele não tem como fazer política no longo prazo. A "nova política" rapidamente bateu em seus limites, o discurso antissistema não basta mais. Bolsonaro precisa dos milhões do fundo partidário para moldar seu futuro político.

Será também uma questão de conteúdo? Até agora Bolsonaro não conseguiu implementar muito de sua "agenda de costumes". Ele não concretizou a Escola sem Partido nem o armamento de todos os cidadãos. Isso também se deve ao papel mais forte do Congresso, a quem Bolsonaro deu carta-branca na formulação de políticas.

Decisão planejada ou involuntária? Seja como for, ele até agora tem desapontado o campo evangélico, que o apoiou maciçamente em 2018. Ele não conseguiu realizar sequer a mudança da Embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, anunciada como um dos seus primeiros atos oficiais.

As maiores expectativas, contudo, foram depositadas no início do ano em Paulo Guedes, o "Posto Ipiranga" de Bolsonaro em questões de economia. Mas até agora não houve mudanças radicais em direção a uma sociedade eficiente e justa. Grandes assalariados e os privilegiados no Judiciário, política e entre os militares foram poupados da reforma da Previdência. Mas era de se esperar outra coisa?

E a privatização de empresas estatais como a Petrobras ainda está basicamente em aberto. Em vez disso, a gigante do setor energético foi mais uma vez instrumentalizada para fins políticos – por exemplo, para impedir uma greve dos caminhoneiros e evitar o fracasso do megaleilão do pré-sal.

Os saques do FGTS, destinados a estimular a economia, também são conhecidos de governos anteriores. A única novidade aqui é o fato de o ministro da Economia achar engraçado seu patrão insultar a esposa do presidente francês. Além disso, Guedes se revelou um apoiador de ideias autoritárias, como a reintrodução do AI-5.

Meus amigos me dizem que o Brasil se tornou ainda mais absurdo sob Jair Bolsonaro. "Estamos vivendo dentro de um tuíte de Carlos Bolsonaro", escreveu Anderson França, colunista da Folha. Mas me pergunto se o filho presidencial ainda está mesmo tuitando? Talvez eu tenha me acostumado de tal forma a essas surreais mensagens curtas, que atualmente elas nem me chamam a atenção.

Muitos eleitores de Bolsonaro estão agora percebendo que ele não produz nada além de muito palavreado, disse-me há alguns dias uma moradora de um bairro pobre da periferia de São Paulo. É para eu me espantar?
Thomas Milz

De como o óbvio é revolucionário

Domingo agora J. R. Guzzo escreveu neste jornal que “a igualdade não é um direito, é o resultado do que o cidadão aprendeu”, que “é inútil querer que as pessoas tenham igualdade nos resultados quando não são iguais nos méritos” e que “não há como ser igual nos méritos se o sujeito que sabe menos não teve oportunidades iguais de aprender as coisas que foram aprendidas pelo sujeito que sabe mais”. Conclusão: “ainda não foi inventada no mundo uma maneira mais eficaz de concentrar renda, preservar a pobreza e promover a desigualdade do que negar ao povo jovem uma educação decente”.

Mas como arrancar a educação pública brasileira dos dois atoleiros aos quais está presa, a corrupção inerente ao ambiente estatal e o serviço a um projeto de poder? Ontem, falando de corrupção, Modesto Carvalhosa lembrou nesta página que “um fenômeno sistêmico é o que cria, ele próprio, sua continuidade, permanência, e expansão”. Mas pode haver uma versão virtuosa disso. Eu tenho fascínio pela instituição da eleição direta do school board das escolas públicas em todos os países de colonização inglesa. É a peça mais básica da democracia moderna que é a que foi reinventada por eles. É ali que se dá a intersecção mais concreta entre o público e o privado e que se define, no nível mais próximo do cidadão comum, a relação hierárquica que ha entre ele e o seu representante eleito, de modo a criar a sua própria continuidade.


Sendo a base de tudo na democracia moderna a necessidade dela ser “representativa” e o sistema distrital puro de eleição a única maneira sem tapeações de se prover essa representação de modo aferível, preto no branco, o bairro, a menor célula do sistema, elege obrigatoriamente entre candidatos que moram nele (pais de alunos) o conselho gestor da escola pública local. Nos Estados Unidos esses boards têm, tipicamente, sete membros para que não haja empate em suas decisões, com duas “metades”, uma de três outra de quatro membros, eleita a cada dois anos, para mandatos desemparceirados de quatro anos. Como todo funcionário eleito também estes estão sujeitos a recall a qualquer momento em que seus eleitores sentirem-se mal representados. Esse conselho tem por atribuição contratar e demitir o diretor da escola e aprovar ou não os seus orçamentos e planos de vôo anuais.

A esta altura os leitores ainda sujeitos ao complexo de vira-latas já estão pensando como o brasileiro das favelas ou lá dos fundões poderá mandar na educação (de seus filhos) com bons resultados. A função do school board, assim como a da democracia como um todo, não é imprimir sofisticação aos currículos, é estabelecer o filtro contra a mais mortífera de todas as doenças que acompanham a humanidade ao longo dos tempos neste vale de lágrimas que é a corrupção pelo poder, e tornar a escola pública “orientada para o cliente”. Hoje, com as exceções que confirmam a regra, ela está orientada para servir seus servidores e manter para sempre nas mãos dos próprios privilegiados o controle sobre a distribuição de privilégios pelo estado que é ao que se resume, despido de sua fantasia século 20, todo o blá, blá, blá em torno da estatização ou não do que quer que seja.

Qualquer pai terá condições de saber quem são as pessoas mais capacitadas para fazer parte desse board na sua comunidade e, sendo o voto secreto, de defender-se de pressões indevidas. E qualquer ser humano em poder de suas faculdades saberá avaliar a razoabilidade ou não de um orçamento a partir da segunda vez que tiver de tratar do assunto. Além disso, como todos, esse sistema gera os seus próprios meios de tornar-se “sistêmico” e auto-reproduzir-se: centros de apuração e difusão de melhores práticas, cursos de aperfeiçoamento de membros de school boards, etc.

Nenhum prejuízo colateral será maior que o de manter o controle das verbas e das decisões na área de educação nas mãos de quem terá o poder de transformá-las no próprio salário e o de deixar a avaliação de quem deve preparar um país inteiro para a competição global a indivíduos que não têm, eles próprios, de competir por seu lugar ao sol. Ontem mesmo, aliás, editorial na página ao lado desta constatava que ha mais professores do ensino básico sendo formados no Brasil de hoje, onde eles já são 3,1% da força de trabalho e 20% das mulheres com ensino superior, que alunos a demandá-los. Porque seria se os salários são tão baixos? Porque o magistério público atrai pessoas de famílias paupérrimas e, no quadro da miséria nacional, ser professor prestando um vestibular de pedagogia é um modo mais fácil que o vestibular de medicina, por exemplo, para disputar uma posição de segurança vitalícia num emprego estatal.

Não é, portanto, aumentando salários num ambiente regido pela regra da isonomia – aquela que afirma: “eu merecerei ganhar mais sempre que outra pessoa fizer por merecer ganhar mais” que se vai resolver o problema da qualidade da educação básica no Brasil. E a solução passa obrigatoriamente pelo rompimento com a “mentira analítica”: a crítica do sistema tem de ser feita pelo consumidor e não pelo fornecedor de educação pública como geralmente acontece até mesmo nas bancas (quase exclusivamente compostas por professores de universidades públicas) que os jornalistas convocam para debater o problema.

Nada disso, porém, pode ocorrer isoladamente. Se quisermos viver numa democracia o school board é só a peça mais básica. Um certo numero de distritos eleitorais escolares (bairros) comporá um distrito eleitoral municipal, um conjunto destes fará um distrito estadual e outro múltiplo deles fará um distrito federal que elege um deputado federal, todos eles diretamente atrelados a eleitores específicos e sujeitos a recall, ou seja, submetidos à mesma meritocracia sob a qual vivem os seus representados.

Não é só o sistema de educação pública. O Brasil inteiro não funciona porque a avaliação e a condição de permanência, seja no emprego, seja no poder públicos, é absolutamente independente da “satisfação do cliente”.

Cretinice custa caro

Todos sabemos que é praticamente impossível fazer uma campanha na situação do fundo de 2 bilhões de reais
Silvio Costa Filho (Republicanos-PE)

Brasil, um país que os bandidos amam

Nos filmes estrangeiros, é líquido e certo: se o bandido tem de escapar da polícia para algum lugar onde ficará bem escondido e protegido, o destino final é o Rio de Janeiro. Os golpistas vividos por John Cleese e Jamie Lee Curtis em “Um peixe chamado Wanda”? Embarque para o Rio. O ladrão de banco vivido por Alec Guinness em “O mistério da torre”, do distante ano de 1951, conta sua história em flashback a partir de onde? Um restaurante no Rio. Os produtores teatrais picaretas de “Os produtores” querem meter o pé para onde? Rio de Janeiro, obviamente. Dá para fazer um livro só com esses e outros casos.

E não é só na ficção — afinal, poderia ser uma escolha de roteiristas, baseada numa percepção falsa. O caso mais notório de um fugitivo que se acoitou no Rio é o de Ronald Biggs, ladrão do trem postal inglês e fugitivo do Her Majesty's Prison Service. Biggs usufruiu da nossa hospitalidade carioca entre 1970 e 2001. Só não foi extraditado porque não havia tratados entre Brasil e Reino Unido a respeito.


Outro bandido de certa fama que se homiziou deste lado de cá da Linha do Equador foi Jesse James Hollywood. Traficante de drogas e homicida na Califórnia, viveu no Rio no início dos anos 2000. Mudou de nome, deu aulas de inglês e teve um filho. Acabou preso pela Interpol em 2005. Hoje, curte uma prisão perpétua em San Diego. Sem direito a condicional.

Como mostrou uma série de reportagens do Extra publicadas esta semana, aumentou em 26%, nos últimos dois anos o número de presos estrangeiros no sistema carcerário fluminense. Tem de tudo: traficante americano, golpista português, ladrão chileno, homicida alemão, soldado do tráfico argentino… Conhecendo-se a eficiência do nosso sistema de persecução criminal, dá para ter um vislumbre da quantidade de criminosos de outros países que escolheram o Rio para aproveitar a vida louca e, de quebra, delinquir um pouquinho.

Até bandidos de outros estados da federação vêm ao Rio fazer seu turismo criminal. Roubam aqui, traficam ali e, no fim de semana, aproveitam a praia.

Por que o Rio faz tanto sucesso entre bandidos de outras plagas? Não é o Rio, que já tem problemas para dar, vender e exportar. É o Brasil. A legislação brasileira é feita sob medida para deixar os criminosos felizes. Quer um exemplo?

Um bandido hipotético — americano, digamos — está por aqui, curtindo a vida adoidado. Ele cometeu, hipoteticamente, uns dez homicídios de criancinhas no Texas. É um serial killer, em suma. Esse hipotético bandido é preso para ser extraditado. Quem dá a ordem de extradição é o STF. Mas só dará essa ordem se o país estrangeiro se comprometer a não aplicar, lá, uma pena que o estrangeiro não poderia receber aqui. Sacou? Ou seja, nos Estados Unidos esse nosso hipotético serial killer receberia pena de morte, ou uma meia-dúzia de sentenças de prisão perpétua. Aqui, leva no máximo 30 anos de cadeiom progressão de regime e condicional, porque é um absurdo manter um criminoso preso pelo tempo da sentença que recebeu, certo?

Aqui temos a pseudo-cláusula pétrea contra a pena de morte — que é prevista em tempos de guerra, logo não é tão pétrea assim — não pode ter trabalho forçado, tem semiaberto com um sexto de cumprimento da pena, tem auxílio pecuniário para o detento, tem redução de pena por estudo, trabalho, leitura de livro…

Isso tudo, unido à patética taxa de resolução de crimes, à atávica demora da Justiça em julgar criminosos, à bovina complacência com que a sociedade encara a reincidência criminal, a ação de facções do tráfico, a absurda e imoral existência de “territórios do crime” dentro do território nacional, tudo isso somado, misturado e batido no liquidificador, vira um caldo amargo que está cada vez mais difícil de engolir.
Giampaolo Morgado Braga