domingo, 4 de agosto de 2019

Pensamento do Dia


Na minha experiência...

Como acontece sempre que falo mal da homeopatia, minha caixa postal ficou atulhada de emails de usuários e de médicos homeopatas relatando suas experiências positivas com a prática. Não duvido da boa-fé dos que me escreveram, mas desconfio da psique humana. Basicamente, nossos cérebros enxergam aquilo que querem ver.


Um bom exemplo disso em medicina são as sangrias. Durante milhares de anos, do antigo Egito à América oitocentista, sangrar pacientes foi um dos principais tratamentos utilizados. Embora possamos conceber duas ou três afecções em que a redução da volemia seja benéfica, não há hoje dúvida de que as sangrias mataram muito mais gente do que salvaram. Vítimas ilustres incluem George Washington e Mozart.

Os médicos, porém, juravam que o método funcionava. Eles enxergavam sucesso porque, para quem concebia a doença como um desequilíbrio humoral, tirar o “excesso” de sangue fazia todo o sentido. Outros tratamentos populares eram provocar vômitos e diarreias.

A história só muda no século 19. Em 1828, o médico francês Pierre Charles Alexandre Louis publicou um estudo demonstrando com números que as sangrias eram inúteis no tratamento de pneumonias.

Eu adoraria poder escrever que os médicos se dobraram ao peso das evidências e abandonaram a prática milenar. Mas não foi o que aconteceu. Ao contrário, eles resistiram, preferindo a tradição e suas experiências pessoais às contas de um francês obscuro. Aos poucos, porém, à medida que novas teorias sobre a doença ganharam força e estudos estatísticos se popularizaram, as sangrias foram sendo deixadas de lado.

A triste verdade é que somos uma espécie obstinada que, entre ideias que nos são caras e fatos, ficamos com as ideias. A melhor forma de escapar a essa armadilha é submeter nossas teses a rigorosos controles empíricos e confiar neles, mesmo que desmintam nossas “experiências pessoais”
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Hélio Schwartsman

O infame Bolsonaro

A perversão verbal do mandatário Bolsonaro atingiu nos últimos dias decibéis intoleráveis, gerou uma repulsa quase generalizada a sua figura e expôs de uma vez por todas a truculência e rudeza da personalidade que ele carrega. Foram disparates em série. Cruéis, insensíveis, desumanos. Além de atentar contra a memória dos familiares de um morto pela ditadura, o pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz – e, por tabela, ofender todos aqueles martirizados pelo regime de exceção que nos idos de 60/70/80 ceifou a vida de inúmeros brasileiros -, ele também afrontou índios e vítimas do brutal massacre numa cadeia do Pará. Dias antes, atacou jornalistas, membros do próprio governo, instituições federais como Ancine e INPE, meros servidores. Bolsonaro vem ultrapassando todos os limites, mesmo os seus, costumeiramente rasos. Confrontado com fatos e evidências, tripudiou. Classificou de “balela” os documentos oficiais do próprio Estado onde se assumia a responsabilidade pelo desaparecimento do dissidente político depois de sua prisão. Pelas insinuações e versão, o presidente pode vir a ser considerado cúmplice em conhecimento de causa e terá de responder nos tribunais, caso não esclareça o que quis dizer na condição de chefe de Estado. A OAB entende que ele incorreu numa lista de crimes e vai interpelá-lo judicialmente, inclusive por desmerecer o trabalho da Comissão Nacional da Verdade. A organização internacional Human Rights Watch classificou de irresponsáveis e cruéis as declarações e o ministro do Supremo Marco Aurélio Mello chegou a sugerir que se passe uma mordaça no presidente para evitar seus impropérios. Bolsonaro se converteu em um mitômano. Dado a devaneios em suas “lives”, enquanto corta o cabelo ou em coletivas de improviso, não apenas distorce eventos e circunstâncias para estabelecer uma realidade paralela, adequada a seus interesses, como nega descaradamente e com a maior candura do mundo fatos de domínio público. Um presidente com esse pendor tende a levar o País a caminhos sombrios e imprevisíveis. Mesmo auxiliares e interlocutores mais próximos estão atônitos com tamanho destempero. Os flertes autoritários sempre o acompanharam na trajetória de deputado do baixo clero, quando ele saudava torturadores e práticas da repressão – chegou a reclamar quando a Justiça Federal determinou a busca por restos mortais no Araguaia, alegando que “quem procura osso é cachorro”, e fez pouco caso do notório assassinato de Vladimir Herzog nos porões do DOI-Codi, dizendo que “suicídio acontece” -, mas agora tais disparates assumem dimensões assustadoras e inaceitáveis para um chefe de Estado. Todos esperavam que ele moderasse o tom. Lembrasse que no seu novo papel lhe cabe a missão de pacificador das vozes, em busca de uma conciliação nacional, e não a de indutor do ódio e da selvageria. Mas Bolsonaro não tem o menor traquejo ou noção de como se portam os estadistas. Fica evidente, dia a dia, a falta de vocação para o posto e tal ignorância não é apenas sobre os assuntos a resolver como no trato propriamente dito. Messias parece não compreender procedimentos elementares, como o de prestar obediência à Constituição, sob a qual jurou governar. Quase que diariamente, com o comportamento tresloucado e sem filtro, vem quebrando o decoro e a liturgia do cargo, na fronteira das práticas de crimes de responsabilidade. O que pode arrancá-lo do Planalto. Na Carta Magna está previsto em um dos artigos que caso o mandatário proceda “de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro” estará sujeito ao processo de impeachment. O histrionismo dos últimos tempos já afastou dele tradicionais aliados, deve prejudicar o andamento de projetos no Legislativo e pode ainda, por deveras humilhante, lhe impor sanções através do Supremo Tribunal Federal que em breve irá julgar a petição da OAB e terá de se pronunciar a respeito. Será uma forma legal de lhe mostrar as fronteiras do certo e do moralmente aceitável que ele não pode transgredir, sob pena de uma retirada prematura. A palavra de um presidente, por exemplo, tem de estar sustentada pelo manto da verdade factual. Fundamento elementar. Injúrias e infâmias não cabem nesse figurino.

No plano do comportamento, a profusão de equívocos e desvios do capitão reformado, repetindo costumes de antecessores, também não é menor. Como se estivesse fazendo o papel de bom provedor do lar, o presidente chegou a justificar o uso de aeronaves oficiais por seus familiares, que foram ao casamento do rebento Eduardo a bordo de helicópteros da FAB. Indignado com as cobranças, reagiu: “vou fazer o quê? Mandar de carro?”. Não, prezado mandatário, se for de seu desejo, e com as suas posses, o senhor paga a passagem aérea deles. Não deixa a conta para o contribuinte que não tem nada a ver com o pato. Costumeiramente é esse o grande erro dos que são por aqui escolhidos para o poder. Chegam lá, se aboletam como se estivessem na própria casa, adotam medidas e acertos paralelos de acordo com as vontades pessoais – a do eleitor jamais é levada em conta – e pior: usufruem à vontade dos bens do Estado como se fossem de sua propriedade privada. Tais hábitos estão no quadrante das infâmias de outra natureza. O ex-governador preso Sergio Cabral fazia direto, com entourage de serviçais, cachorro e quetais, e Bolsonaro achava ruim. Agora crer ser natural. Com certeza alguns governadores, juízes e parlamentares compartilham da mesma opinião. São, afinal, beneficiários diretos da mamata às expensas do contribuinte. Bolsonaro também parece querer se locupletar, e a seus familiares, por meio de outros expedientes. Está determinado a colocar o filho na embaixada de Washington, em um nepotismo escancarado, porque deseja dar a ele, como disse, o “filé” e não “carne de osso”. Alastra a sua benevolência aos convivas e concede férias antecipadas a pelo menos cinco ministros, com apenas seis meses de governo, que deveriam estar submetidos às regras convencionais e aos anseios de seus reais patrões: os contribuintes que bancam o Estado. Mas Bolsonaro não pensa assim. Para o Messias ele quem manda, talquei? Chatos são os que lhe cobram disciplina republicana. O mandatário dá de ombros, tá se lixando. Foi eleito e é o que basta – como reitera costumeiramente. Flávio, o filho número três, se envolve em um laranjal para ganhar “mensalinho” e papai barra as investigações. Cheques no nome dele, empréstimos inclusive para a primeira dama e acertos com um intermediador que foge da justiça são possíveis porque sob a guarida do capitão vale tudo. Bolsonaro está agora determinado a colocar alguém “terrivelmente evangélico” – não importando se é “terrivelmente” competente – no STF. Tem a ver com as suas preferências religiosas. E o povo com isso? E os católicos, os umbandistas, espíritas, muçulmanos, judeus e demais serão representados como na Suprema Corte? O Estado é laico, reza a Constituição. Mas para Bolsonaro não importa. Mero detalhe. Ele confunde a cadeira do Planalto com o quintal da casa da Mãe Joana. Não vai dar dinheiro público para “fins pornográficos”, como classifica parte da produção cinematográfica brasileira, e ponto. Implode com a Educação e a Cultura porque considera professores “comunistas”. Comete heresias sociais e fica tudo como está. Não é nada razoável que um presidente se comporte como um senhor feudal, capaz de esquisitices, hostilidades e infâmias a rodo que afetam o direito e o interesse de seus governados. Um presidente intolerante impondo uma doutrinação que flerta com o fascismo é a maior das infâmias. E essa precisa ter fim.

Falta compostura

Em vez de aderir de corpo e alma ao “trumpismo” ou de sonhar com um estatismo caduco, é melhor agir em defesa dos interesses nacionais e populares, com postura não agressiva, mas altiva
Fernando Henrique Cardoso 

Um primitivo

Um dos filmes mais estranhos que já vi é “O curioso caso de Benjamin Button”. Conta a história de um homem que nasce velho, um bebê todo enrugado, um mini velhinho, feio, assustador e que inspira repulsa até no pai que o abandona na entrada de um asilo. E nesse asilo ele cresce e vai vivendo ao contrário de todos nós; em vez de envelhecer, remoça, até que numa idade provecta ele está um jovem rapaz.

O que tem isso a ver com Jair Bolsonaro? Muito pouca coisa, apenas o fato do capitão se comportar cada vez mais como um adolescente típico, rebelde, primitivo, preguiçoso, convencido de estar sempre certo, de ser bem mais sabido que os adultos. Aos 64 anos, parece que vai remoçando de modo bizarro, tal qual Benjamin Button, e sempre achando que estão todos errados, menos ele. Remoça fisicamente, e fica cada vez mais primitivo ao longo dos anos.

Nos últimos dias parece que ele teve um surto de péssimas ideias. Irritado com o fato da conclusão do inquérito sobre seu esfaqueador, Adélio Bispo, porque ficou provado que ele é mentalmente incapaz, resolveu agredir o presidente da OAB, mas a seu modo. Do modo mais vil possível.


Como ele, abertamente, não concorda com a Comissão da Verdade que declarava que o jovem Felipe Santa Cruz, pai do atual presidente da OAB, fora assassinado pelo Estado e ele quer que acreditemos que os algozes foram companheiros do morto, ele mexe na composição da Comissão dos Desaparecidos Políticos. Mas, atenção, ele não quer que pensemos que a troca está ligada ao que ele disse sobre a morte de Felipe Santa Cruz. Não, nada disso. Foi porque ‘mudou o presidente da República’. E quem ele convocou para comprovar o que disse? A fantástica Damares!

Será possível que ele não perceba a estupidez do que fez? Ou só vai aceitar que errou depois do caso passar pelo STF?

Sobre o massacre no Pará, nada, A não ser quando lhe perguntaram o que tinha a dizer sobre o assassinato dentro do caminhão dos presos que estavam sendo transferidos daquela prisão infernal. Resposta do presidente do Brasil: “Problemas sempre acontecem”.

Recusa os dados do desmatamento do órgão encarregado de controlar nossa Amazônia. Ele esquece, ou será que ignora, que o mundo está atento: a revista The Economist afirma que desde que Bolsonaro tomou posse em janeiro, "árvores estão desaparecendo a uma média de duas Manhattans por semana". Essa mesma revista, durante a campanha presidencial no ano passado, alertava seus leitores que Bolsonaro seria uma ameaça para o Brasil! Bingo!

E se alguém estranha ou reclama de alguma atitude dele, tem sempre um áulico para dizer: “Ele é assim mesmo. Nada a fazer”.

Assim como? Instintivo? Primitivo? Néscio? Rude? Boquirroto? Isso lá é desculpa que se apresente?

Depois de passar pelo Exército, pela Câmara dos Deputados e estar na Presidência da República, aos 64 anos ele não poderia ter aprendido a se controlar e a respeitar o cargo que ocupa e o país que preside?

Imagem do Dia

Wadi Rum (Jordânia)

Seis sentidos

É boa para os olhos. Nas outras cidades grandes, onde não devia haver nada, há um monturo de edificações; em Brasília, onde não deve haver nada, não há nada. Descansa os olhos. Possui as riquezas elementares que foram mutiladas nos grandes centros: céu cor de céu, vegetal verde, água tranquilizante. Até os cegos podem ver Brasília pela vibração sutil e confortante dos espaços abertos. 

Brasília é boa para os ouvidos. Reclamar do barulho de certas superquadras é um luxo. Na verdade os decibéis do trânsito e das construções, à falta de eco, perdem depressa o timbre agressivo nos descampados do planalto. Por isso, quando um carro sem tubo de escapamento dá partida debaixo de nossa janela, sentimos um repelão na trama nervosa: depois de uma noite serena nossos ouvidos já estão passados a limpo e percebemos o quanto o silêncio nos era precioso. Mas é natural que o brasiliense reclame do ruído, onde este só aparece para dizer que existe; os habitantes do Rio, São Paulo e Belo Horizonte, se quiserem manter a mesma coerência, deverão reclamar do silêncio, caso este der o ar de sua graça.

Brasília faz bem ao nosso nariz. Não agride o olfato de ninguém. Um poeta fala da necessidade urbana de um nariz solene e paciente, apto para servir num mundo prosaico. Em Brasília nosso nariz não precisa assumir esse ar conspícuo. E há mesmo certo bucolismo na expressão mais espontânea dos narizes federais.

Brasília não nos agride pelo tato. A transpiração não escorre pelo pescoço. A lã não irrita a epiderme alérgica. E, se houvesse uma estatística para encontrões de rua, a capital teria decerto o mais baixo índice de todas as outras capitais do mundo.

Brasília por fim é boa de paladar. As cidades comem melhor na medida em que sobra tempo à imaginação culinária da dona de casa. E comem pior na medida em que o relógio nos come por uma perna. Comi razoavelmente bem nos restaurantes mais mesureiros e não tenho defeito para botar na costelinha, no torresmo e no tutu do posto de gasolina de seu Louzada, na da Asa Norte.

No princípio, quando Brasília era a Cidade-Livre e fundações, não havia nada, a não ser calor humano. Depois, quando a base urbana ficou pronta, saiu logo do forno uma chapa que vem sendo repetida nestes treze anos: "Brasília não tem calor humano". 

Que acho? Antes de tudo, que nessa questão de calor humano não há termômetro universal. De minha parte seria uma injustiça e até uma ingratidão qualquer queixa. Tenho numerosos amigos em Brasília e meu constrangimento é nunca dispor de tempo para abraçar a todos. Acredito além disso que um jornalista, neste cálido Brasil, pode sentir falta de muitas coisas, menos calor humano. Em nosso território, terrestre e aquático, as letras, por mais humildes que sejam, sempre encontram um cantinho quente, um aperto de mão, uma cachacinha amiga. 

Mas só há um modo de saber: perguntando. Foi o que fiz. Saí colocando para todo mundo o meu enigma. Você sente falta de calor humano em Brasília? Passei a ser a esfinge do calor humano, com o risco de passar (ou de ser reconhecido) por maluco. Perguntei a jornalistas, empregados de hotel, estudantes, comerciantes, um corretor, donas de casa, motoristas e funcionários: Sente falta de calor humano?

Como? Que trem é este? – Aqui em Brasília... A aturada pesquisa deu em nada. Uns disseram que sim, outros que não. E houve ainda uma pequena fração, aritmeticamente desprezível, que respondeu: Mais ou menos.

Pois creio que essa fração desprezível está com a verdade: esse negócio de calor humano (em Madri, Paris, Londres, São Petersburgo e o mundo) é mais ou menos. As ondas de frio e calor humanos são variáveis e dependentes de mil fatores, muitas vezes contrastantes. O termômetro humano, a qualquer local, registra um enxame de temperaturas diferentes. Tal é o nosso destino de aparelhos ultrassensíveis, capazes de registrar simultaneamente o calor da criança que nos sorri e o gelo da criança que faz uma careta para a nossa solidão. Calor humano de fato (não resisto à vulgaridade) a gente encontra nos trens elétricos da Central. Não há nada a fazer contra a imensa escala térmica das reações humanas.
Paulo Mendes Campos (Manchete, 1 de maio de 1973)

Atrações governamentais

O que se tem inventado para juntar povo e obrigá-lo ao interesse comum, à decisão forçada, à ideia de “ocasião’, de lucro e de pechincha! Como ele corre atrás desta pequena ideia...
Irene Lisboa, "Apontamentos"

O Bolsonaro ou a vida

Num dos textos que escreveu na prisão, Antonio Gramsci refletiu sobre Maquiavel como teorista político, principalmente na sua obra “O príncipe”, sempre tida como um livro de conselhos sobre como governar Florença com sabedoria e alguma sacanagem, dirigidos aos Médici. Os conselhos de Maquiavel eram certamente influentes, mas o que ficou na História sobre sua atuação como "consigliere" foi a sacanagem. Até hoje “maquiavélico” quer dizer mau e furtivo no pior sentido. Para Gramsci, longe de ser apenas um oportunista bajulador do poder, Maquiavel foi um realista político que defendia coisas como a unificação da Itália por qualquer meio. Foi quem inventou os "condottieri", equivalentes às nossas milícias e com a mesma função, proteger as fortunas da burguesia e a burguesia do crime nas ruas, sem se importar com muita legalidade. Maquiavel não tinha nada contra o sistema político das cidades-estado italianas, mas admirava as monarquias absolutas da França e da Espanha e os países que elas mantinham fortes e coesos. Os reis da França e da Espanha também faziam e diziam bobagens mas lá, ao contrário daqui, a imprensa não dava, e WhatsApp nem existia. As bobagens eram captadas assim que saíam das bocas reais e levadas para o fundo do palácio, onde eram sacrificadas.


Está aí, comecei a escrever sobre Gramsci e Maquiavel e acabei no Bolsonaro. É inescapável. Há uma expectativa no ar que dá às pessoas o que só pode ser descrito como cara de “meu Deus do céu”. O que o homem vai aprontar agora? O que ele vai dizer e desdizer depois? Não sei se foi boa ideia ele tomar café da manhã com jornalistas. Muitas vezes, o clima de cordialidade e informalidade não dura até servirem a laranjada. Tem havido desentendimentos lamentáveis. Na outra manhã um jornalista pediu: “Presidente, me dá um pão na chapa?”, e o Bolsonaro entendeu mal e chutou a sua canela.

Chega. Você eu não sei, mas eu quero ter a liberdade de mudar de assunto. Ficar chamando atenção para as barbaridades que ele diz e faz só o encoraja. Quero poder escolher entre o Bolsonaro e a vida, e sua bendita variedade.

A resistência a Bolsonaro está destreinada para o reset ideológico

Todo início de governo forte (FHC 1995, Lula 2003, Bolsonaro 2019) apresenta dificuldades redobradas para a oposição. Governos novos e fortes no Brasil tendem a conseguir rapidamente maioria esmagadora no parlamento. Desde que saibam – e possam – usar os mecanismos tradicionais de cooptação. Aqui as maiorias não se consolidam na eleição, mas nos primeiros meses de atividade no Congresso. Governo que faz a leitura certa do jogo não tem problemas.

Ficar por aí falando mal da oposição de agora, por exemplo por vir sendo largamente derrotada na reforma da previdência, embute uma dose de oportunismo político. Não que oportunismos sejam proibidos na política, mas fica aqui o registro necessário. O andamento da previdência até que vem sendo razoável, graças também ao desejo do presidente da Câmara de mostrar alguma autonomia. E no Legislativo a oposição vem mostrando flexibilidade tática, com resultados.

O problema da oposição não está no parlamento, onde o chamado centrão oferece margem de manobra pontual ao antigovernismo. Está num terreno antes dominado pela esquerda e pela "social-democracia" à brasileira nos últimos pelo menos quarenta anos, se não mais. A luta ideológica, a guerra entre narrativas, a batalha das ideias, a disputa pela visão de futuro. Que necessariamente depende de como se vê o passado. Bolsonaro propõe um reset nisso aí.

Ao longo das últimas quatro décadas o debate político-ideológico estava organizado mais ou menos assim. O golpe de 1964 tinha sido ruim, por suprimir a democracia. As diretas já e Tancredo-Sarney, bem como a Constituinte, foram bons, por fazer retornar a democracia. Os militares não darem palpite na política era bom. Bons também eram os movimentos sociais e as organizações da chamada “sociedade civil”, por injetarem participação social no poder.

O colapso dessa narrativa se revelou finalmente e pôde ser medido em números quando fracassou em grande estilo a política petista de "frente ampla democrática” no segundo turno presidencial. Se não tivesse sido abandonada na reta final da campanha, provavelmente Jair Bolsonaro teria colocado não dez, mas uns vinte pontos de vantagem sobre Fernando Haddad. Era o que diziam as boas pesquisas quinze dias antes da decisão.


Esse colapso tem raízes objetivas, incluído aí o desaparecimento do que em tempos imemoriais se chamou "burguesia nacional”. Um segmento terminado de finalizar pela Lava Jato. E subjetivas, incluído o pânico instalado nos mecanismos de reprodução social ideológica pela possibilidade de perenização do PT no poder. Bolsonaro sintetiza de um jeito algo primitivo, quando diz “ter salvo o Brasil do comunismo”. No fundo, o antibolsonarismo de salão concorda.

A recente artilharia verbal do presidente acabou por confirmar o viés lisérgico das análises que supuseram ele ter se enfraquecido com a vitória esmagadora da previdência na Câmara. Ultrapassada a primeira cancela das dúvidas sobre a principal medida econômica, Bolsonaro voltou-se para o objetivo principal: a instalação ou reinstalação da hegemonia operacional sobre o aparelho de Estado, e da hegemonia político-cultural. Que precisam sempre andar juntas.

A artilharia verbal do presidente abre caminho para o avanço da infantaria na máquina estatal e para o acirramento das batalhas na nova “rua”: as redes sociais. Enfrenta, claro, a resistência crescente de ex-parceiros institucionais e sociais que agora percebem não haver lugar para eles no assim chamado projeto. É uma resistência prevista. Mas o combustível bolsonarista também é bom: a rejeição absoluta ao passado recente.

Na ofensiva ideológica do bolsonarismo, esse passado produziu apenas estagnação e recessão econômicas, não reduziu significativamente a desigualdade, disseminou e entranhou a corrupção e colocou em risco a liberdade individual. A resistência, ao evocar a apenas a velha política da Nova República, e a Constituição de 1988, realimenta o discurso de que Bolsonaro é o “novo&" que veio dar um jeito nas desgraças produzidas pelo cada vez mais distante ancien regime.

Até porque a narrativa bolsonarista trata de alguns problemas reais. E enquanto seu discurso for recebido como simples enfileirar de bizarrices ele não enfrentará resistência digna do nome.