quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Paisagem brasileira


Receita para o desastre

Primeiro você se elege sem dispor de um plano de governo e sem precisar debater as escassas, vagas e mal costuradas ideias que tinha. Uma vez empossado, tenta fazer o que lhe passa pela cabeça ou o que lhe sopram a cada instante. Natural que assim seja.

À falta de uma equipe afiada para governar, improvisa. Cerca-se de auxiliares que sejam leais. Competência importa menos. E se alguns deles, por qualquer razão ou sem nenhuma, o decepciona, dispensa-os. Pessoas… Com é mesmo? São como fusíveis.

Se lhe cobram provas ou evidências das afirmações mais disparatadas que oferece para distrair a massa ignara, responde: “Para quê provas? É a minha verdade”. Se anuncia uma medida errada, recua e diz que não é obrigado a saber de tudo. Ninguém é.

Se os adversários se horrorizam com o que faz, é sinal de que está mais do que certo. E se aqui e ali contraria até mesmo os que o elegeram e o mimam, ora o problema é deles, e não seu. Se ficarem insatisfeitos, que escolham outro nome na próxima eleição.


A imprensa não dá sossego? Tenta enfraquecê-la desacreditando-a. Estelionato eleitoral é fazer o contrário do que prometeu. Deixa de ser estelionato se chamado por outro nome. Como Nova Política em contraposição à Velha que deve ser banida por todos os meios.

A Nova Política favorece toda a sorte de vantagens para o reaparelhamento do Estado ao gosto do freguês, e também para que se teste e se possa ir além dos limites estabelecidos por leis que pedem para ser reescritas ou simplesmente ignoradas.

Afinal, vale o quê? A vontade da maioria. À minoria resta a subordinação à espera do momento de reinventar-se para que se torne maioria outra vez. É assim por toda parte onde o voto decide, embora não fosse tal mal no tempo da ditadura. 

Se os demais poderes criam dificuldades à realização dos seus desejos, acusa-os de sabotá-lo e contra eles mobiliza seus devotos. Aponta-os como culpados pelo insucesso de ações destinadas a assegurar um futuro melhor para o país. Provas? Não precisa.

O que está por vir não o aflige. Não estava no seu plano chegar aonde chegou. Foi Deus que quis. E foi para beneficiar a família que se lançou candidato. Se Deus não quiser mais, irá para casa com a certeza de que pode ter sido tudo, menos um banana.

É o que sempre foi, porra! Não escondeu quem era. Não pode ser responsabilizado pelo eventual engano alheio. Taokey? Taokey?

Fome não há!

As pessoas podem estar desempregadas, mas têm o que comer
Osmar Terra, Ministro da Cidadania

Um presidente que não é anana numa república quase bananeira

Jair Bolsonaro amanheceu a terça-feira admitindo que poderia desistir da indicação do filho Eduardo para a embaixada do Brasil nos EUA para não submetê-lo a “um fracasso”, diante do cenário ainda incerto em relação a seu nome no Senado. À tarde, o próprio Eduardo negou a possibilidade e disse que sua indicação estava mantida. Mostrando que aquilo que o filho diz está falado, o presidente amanheceu a quarta-feira recuando do recuo: “Não tem recuo. O nome do Eduardo vai ser apresentado ao Senado”. Então pronto.

Só falta combinar com os russos do Senado, e é bem possível que a partida acabe em vitória do time dos Bolsonaro. O que se comenta nos gabinetes da Casa, porém, é que poderá ser mais uma daquelas vitórias de Pirro, uma batalha que será vencida mas esgotará todas as forças e recursos do exército vencedor, após a qual não sobrará nada.

Não há perspectiva de final feliz no episódio da indicação de Eduardo Bolsonaro para Washington. Se perder, Bolsonaro será submetido a um imenso desgaste, uma derrota política que pode representar, para ele, o início do fim.

Por outro lado, para garantir 41 votos para aprovar o nome do filho na votação secreta no plenário do Senado, Bolsonaro terá que dar os anéis e os dedos. Haja emendas, recursos para os estados, cargos federais e sabe-se lá o que mais para entrar na negociação como sempre ocorreu e continua ocorrendo nessas horas. O desgaste será inevitável quando todo mundo perceber que Bolsonaro está fazendo tudo o que disse que não faria em termos de fisiologismo para aprovar a nomeação de Eduardo.

Não por acaso, o presidente da República retirou as indicações que havia mandado ao Senado para preencher duas diretorias do Cade com nomes técnicos escolhidos pelos ministros Paulo Guedes e Sérgio Moro. As indicações teriam sido dadas ao presidente da Casa, Davi Alcolumbre, que prometeu-as a senadores da bancada do MDB. Alcolumbre, aliás, será importante aliado dos Bolsonaro na causa, pois já garantiu uma boa quantidade de recursos para seu estado, o Amapá, e agora é amigo do Planalto desde criancinha. Muito mais virá, para ele e para outros.

O que muita gente pergunta é por que Bolsonaro não usa essa energia toda para convencer os senadores a aprovar projetos importantes para a economia e o governo. Com tanto empenho, quem sabe a reforma da Previdência não tramitaria mais rapidamente? Ou até, quem sabe, não sairia uma reforma tributária, ou o novo pacto federativo pregado por Paulo Guedes?

Para o presidente, porém, essas prioridades parecem vir atrás do filho. E, como quem levou a facada e se elegeu foi ele, que é quem manda porque não é um presidente banana, o mundo político vai assistir calado enquanto Bolsonaro leva o país de volta à condição de república bananeira.

Poder sem controles pode parecer loucura

‘Catch-22” é o título de um romance satírico do americano Joseph Heller, que já morreu. O livro foi publicado no Brasil com o título “Ardil- 22”. Deu um bom filme, dirigido pelo Mike Nichols. A história se passa na Segunda Guerra Mundial, numa base da qual diariamente decolam aviões americanos para bombardear a Alemanha. Os bombardeios são feitos à luz do dia, as perdas de homens e aviões a cada missão são apavorantes — e não é incomum um piloto decidir largar sua carga de bombas no Canal da Mancha e voltar para a base sem enfrentar os caças e o fogo antiaéreo do inimigo. Um piloto que não foge do horror, e é o personagem principal do livro, pede para ser dispensado das missões por questões médicas. Seus nervos não aguentam mais o risco diário de ser abatido sobre a Alemanha. Cada missão pode ser a sua última. Ele não dorme. Não come. Não para de pensar no seu avião mergulhando em chamas e levando junto toda a sua tripulação. Está ficando louco. A junta médica que examina a reivindicação do piloto conclui que ela é perfeitamente razoável, e por isso mesmo não pode ser atendida. Existe uma diretriz chamada “Catch-22”, segundo a qual só uma pessoa anormal não enlouqueceria com a perspectiva da morte quase certa. Portanto, enlouquecer é uma prova de sanidade. O piloto do livro está perfeitamente capaz de voltar para o seu avião e enfrentar a morte como uma pessoa normal.


Mas esta crônica não é sobre lógica militar, é sobre uma questão correlata: como e quando se decide que alguém enlouqueceu? Quais são os sintomas indiscutíveis de loucura? Qual é a diferença entre loucura e comportamento excêntrico, ou apenas anticonvencional? Quando a pessoa sobre as quais se tem dúvidas — enlouqueceu ou só surtou? — tem o poder, a coisa se complica. O exercício do poder sem controles pode parecer uma forma de loucura, ainda mais se o poderoso já tem uma tendência autocrática e a convicção de que pode tudo. Dois exemplos de poder maluco nos vêm da Roma antiga: o imperador Nero pondo fogo na cidade e depois alegando que dormiu com um cigarro aceso, embora o cigarro ainda não tivesse sido inventado, e o imperador Calígula, que tentou nomear seu cavalo favorito, Incitatus, cônsul de Roma, afirmando que não havia nepotismo porque Incitatus não era nem primo, sendo dissuadido por um Senado que, na época, parece, tinha o senso do ridículo.

Pensamento do Dia


O holocausto da Amazônia põe a civilização em alerta

Quando a noite caiu sobre a cidade de São Paulo, às 3 da tarde, sendo uma de suas possíveis causas o encontro da frente fria com a fumaça das queimadas, muita gente se assustou com o que parecia um anúncio do fim dos tempos. Era algo parecido, se recuperarmos o sentido original da palavra holocausto: tudo queimado, no sacrifício dos tempos antigos entre os hebreus. Com duas diferenças: uma, que a holah do sacrifício judaico tinha o sentido de reparação, visava uma expiação geral dos pecados; outra, que depois do nazismo sacrificar milhões de judeus, a palavra ganhou um significado mais sinistro, e passou a ser tomada como qualquer grande e sistemática destruição —sem importar a causa— até o extermínio. Eis o que acontece hoje: o holocausto da Amazônia.

Desde muito jovem me dediquei a pensar o significado da floresta, para além da economia e das dimensões materiais. Em 15 de julho de 2008, retornando ao Senado logo após deixar o Ministério do Meio Ambiente, publiquei um artigo intitulado Atrás de uma borboleta azul em que lembrei minha identificação irredutível com as milhões de pessoas que nascem e vivem na floresta. Dizia: “florestas não são apenas estatísticas. Nem apenas objeto de negociações, de disputa política, de teses, de ambições, de pranto. Antes de mais nada, são florestas, um sistema de vida complexo e criativo. Têm cultura, espiritualidade, economia, infraestrutura, povos, leis, ciência e tecnologia. É uma identidade tão forte que permanece como uma espécie de radar impregnado nas percepções, no olhar, nos sentimentos, por mais longe que se vá, por mais que se aprenda, conheça e admire as coisas do resto do mundo.” Passou-se mais uma década, mas mantenho o sentimento.


Agora vejo novamente o fogo matando a beleza da Amazônia e destruindo a perfeição de sua natureza. Lamento a perda de cada cheiro, cada cor, cada raiz, cada animal, cada planta, cada textura que nunca mais voltará. E embora não espere sensibilidade de quem não conhece a riqueza que se perde, sinto que é necessário alertar a todos e protestar contra um Governo que passa a senha da destruição, que torna a devastação fora de controle e causa enormes prejuízos para todos.

Estamos vivendo um momento de barbárie ambiental no Brasil, promovida pelo Governo Bolsonaro. Por mais que se alerte, por mais que se mostre evidências, por mais que se clame para evitar o caos ambiental, econômico, político, social, o Governo não mostra preocupação, apenas sua cumplicidade com a destruição.

É necessário, no entanto, enfrentar a emergência ambiental no Brasil, com a coragem e o sentido de urgência que a situação nos impõe, para evitar que cheguemos ao lugar sem volta, em que nem por hipótese devemos chegar, o da inviabilização sistêmica da floresta amazônica pelas ações predatórias que desequilibram as condições de sua existência. É necessária a mobilização de todos que não querem ter, em suas genealogias, o DNA da barbárie: academia, movimento socioambiental, empresariado, governos estaduais e municipais, juventudes, líderes políticos. De forma plural e suprapartidária, sem qualquer politicagem, é preciso dizer e dar um basta. Ao garimpo predatório e criminoso, à grilagem de terras públicas, ao roubo de madeira, às derrubadas e queimadas, à violência contra os índios e populações locais, aos prejuízos econômicos, políticos e sociais que já estamos sofrendo, dentro e fora do Brasil.

A Amazônia está sendo queimada por uma mistura de ignorância com interesses truculentos. O Governo está inaugurando um tempo de delinquência livre, em que se pode agredir a natureza e as comunidades sem receio de punição. Não negligenciemos o prenúncio, como no passado, pois o que ameaça refazer-se é, tanto pelo resultado, “tudo queimado”, quanto pelo caráter sistemático da destruição, a tragédia das tragédias: o Holocausto.

O povo brasileiro, sua parcela sensível e consciente, deve responder em nome dos povos antigos e das gerações futuras, da Amazônia e de toda a Natureza. Atendendo aos legítimos interesses da sociedade, da economia e da civilização humana, declare-se o Brasil em estado de emergência ambiental.

Porque é que a Amazônia é indispensável para o planeta


(Visão)

José Pastore mostrou a bomba

Poucas vezes se ouviu uma advertência tão grave como a que o professor José Pastore fez em sua entrevista à repórter Érica Fraga. O Brasil tem 50 milhões de pessoas no desemprego e na informalidade, sem qualquer tipo de proteção social: “Nada, zero. Nem proteção trabalhista, nem CLT, nem Previdência, nem seguro saúde, nada. Elas dependem de assistência. Felizmente, temos dois ou três planos de assistência social que quebram o galho.”

Quem acha que esse tipo de capitalismo selvagem tem futuro, talvez faça melhor cuidando da papelada para conseguir um visto português. Até porque falta à selvageria nacional o ingrediente capitalista, coisa em relação à qual o andar de cima tem secular repulsa. A advertência de Pastore ganha atualidade quando se sabe que mais da metade do valor das deduções do Imposto de Renda com despesas de saúde vão para pessoas com renda superior a dez salários mínimos. Com elas, em 2018 a Viúva deixou de arrecadar R$ 44,4 bilhões. Quem não tem o plano de saúde que permite o rebate, dispõe do malfalado SUS. Desde 2009 ele perdeu 43 mil leitos de internação, equivalentes a 12,7% da rede.


Pastore exemplificou a selvageria que se está estabelecendo no mercado de trabalho com uma cena hospitalar: “No novo mundo do trabalho, você tem três enfermeiras num mesmo hospital. Uma é fixa, outra é terceirizada e a outra, freelancer. Fazem a mesma coisa, mas têm remuneração e benefícios diferentes. Isso é um escândalo para o direito do trabalho convencional.”

Faz tempo que o Brasil vive no desvão que separa o conservadorismo do atraso. Quando os conservadores ingleses criaram a rede de proteção social para seus trabalhadores e combateram o trabalho escravo, o andar de cima nacional dizia que eles queriam tornar seus produtos industriais mais competitivos. (Alô, alô, agrotrogloditas.) E assim Pindorama só aboliu a escravidão em 1888, 23 anos depois do fim da Guerra Civil americana. Deu no que deu.

A advertência de Pastore ganha mais peso quando se sabe que há décadas ele propõe a modernização das relações trabalhistas nacionais. O que o professor sempre quis foi modernização, mas o que se está colhendo é atraso. O ministro Paulo Guedes tem sido um ativo coordenador de seminários neoacadêmicos, mas sua quitanda ainda não começou a vender berinjelas.

Está na moda um renascimento cultural dos 21 anos da última ditadura, e puseram na vitrine a censura de costumes e o DOI-Codi. Pena, poderiam ter posto o Fundo de Garantia, o PIS e o Funrural, primeira iniciativa nacional de amparo aos trabalhadores de campo, filha do governo do general Médici. Havia na ditadura um elemento modernizador que ainda não mostrou o ar de sua graça nos tempos atuais.

Pastore diz que “nosso mercado de seguros e previdência ainda não despertou para o fato de que 50% da população economicamente ativa está na informalidade.” Como ele conhece o mercado, tomara que tenha razão, pois nesse caso as seguradoras e a banca poderiam acordar. É possível, contudo, que eles não despertem porque preferem dormir em paz, como os fazendeiros do Vale do Paraíba no século 19, dançando sobre hipotecas.

Elio Gaspari

'Sentimento' do capitão vira sentença ambiental

Em meio a tantos flagelos ambientais, as queimadas deram um salto neste ano da graça de 2019. O acréscimo foi de 83% de janeiro ao início desta semana, numa comparação com o mesmo período do ano passado. Numa de suas paradinhas na frente do palácio residencial do Alvorada, Jair Bolsonaro disse enxergar crime por trás da fumaça. Declarou que seu "sentimento" indica que as ONGs são responsáveis pelo fogaréu. Hummm...

Vale a pena ouvir o presidente: "Pode estar havendo, não estou afirmando, ação criminosa desses ongueiros para exatamente chamar a atenção contra a minha pessoa, contra o governo do Brasil. Essa é a guerra que nós enfrentamos. Vamos fazer o possível e o impossível para conter esse incêndio criminoso".

Um pouco mais de Bolsonaro: "O crime existe. E nós temos de fazer o possível para que esse crime não aumente, mas nós tiramos dinheiros de ONGs. Dos repasses de fora, 40% ia para ONGs. Não tem mais. Acabamos também com o repasse de dinheiro público, de forma que esse pessoal está sentindo a falta do dinheiro".

O "sentimento" de Bolsonaro é uma lição de vida. Que governante precisa mais do que isso, uma língua solta, meia dúzia de microfones e as ONGs para assumir todas as culpas? É tão prático quanto um misto quente: presunto, queijo e duas torradas.

A política convive com uma regra antiga. Foi importada da propaganda. Baseia-se num procedimento elementar: personalize. Qualquer coisa pode ser vendida —de óleo de peroba à desfaçatez— se tiver uma cara e um enredo. Dê um nome ao seu inimigo, ornamente-o com um rabo e um par de chifres e pronto! Seus problemas acabaram. A identificação do demônio libera o exorcista do exame de todo o mal.

Na área ambiental, Bolsonaro personalizou o demônio: as ONGs. Muitos podem enxergar nas palavras do presidente algo parecido com uma denunciação caluniosa. Mas para o capitão "sentimento" é uma outra palavra para sentença. Isso exime Bolsonaro de qualquer tipo de exame. A começar pelo auto-exame. Há de tudo em Brasília, menos culpados no reflexo do espelho do Palácio da Alvorada.

Gente (e bicho) fora do mapa

Bombeiro dando água a tatu após incêndio (MT) 

Falou o Barão

Quem cria a riqueza de um país são os seus engenheiros e homens de ciência, pois a única coisa que, em geral, produzem os bacharéis e os intelectuais é o déficit público
Barão do Rio Branco

Urubu-rei

Quase todo país tem no seu brasão um bicho heráldico – em geral bicho de presa, leão, leopardo ou águia de garra forte ou bico de aço; – e, sendo assim, não sei por que tendo as outras nações americanas escolhido para as suas armas a águia, o jacaré, o condor, não tomamos para nós o urubu-rei. Verdade que o nome de urubu não é dos mais bonitos e não figura na heráldica. Mas em compensação o título de rei que lhe é acrescentado o envolve de púrpura e lhe tira qualquer ideia pejorativa. Basta ser rei para ter majestade, urubu ou não urubu. Mormente porque o urubu-rei, com o seu tamanho poderoso, a plumagem fofa dum cinza de aço, o colar de arminho branco, a cabeça terrível, a envergadura enorme, ganha em beleza e em impressão de força qualquer das outras aves suas parentas, águia dos Alpes ou condor dos Andes.

Foi assim que ele me ficou na lembrança, pessoa real em todo o esplendor da majestade, desde a primeira vez que o vi, quando menina, no museu Goeldi, do Pará. Tinham-no posto sem companheiros, ocupando um grande viveiro de tela grossa; sempre se mostrava pousado num velho tronco morto (ou talvez imitação de tronco feita em cimento) como se desdenhasse o chão, como se a simples ideia de chão fosse um insulto à força impotente das suas asas cativas. E como eu começava a aprender história do Brasil e andava muito enternecida com o triste fado do senhor dom Pedro II, associei uma figura à outra, igualmente comovida com a sorte daquele outro monarca solitário, desterrado também, se acabando fora do seu reino carregado a terras estranhas, – a própria imagem da realeza, abatida mas sempre digna. E foi então que estranhei pela primeira vez ave tão bela, solene, triste e nobre, carregar consigo o grotesco nome de urubu.

Passei depois muitos anos sem ver um urubu-rei – quando agora dei com outro, no jardim zoológico da Quinta da Boa Vista. Primeiro vimos o nome na placa, no meio dos vários abutres, e logo saímos à procura da ave real, correndo a vista pelos galhos mais altos das árvores supostas do viveiro. Mas sua majestade não pousava acima do chão. Sua majestade fora flagrada num flagrante de intimidade, sua majestade comia a sua ração de carne do almoço – e andava.

Como se desmoronam, Senhor, com algumas simples passadas, a legenda e a majestade de um rei! Sua majestade andava – qual, sua majestade gingava, arrastava os pés, balançava os ombros, como se ameaçasse dar rasteiras num terreiro – no famoso passo do urubu malandro. Imagina! Luís XIV, com manto de arminho e chapéu de pluma, atravessando um salão na cadência cafajeste de um bamba de gafieira – e tereis uma ideia do que eu vi então. Estava explicado por que a ave bela e nobre, de olhar terrível, irmã do condor e da águia chamava-se urubu. Podia ter plumagem de rei, podia ganhar o senhor dos Andes em esplendor e tamanho – mas o andar, reflexo da alma, era andar de urubu. E não só o andar dos pés, mas do corpo todo, o jeito canalha de entortar o pescoço, grelando a carniça, o arrastar da asa, a lentidão balouçante do gingado – tudo era só urubu, urubu catingueiro, urubu de quintal, urubu de monturo.

E com isso – dói dizê-lo, mas a verdade é que o senti mais aproximado de nós; perdi-lhe o medo. E se já não parecia animal heráldico, de maneira mais primitiva, mais de acordo com o nosso barbarismo – senti-o que era o nosso animal totem. Porque nos contrastes desse bicho estão representados os nossos contrastes, – a majestade e a rasteira, o capoeira e o príncipe gigante dormindo em berço esplêndido, a morrer de fome, de amarelão e de tísica. A terra de Tiradentes comparecendo durante quinze anos ao beija-pé de Getúlio, Brasil Urubu-Rei, coroa de ouro na cabeça, pé descalço no tamanco, pátria nossa tão amada, benza-te Deus que bem precisas, e te livre da gaiola e te dê para voar o céu grande onde teus pés não te traiam, e só as asas poderosas te sustentem, te levantem, te carreguem para os caminhos da luz do sol.

De Versalhes a Brasília

O Palácio de Versalhes tornou-se o símbolo do absolutismo francês a partir do momento em que Luís XIV, em 1661, resolveu transformar a residência de caça de seu falecido pai, Luís XIII, na sede da Corte francesa, logo após a morte do famoso cardeal Mazarin, até então a eminência parda do seu governo no Louvre. A reforma projetada pelo arquiteto Louis Le Vau resultou no gigantesco e luxuoso palácio que sediou a administração da França e abrigou as festas da nobreza de 1682 a 1789, ou seja, até a Revolução Francesa.

A Galeria dos Espelhos, o Grande Trianon, as alas norte e sul do palácio, a Capela Real, e o imenso jardim de autoria do paisagista André Le Notre, com seu Grande Canal, foram projetados para demonstrar o poder do autodenominado “Rei Sol”. É de Luís XIV a máxima que sintetiza o absolutismo: “L’Etat c’est moi” (O Estado sou eu). A construção de Versalhes influenciou a arquitetura da época, levando outros monarcas a construírem também grandes palácios. O Palácio de Inverno, em São Petersburgo, de Catarina, a Grande, projetado por Bartolomeo Rastrelli, com suas paredes em verde e branco, estilo rococó, possui 1786 portas e 1945 janelas.

Os palácios de Brasília não se parecem nem um pouco com o de Versalhes ou o de Inverno, embora o traçado de Brasília, com suas grandes avenidas, tenha a ver com a construção de São Petersburgo, a primeira grande cidade planejada do mundo, por Pedro, o Grande, e a reforma urbana de Paris, do barão Georges-Eugène Haussmann, prefeito da cidade durante o governo de Napoleão III, sobrinho de Napoleão Bonaparte. Ambas são símbolos da modernidade e tiveram o objetivo de melhorar as condições sanitárias, facilitar o deslocamento, aumentar a segurança e manter o povo à distância do poder. Também influenciaram as reformas urbanas das cidades brasileiras no começo do século passado, sobretudo as de São Paulo e do Rio de Janeiro, e o traçado do Plano Piloto de Brasília.

Sede administrativa do governo federal, Brasília se transformou numa grande metrópole, onde o povo se mobiliza para protestar quando deseja. Entretanto, também aprisiona seus governantes numa “jaula de cristal”, na qual o presidente da República se vê cercado de colaboradores que filtram todas as informações, enquanto do lado de fora a sociedade acompanha o que acontece atrás dos vidros de seus palácios. A imprensa torna-se incômoda por causa disso, porque seu esporte favorito é revelar o que os governantes não querem que a sociedade fique sabendo. Mesmo com o advento das redes sociais, o enclausuramento do governante persiste, porque a forma como as pessoas se articulam na internet é por afinidades.

Em sua “jaula de cristal”, o presidente Jair Bolsonaro está descobrindo o enorme poder do Estado brasileiro e se propõe a exercê-lo de forma, digamos, monocrática. Como alguém já disse, esse poder é monstruoso, antecedeu a formação na nação e, por causa da dominação colonial, da monarquia e do positivismo republicano, a relação do Estado com a sociedade sempre teve um caráter vertical, mesmo na democracia. Todas as grandes reformas do Estado, diga-se de passagem, foram feitas a partir de rupturas autoritárias. É aí que está o perigo. Os períodos de centralização política fizeram da União o centro absoluto do poder; a federação, que é a característica do nosso regime republicano, sempre acabou sufocada pela concentração de recursos no governo federal e sua presença normativa e coercitiva na vida dos estados, mesmo quando não presta serviços relevantes em troca do que arrecada.

No momento, além do contencioso do governo federal com os estados do Nordeste, por razões políticas e eleitorais, emerge um grave conflito entre o presidente Jair Bolsonaro e a alta burocracia federal, que dispõe de órgãos técnicos e autarquias que são considerados “centros de excelência” da administração pública, inclusive internacionalmente. Esse conflito está se generalizando, começou no Itamaraty e nas universidades, passou pelo IBGE, pelo Ibama, pela Fiocruz e pelo INPE, e agora chegou à Polícia Federal e à Receita Federal. Envolve profissionais altamente qualificados, em alguns casos, de carreiras de Estado com prerrogativas constitucionais.

A tensão entre a burocracia, que zela pela legitimidade dos meios, e os políticos, que se movem pela ética das convicções, faz parte do jogo democrático. Dela resulta uma combinação na qual o pragmatismo político e a ética da responsabilidade fazem parceria. Quando o presidente Jair Bolsonaro, ao descobrir o poder que detém como chefe do Executivo, começa a atropelar os órgãos de controle do Estado, como a Receita Federal e a PolÍcia Federal, para impor sua vontade política, atua para solapar a sua própria legitimidade.

Não foi à toa que a Constituição de 1988 tipificou os crimes de responsabilidade. O presidente da República não é um Luís XIV, nem Brasília é Versalhes.

Sim, nós temos bananas

"Ou vou ser um presidente banana?", perguntou-se Jair Bolsonaro no curso de uma das muitas polêmicas em que se meteu recentemente. O dilema presidencial é pertinente e merece investigação.

Em seus oito meses de governo, Bolsonaro não poupou o país de medidas nem de declarações controversas. Em várias delas mostrou-se realmente um valentão. Foi o caso dos decretos sobre armas, sobre radares de velocidade, do esvaziamento de conselhos e agências e dos bate-bocas com adversários.


Os traços comuns a essas situações são que elas geram protestos que ficam restritos à mídia e rendem ao mandatário o aplauso entusiasmado de seus partidários. Os prejuízos causados são algo abstratos ou, pelo menos, não imediatamente mensuráveis.

Em outras ocasiões, porém, Bolsonaro revelou-se mais banana. Parou de falar em transferir a embaixada brasileira para Jerusalém e esqueceu o discurso duro que fazia contra a China. Não voltou a insistir na pauta do Escola sem Partido nem na ideia de reduzir a maioridade penal.

Explicações para os recuos presidenciais incluem a grande chance de sofrer um revés no Congresso ou na Justiça e de incorrer em pesadas perdas comerciais, que afetariam grupos que o apoiam.

Um caso mais difícil de classificar é o do Fundo da Amazônia. Aqui, Bolsonaro abriu mão de concretíssimos R$ 300 milhões pelo prazer de falar grosso com a Alemanha e a Noruega.

Minha impressão é que, esgotadas as polêmicas mais fáceis, o presidente vai buscando conflitos com grupos com maior poder de reação. Nos últimos dias, ele vem se indispondo contra as bases da Receita, da PF e do MP. Já surgem sinais de que poderá até desencadear uma campanha internacional de boicote a produtos brasileiros, devido ao descuido com a preservação ambiental. À medida que aumentam as apostas, aumenta também a chance de nosso Hamlet do Ribeira revelar-se um banana.