Se nada disse até hoje sobre os 89 mil reais depositados por Fabrício Queiroz na conta da sua mulher, Michelle; se nada disse sobre o fato do seu advogado Frederick Wassef ter escondido Queiroz da justiça; por que Bolsonaro confirmará se citou o nome do deputado Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara?
Nem que o caminho dele cruze com o de uma jornalista ciente do seu dever de fazer perguntas incômodas, Bolsonaro admitirá que citou o nome de Barros em conversa com os irmãos Miranda sobre a compra superfaturada da vacina indiana Covaxin. Ou negará. E, convenhamos, por razões compreensíveis.
Se admitisse que citou, confessaria que cometeu o crime de prevaricação, porque obrigado a mandar investigar Barros, não mandou. Se negasse, se arriscaria a ser acusado de mentir ao país caso a conversa com os Miranda tenha sido de fato gravada, algo que Miranda, o deputado bolsonarista, insinua que foi.
Dizia-se à época em que Dilma Rousseff presidia o país, que ela não se sentia à vontade para circular livremente com medo de ouvir desaforos ou de ser vaiada por grupos organizados que se lhe opunham. Bolsonaro já não pode mais dar-se a esse luxo, a não ser em ambientes sob o estrito controle dos seus devotos.
Dilma ainda respondia, vez por outra, a perguntas incômodas de jornalistas. Bolsonaro, cada vez menos. E quando o faz é sempre para detratar os autores de perguntas que ele não gostaria de responder, ou que não pode responder para não correr o risco de se complicar com a justiça. Que final de governo!
Ainda que Jair Bolsonaro prove diariamente que sua maldade não tem limites, vê-lo arrancar a máscara de uma criança e constranger outra para retirar a proteção choca. Enrola o estômago. Confirma não haver no presidente qualquer traço de humanidade. Ele desdenha da vida, até mesmo de uma criança, para passar a ideia de bravura e valentia, relegando a máscara ao campo dos covardes. Mas a CPI, a Justiça e as ruas começam a assombrá-lo.
Bolsonaro herdou a demonização da máscara do ídolo Donald Trump, que usou o repúdio à proteção para forjar a imagem de forte e destemido na disputa contra o “velho e frágil” Joe Biden. Trumpistas eram machos, sadios, imbatíveis e, portanto, não precisavam se defender do vírus em um país que, à época, acumulava mortos aos milhares.
Os bolsonaristas também se enxergam assim, a começar pelo presidente “imbrochável, imorrível e incomível”. Como Trump, Bolsonaro desde o início alardeou a falácia de que o vírus não pega em machos. Contra a campanha de isolamento social, defendida em todo o planeta, reagiu dizendo que o Brasil tinha de deixar de ser “um país de maricas”. Avançou mais casas: virou garoto propaganda de hidroxicloroquina/cloroquina que até Trump abandonou, despachando para o Brasil uma generosa oferta de 2 milhões de comprimidos depois de a FDA (a Anvisa dos Estados Unidos) suspender o uso emergencial do medicamento para tratamento da Covid.
Mas nem Trump foi tão negacionista a ponto de desprezar as vacinas e apostar na imunidade de rebanho, como fez Bolsonaro. Mesmo com parte de seus eleitores absolutamente céticos quanto a imunizantes para qualquer doença, Trump comprou milhares de doses antecipadamente, ainda no período de testes, e financiou pesquisas.
Biden derrotou Trump e, com vacinas e máscaras, está derrotando o vírus. O país presidido pelo discípulo de Trump continua empilhando mortos como se disputasse uma fúnebre corrida para se tornar recordista. Atualmente, a média diária de mortes dos Estados Unidos – que tem 100 milhões de habitantes a mais do que o Brasil – gira em torno de 370, enquanto por aqui comemoramos quando os números ficam abaixo de 2 mil.
Contra a cruzada cruel de Bolsonaro e sem impeachment à vista – descartado sumariamente pelo presidente da Câmara, o aliado Arthur Lira (Progressistas-AL), que detém o poder constitucional de instauração do processo -, o país começa a reagir nas ruas e nos tribunais.
As manifestações em todas as capitais, no Distrito Federal e em dezenas de cidades médias e pequenas do país nos dias 29 de maio e 19 de junho foram demonstrações crescentes e poderosas contra o presidente, que tendem a ser ainda mais fortes em 24 de julho. E não adiantará taxá-las como atos exclusivos da esquerda, ou do PT de Lula. Nelas, a marca é o anti-bolsonarismo, repulsa explícita que arregimenta multidões.
Adicionalmente, partidos e organizações civis começaram a reagir para além das notas de solidariedade e repúdio, sempre bem-vindas, mas insuficientes para fazer frente às afrontas diárias do presidente, boa parte delas passível de ser punida pelos códigos civil e penal.
Além dos ex-ministros Eduardo Pazuello e Ricardo Salles, ambos enrolados em processos penais, e das investigações da CPI da Pandemia, cada vez mais próxima de comprovar crimes do presidente – incluindo corrupção -, há dezenas de representações pipocando nas regionais do Ministério Público e no STF.
Na sexta-feira, o PSOL apresentou uma notícia-crime ao STF pedindo a responsabilização de Bolsonaro pelos crimes de infração sanitária e afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) por ter submetido crianças a constrangimentos e riscos à saúde. Dois dias antes, a juíza Ana Lúcia Petri Betto, da 6ª Vara Cível Federal de São Paulo, condenou o governo Bolsonaro a pagar uma multa de R$ 5 milhões por danos morais cometidos contra as mulheres em declarações misóginas do presidente e de sua equipe. Impôs ainda a obrigação de a União investir R$ 10 milhões em campanhas pró-direitos das mulheres.
Somadas à CPI e às ruas, as ações na Justiça, ainda que sujeitas a recursos, expõem, sem filtro, o caráter ignóbil e desumano de Bolsonaro. Deveriam se multiplicar, sem dar um único dia de trégua a um presidente que não honra o cargo que ocupa e se coloca acima da lei.
“Uma máscara não é uma declaração política”, disse Biden em sua pregação didática para salvar os Estados Unidos da pandemia. Ele está certíssimo. Mas no Brasil de Bolsonaro só dá para confiar em mascarados. Melhor ainda se a máscara estampar #foraBolsonaro.
Quando tudo isso terminar, respiraremos aliviados, se conseguirmos respirar.
Raul Drewnick
Na Câmara dos Deputados havia um homem chamado Inocêncio de Oliveira. Sempre foi muito gentil comigo. Morreu há algum tempo; Deus o tenha.
Mas era um nome singular e nos inspirou uma antítese para definir pessoas muito suspeitas: Culpâncio de Oliveira.
Lembrei-me disso quando vi Onyx Lorenzoni defender o governo, ameaçando testemunhas, dizendo que é diferente de tudo o que aconteceu nos últimos 40 anos e representa o bem contra o mal.
Há alguma coisa errada nessa compra da Covaxin, do preço às condições do contrato e, sobretudo, a maneira como o governo reage às suspeitas de corrupção.
Considero o negacionismo, que contribui para milhares de mortes, algo muito mais grave que a corrupção. Admito, no entanto, que desvio de dinheiro é mais facilmente reconhecível.
Com bons advogados, uma lei branda e juízes garantistas, não é fácil punir governantes por corrupção. Mas o impacto político é inevitável e, no caso de Bolsonaro, pode significar a gota que faltava para que a proposta da extrema-direita seja reduzida às suas reais dimensões.
É uma tarefa do cotidiano levantar as estranhezas dessa compra de vacinas. O governo diz que a nota fiscal que cobra US$ 45 milhões é falsa. A empresa afirma que não é falsa, houve apenas um engano.
Quem se engana numa nota de US$ 45 milhões pode se enganar nos mandando vacinas contra a febre amarela destinadas ao Equador.
Mas é preciso olhar um pouco mais longe. À medida que o governo decai, a sociedade precisa ocupar um espaço maior, discutir os caminhos.
Perdido num labirinto de desculpas esfarrapadas na pandemia, o governo seguirá destruindo a Amazônia, dizimando as populações indígenas.
As manifestações de rua podem crescer e representar uma ampla frente nacional, pois só uma força dessa dimensão consegue abalar de vez o edifício obscurantista.
O pós-Bolsonaro não será apenas isso, pois coincidirá também com o fim da pandemia. Sairemos de uma terra arrasada, e essas situações, às vezes, como no fim da Segunda Guerra, contribuem para o surgimento de novas ideias.
O combate às desigualdades sociais renasce com grande força. Mas outros temas nos esperam e não podem ser resolvidos apenas com a experiência. A sustentabilidade é um deles, uma vez que a crise ambiental se aprofunda e projeta uma posição de destaque para o Brasil.
A digitalização também estará muito acentuada, abrindo caminhos e cavando novas crises. O centro das grandes cidades, de um modo geral ocupado por escritórios, terá de ser reinventado, pois o home office poderá torná-lo um grande deserto.
Na verdade, há toda uma agenda complexa nos esperando, mas é importante que seja pelo menos esboçada. A existência de uma ampla frente não só nos ensina a superar o governo da extrema-direita. Ela é também essencial quando se pensa em governar o Brasil com um mínimo da estabilidade que nos faltou em muitos momentos da redemocratização.
Por que falar de futuro num presente tão nebuloso? É sempre bom ter algo em mente, sobretudo porque a superação do bolsonarismo não significa que tenhamos resolvido os problemas que lhe deram a oportunidade de ascender.
Desde 2013, o Brasil manifesta uma profunda desconfiança no desempenho de seu governo. Além disso, o processo econômico tem deixado muita gente para trás. Voltada apenas para eleições, a elite política não ouve com atenção pessoas comuns no seu cotidiano.
Se não pensarmos em reconstruir essa estrada, estaremos apenas superando Bolsonaro, deixando aberta uma senda para novas ofensivas autoritárias no Brasil.
É uma das lições de casa, após esses anos de obscurantismo. Muito se diz sobre como morrem as democracias, a partir da decadência das instituições. Mas todos sabemos que, sobretudo, morrem quando o povo se coloca contra elas.
As democracias padecem nas crises. Uns e outros, portando a bandeira do bem da coletividade, fazem pontuações autoritárias, sinalizam “convulsão social’, como se as massas estivessem rogando aos protagonistas com mando sobre o poder militar uma intervenção (um ponto fora da curva) na direção do Estado para justificar “golpe” em pleno século XXI.
Mas isso não ocorre apenas nas democracias incipientes, como a brasileira. A democracia francesa é uma das mais fortes do planeta, farol da liberdade contemporânea. Pois bem, em abril, mil membros das Forças Armadas da ativa e vinte generais da reserva assinaram uma carta aberta onde afirmavam que a França estava a caminho de uma “guerra civil”, culpando “fanáticos” pela divisão social, entre eles os islamitas, que estariam tomando conta de regiões inteiras. O país estaria em perigo.
Quem diria que isso poderia ocorrer ali? Bravata? Maneira de alertar o presidente Macron para a imigração descontrolada? Por aqui, é usual a resposta da esfera política para amenizar as crises: as instituições funcionam. Não é bem assim.
Nunca o Judiciário, representado pelo STF, foi tão questionado e bombardeado. Cenário: ministros objetos de ferrenha crítica, alguns considerados “suspeitos” por terem sido nomeados por fulano e sicrano, decisões que seriam de competência do Poder Legislativo, outras inseridas como recompensa a determinadas figuras.
Os legisladores, por sua vez, apesar do compromisso social, acabam decidindo, por maioria, aprovar pautas do Poder Executivo, ancorados no toma lá, dá cá, em manobras para viabilizar a governabilidade, como orçamentos “secretos” e quetais. Mesmo assim, há tensão entre os políticos e o Palácio do Planalto.
As reformas ganham camadas de bolor e descrédito. A política entrou no índex das coisas imexíveis e só avança naquilo defendido pelo presidente da República, como o voto impresso. Um demérito à urna eletrônica, até então o nosso cartão de modernidade. Um retrocesso está para ser aprovado.
Quando teremos apenas nove, oito ou sete agremiações? Partido virou negócio. Em função de seu descrédito, todos se juntam nesse pântano, o que motiva a permanência de 35 siglas, podendo chegar a 70. Os fundos partidários semeiam os recursos, como é o caso do desconhecido PSL, hoje entre os mais ricos. E onde estão os escopos ideológicos ou doutrinários? No baú.
Tendo como pano de fundo esse queijo suíço, o mandatário-mor bola artifícios para sustentar seu tempo na cadeira presidencial. Ganhará as eleições de 2022, garante ele, e derrotará a quem se refere como o “nove dedos”. Por isso, prega o voto impresso, que na década de 30 era a arma secreta dos “coronéis”. (P.S. “Seu coroné, posso abrir o envelope para saber em que tô votando? Tá doido, cabra, ocê não sabe que o voto é secreto?”)
Pergunta de fecho: seria viável um golpe no Brasil? Gasset escreveu que o homem é ele e suas circunstâncias. Eis algumas: apoio social, economia saudável, pandemia controlada, contexto internacional e imagem do Brasil, felicidade nacional líquida e ameaça de divisão extremada na sociedade.
O presidente Jair Bolsonaro vem perdendo condições de governabilidade rapidamente. Esta realidade está aí, à vista de todos, mas ele é incapaz de reagir demonstrando alguma capacidade de liderança, reassumindo seu próprio governo, dando um choque de gestão e adotando um discurso minimamente condizente com o tamanho da crise – crise dele e do País. Bolsonaro está fora de órbita e seu governo, perdido no espaço.
Não, o presidente não é acusado de comandar ou arquitetar a negociação espantosa da vacina Covaxin. A questão é de prevaricação e expõe o quanto ele não governa, não quer saber, não dá bola para o que acontece nos ministérios e no País e está mergulhado até o último fio de cabelo no Centrão, na defesa dos filhos, na sua própria ideologia e, acima de tudo e de todos, na sua reeleição.
O funcionário concursado Luís Ricardo Miranda e seu irmão, deputado Luis Miranda, foram à residência oficial do presidente num sábado, relataram a pressa e a pressão no Ministério da Saúde em favor da Covaxin e entregaram a ele a nota fiscal (NF) com discrepâncias graves em relação ao contrato. Não erros burocráticos, superficiais nem “de digitação”, mas uma evidente tentativa de roubo do dinheiro público. Na compra de vacinas!
A NF previa o pagamento para uma empresa não citada no contrato e que, ora, ora, é, nada mais nada menos, uma offshore com sede em paraíso fiscal e patrimônio de US$ 1 mil. O pagamento de US$ 45 milhões seria integralmente antecipado e o “importador”, ou seja, nós, o povo brasileiro, arcaríamos com frete e seguro.
Soma daqui, diminui dali, a quantidade de doses era uma no contrato e outra na NF e mais: o Brasil pagaria antecipadamente por vacinas com prazo de validade prestes a vencer. Ah! Pelo preço mais caro do que o de todas as demais, inclusive da desprezada Pfizer.
Mais do que não ter sido autorizada, a Covaxin tinha sido desautorizada pela Anvisa e não era reconhecida nem pela agência reguladora do seu país, a Índia. Não bastasse, sua representante no Brasil, a Precisa, é envolta em suspeitas no setor público, por superfaturamento e má qualidade de testes de covid, além de sócia da Global, processada por receber a grana, mas não entregar os medicamentos para... o Ministério da Saúde.
Não precisa ser advogado, economista, contador, basta saber ler para ver que aí tem! Responsável pela área de importações do ministério, Luiz Ricardo Miranda leu, assustou-se, contou para o irmão, aliado de Bolsonaro, e foram ambos relatar ao presidente, que prometeu levar para a PF e não fez nada. Agora ataca os dois e inventa que repassou para o general Eduardo Pazuello, o bobo que mata todas as bolas no peito.
A revista Veja informa que o empresário Francisco Maximiano, da Precisa, foi introduzido no BNDES pelo 01, senador Flávio Bolsonaro. Ok, acontece. Quem está no olho do furacão é o ex-ministro da Saúde Ricardo Barros, líder de todos os governos anteriores e do atual. Segundo o deputado Miranda, o presidente nem ficou surpreso com o novo “rolo” do próprio líder.
Por que Bolsonaro lavou as mãos? Deixar para lá uma roubalheira desse tamanho na Saúde só para preservar Ricardo Barros? Quando Ricardo Salles cai por denúncia de corrupção? Em nome do que, e de quem, o ministro Onyx Lorenzoni e o coronel Élcio Franco jogam lama, PF e MP em cima dos irmãos Miranda, acusando uma nota fiscal verdadeira de fraudulenta? Não é fake news, é calúnia, difamação e coação de testemunhas.
Enquanto suas condições de governabilidade e seu governo esfarelam ao vivo e em cores, o que faz Jair Bolsonaro? Motociatas, ameaças ao Supremo, ataques a jornalistas (mulheres, em geral) e campanha contra máscaras e a urna eletrônica, um orgulho nacional. As pesquisas dizem que não está dando certo.