sábado, 24 de novembro de 2018

Guru dos quadrados

Sou irresistível. Eles leem as coisas que eu escrevo e levam a sério
Olavo de Carvalho, guru dos Bolsonaro

Bolsonaro: pressões e apelo à unidade

O mais interessante das alternâncias de poder é ver o sujeito que dizia ser tudo muito simples ter, agora, que se moer no áspero da realidade. Fazer oposição é fácil. O difícil é o governo e seu duro ofício: administrar pressões e arbitrar interesses, sob a desconfiança de todos. Reunir, durante a campanha, vasta gama de apoios composta de grupos heterogêneos e contraditórios em torno de ideias amplas, principistas, abstratas e morais é a parte mais tranquila do processo. O governo, porém, requer escolhas e definições que alegrarão a poucos e, inevitavelmente, desagradarão muitos. Escolher é sempre “escolher contra”. Faz parte.

Passada a adrenalina da batalha eleitoral e a alegria da vitória, ficam as pressões; setores e colaboradores que esperam ser recompensados pelo apoio circunstancial ou decidido, de coração ou de oportunismo, de todo tipo. E todos, é claro, julgam-se capazes de ocupar os cargos e papéis mais elevados na administração; deter o poder. E, admitido que no primeiro escalão não haverá espaço para todos, iniciam-se coalizões internas, começa o jogo de desqualificação de antigos aliados. Não tem jeito, a disputa é inerente ao momento.

E é bom se conformar porque assim será por quase todo o governo, até que nova rinha eleitoral recomece o jogo e reaglutine em torno da manutenção do poder central os interesses que se dispersaram, sem rompimentos definitivos.


Também é certo é que sempre haverá defecções, cacos e restos de relacionamento espalhados pelo caminho sem conseguir se conjugar com os outros interesses do poder. Há intolerância também internamente e as ambições se tornam inconciliáveis. Foi assim com o PMDB de Tancredo, que deu em Sarney sob a tutela de Ulysses, despertando o quercismo, desaguando, enfim, no que viria a ser o PSDB da primeira fase.

Foi assim com o “collorato” que derreteu tão logo a popularidade se esvaiu, abandonando Fernando Collor, deixando-o só, como implorou que não o fizessem. Foi assim com os tucanos, de esquerda e socialdemocratas, unidos à oligarquia do PFL; bloco que se fragmentou primeiro nas escaramuças sempre presentes entre supostos desenvolvimentistas e denominados monetaristas, depois, na disputa entre Roseana Sarney e José Serra, na sucessão de Fernando Henrique Cardoso.

Não foi diferente com o PT de empolgação socialista e natureza pragmática, que logo de saída gerou rachas que resultaram no PSOL. Depois, na disputa surda entre Dirceu e Palocci, e mais tarde na emergência da confusão dilmista, que foi a assunção do PT de verdade o qual se urdiu e lascou-se por si próprio.

De modo que, antes de afundarem por efeito da oposição, os grandes blocos de poder naufragam na trama interna, pelas disputas de grupos, pelo cansaço e pela carnificina comum que se dá na sucessão do líder. É questão de tempo. Pode durar 20 anos, dois mandatos, apenas um, alguns meses… É nesse momento que se testa a resiliência do líder.

Pois o líder não é o mais preparado tecnicamente, nem o mais respeitado na relação entre os poderes ou o mais esperto para escapar às armadilhas dos inimigos. O líder é aquele que, antes de tudo, vocaliza o geral do grupo e o aglutina em torno de si.

Já se percebe esse processo nesses primeiros movimentos da formação do governo Bolsonaro, sem que se saiba, ainda, se o ex-capitão tem habilidades para reunir os seus em torno de si.

O bastidor de qualquer transição é feito desse material e isto é inerente aos jogos de poder desse momento. Nada tem a ver com honestidade e boas intenções; é da natureza humana. Tolice supor que com Jair Bolsonaro pudesse ser diferente. O tiroteio amigo despertado com a definição do nome de Joaquim Levy, acolhido com enorme má vontade, ou no balão de ensaio que fritou Mozart Neves para o ministério da Educação, que foi sem nunca ter sido, são casos típicos, sujeitos a tornarem-se apenas mais dois casos que ilustram justamente a dificuldade do poder.

***

O bolsonarismo se supõe capaz de governar acima do fisiologismo e a despeito dos partidos. Indica que pode fazê-lo por meio de bancadas temáticas, que perpassam quase todas as legendas e que se autonomizam das direções partidárias. Pode ser, mas esta é uma tese que ainda deverá ser provada. Parece pouco provável, no entanto.

Porque as tais bancadas “da bala”, “do boi”, “da bola” e “da bíblia” operam por pactos mínimos, se coesionam em torno de interesses básicos e são divergentes em muitos aspectos, mesmo dentro de seus temas originais. Logo, não foram um todo monolítico, sendo eivadas de conflitos e pressões internas.

Ora, é fácil compreender: nem todo evangélico opera no mesmo software que Magno Malta, por exemplo. Nem todo deputado-delegado professa a liberação das armas, nem todo ruralista é latifundiário; nem todo latifundiário é improdutivo. Há nuances internas e nuances ainda maiores entre um grupo e os outros. A agenda da sociedade rural não é igual ao pessoal da bola; e estes não se aproximam necessariamente dos “da bíblia”, que se distinguem em muitos aspectos da moçada “da bala”.

Não será, portanto, em torno de princípios gerais que se operará a unidade política, pois são muitos, diversificados e pouco convergentes, quando não contraditórios. Sabe também Jair Bolsonaro que a ele não estarão tão livres e facilitadas as portas do fisiologismo, pois foi ele mesmo quem tratou de colocar uma trava entre elas. E morderá a língua e perderá apoio e respeito se agora recorrer àquilo que amaldiçoou com tanta ênfase.

Não foi por outro motivo que na última quarta-feira, reunido com parlamentares eleitos pelo seu PSL, Bolsonaro declarou a seus parceiros: “O parlamento é muito importante, precisamos do parlamento e precisamos, acima de tudo, dar o exemplo. […] Estamos no mesmo barco. Se eu afundar, não é vocês não, é o Brasil todo que vai afundar junto. E não teremos retorno”.

Premido por pressões dentro de casa, o presidente eleito parece ter percebido que sua alternativa de início é busca um clima de emergência e risco, onde o “pior” seja entendido como o pior para todos. É o apelo de um homem que pede compreensão, entendimento e moderação — sem ser ele exatamente moderado. É a tentativa de fazer-se o líder que coesiona seu grupo em torno de si. Resta ver se isto bastará.
Carlos Melo

'Os privilegiados são analisados por pessoas; as massas, por máquinas'

Cathy O’Neil (Cambridge, 1972), doutora em matemática pela Universidade Harvard, trocou o mundo acadêmico pela análise de risco de investimento dos bancos. Achava que esses recursos eram neutros do ponto de vista ético, mas sua ideia não tardou a desmoronar. Percebeu como a matemática poderia ser “destrutiva” e empreendeu uma mudança radical: somou-se ao grupo de finanças alternativas do movimento Occupy Wall Street, que nasceu em 2011 em Nova York para protestar contra os abusos do poder financeiro, e começou sua luta para conscientizar sobre como o big data “aumenta” a desigualdade e "ameaça" a democracia.

Os conteúdos são ordenados em função de quem fala mais no Twitter ou no Facebook. Isso não é matemática, são discriminações feitas por humanos. A pessoa que desenvolve o algoritmo define o que é o sucesso

A autora do livro Weapons of Math Destruction (“armas de destruição matemática”, um trocadilho com a expressão “armas de destruição em massa”, inédito no Brasil), que também assessora start-ups, defende que os algoritmos geram injustiças porque se baseiam em modelos matemáticos concebidos para reproduzir preconceitos, equívocos e vieses humanos. "A crise financeira deixou claro que a matemática não está apenas envolvida em muitos dos problemas do mundo, como também os agravam", considera.

O’Neil, que participou há algumas semanas de um fórum sobre o impacto dos algoritmos nas democracias, organizado pelo Aspen Institute da Espanha e pela Fundação Teléfonica, respondeu às perguntas do EL PAÍS.
Você afirma em seu livro que a matemática é mais importante do que nunca nos assuntos humanos.

Resposta. Não acho que seja a matemática, e sim os algoritmos. Essa é parte do problema; estamos transferindo nossa confiança da matemática para certos modelos que não entendemos como funcionam. Por trás deles há sempre uma opinião, alguém que decide o que é importante. Se olharmos as redes sociais, há vieses. Por exemplo, os conteúdos são ordenados em função de quem fala mais no Twitter ou no Facebook. Isso não é matemática, são discriminações feitas por humanos. A pessoa que desenvolve o algoritmo define o que é o sucesso.

Por trás dos algoritmos há matemáticos. Eles têm consciência do sistema de vieses que estão criando?

Não são necessariamente matemáticos, e sim especialistas capazes de lidar com fórmulas lógicas e com conhecimentos de programação, estatística e matemática. Sabem traduzir a forma de pensar dos humanos para os sistemas de processamento de dados. Muitos deles ganham muito dinheiro com isso e, embora do ponto de vista técnico sejam capazes de detectar essas falhas, preferem não pensar nisso. Em empresas como o Google, há quem se dê conta, mas, se manifestarem seu compromisso com a justiça, os advogados da companhia lhes farão se lembrar do compromisso com os acionistas. É preciso maximizar os lucros. Não há incentivos suficientes para transformar o sistema, para torná-lo mais justo. O objetivo ético não costuma ir acompanhado de dinheiro.

Você denuncia que os algoritmos não são transparentes, que não prestam contas do seu funcionamento. Acha que os Governos deveriam regulamentá-los?

São opacos inclusive para os que os desenvolvem, que, muitas vezes, não são suficientemente pagos para entender como funcionam. Tampouco comprovam se cumprem as leis. Os Governos devem legislar e definir, por exemplo, o que torna um algoritmo racista ou sexista.

Em seu livro, você menciona o caso de uma professora norte-americana que foi demitida por decisão de um algoritmo. Acha possível medir a qualidade humana com um sistema informático?

O distrito escolar de Washington começou a usar o sistema de pontuação Mathematica para identificar os professores menos produtivos. Foram demitidos 205 docentes depois que esse modelo os considerou maus professores. Atualmente não temos como saber apenas com dados se um trabalhador é eficiente. O dilema se você é ou não um bom professor não pode ser resolvido com tecnologia, é um problema humano. Muitos desses professores não puderam reclamar, porque o secretismo sobre como o algoritmo funciona lhes priva desse direito. Ao esconder os detalhes do funcionamento, fica mais difícil questionar a pontuação ou protestar.

Qual é a chave para poder fazer isso no futuro?

É um experimento complicado. Primeiro é preciso haver um consenso na comunidade educacional sobre quais elementos definem um bom professor. Se a intenção é avaliar se ele gera suficiente curiosidade nos alunos para que aprendam, qual é a melhor fórmula para medir isso? Se entrarmos numa classe e observarmos, poderemos determinar se o docente está incluindo todos os alunos na conversa, ou se consegue que trabalhem em grupo e cheguem a conclusões, ou se só falam entre si em aula. Seria muito difícil programar um computador para isso. Os especialistas em dados têm a arrogância de acreditar que podem resolver essas questões. Ignoram que primeiro é preciso um consenso no campo educacional. Um algoritmo estúpido não vai resolver uma questão sobre a qual ninguém está de acordo.