sábado, 5 de abril de 2025

Pensamento do Dia

 


Onde foi que erramos?

Diversos países têm um livro de referência ao qual os cidadãos, de tempos em tempos, recorrem para retemperar seu entendimento da sociedade em que vivem.

O exemplo hors-concours é, com certeza, a França, que compartilha com os Estados Unidos a obra-prima de Alexis de Tocqueville A Democracia na América (1835). O Brasil é um caso especial. Para identificar o “nosso” livro, devemos, primeiro, descartar a geração dos críticos da Constituição Republicana de 1891, quase todos medíocres e propensos a ouvir o canto de sereia de Mussolini. Depois da Segunda Guerra, sim, passamos a contar com autores do quilate de Victor Nunes Leal, Raymundo Faoro, Simon Schwartzman e José Murilo de Carvalho. Mas, sem demérito para nenhum desses, penso que o status de “clássico” cabe ainda a Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicado em 1936 e diversas vezes reeditado.


Minha avaliação não se deve apenas à beleza da escrita e à vastidão do conhecimento histórico de Sérgio Buarque. Deve-se, a meu juízo, à atualidade da questão que ele suscitou. Não nos esqueçamos de que a obra a que me refiro data de meados dos anos 1930, época em que a maioria de nossa população vivia no interior e em pequenas comunidades e era quase toda analfabeta. Mesmo assim, o que Sérgio se indagou foi: por que o Brasil parecia incapaz de construir um verdadeiro Estado? Sim, caro leitor, eu escrevi “parecia”, mas talvez o verbo me esteja traindo, pois não descabe indagar se, finalmente, temos um verdadeiro Estado. Quem aterrissa em Brasília por certo avista, lá embaixo, o Palácio do Planalto, as conchas invertidas do Congresso e todos os demais edifícios que sugerem a pujante presença de um Estado. O saudoso mestre Hélio Jaguaribe costumava dizer que o Estado brasileiro era o mais moderno do Terceiro Mundo. Mas, nesses quase 90 anos, algo parece não ter se encaixado. Pior: a estagnação da economia é um claro reflexo da debilidade do Estado.

Raízes do Brasil parte de um valioso acerto. Ou pelo menos de um aparente acerto, ao descartar a monocultura, a escravidão, o patriarcalismo – ou seja, toda a cantilena da colonização ibérica. Mas logo reafirma que o principal impedimento à emergência do Estado são os grupos primários – leia-se, a família extensa, avessa a qualquer impessoalidade. Aqui, sem dúvida, começamos a pisar em terra escorregadia. “A solidariedade entre (grupos primários) – o autor prossegue – existe somente onde há vinculação de sentimentos mais do que relações de interesses – no recinto doméstico ou entre amigos” (Holanda, página 10). Essa premissa leva-o a tipificar a contraposição entre laços sentimentais e Estado remontando à tragédia Antígona, de Sófocles, escrita há mais de 2.400 anos. A razão dessa escolha é indicada nesta bela passagem: “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e ainda menos uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição. É só pela transgressão da ordem doméstica e familiar que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade”. O problema é que Sérgio Buarque, embora invoque o antagonismo entre a heroína Antígona e Creonte, o rei de Tebas, para frisar o caráter universal da incompatibilidade entre os dois referidos, baseia praticamente toda a sua exemplificação histórica e cultural na história ibérica.

Descontem-se pequenos equívocos de leitura, como o que ocorre na página 101, em que Sérgio se refere a Antígona como irmã do rei Creonte. Na peça de Sófocles, ela não é irmã, mas futura nora, por ser noiva de Héron, filho de Creonte. Mais importante é o fato de Sérgio incorrer num equívoco que atribui a Max Weber, qual seja, o de dar um peso excessivo à esfera dos valores, em detrimento de fatores mais objetivos. Referindose à ideia de um Estado em sua plena configuração impessoal – já “depurado” de todo vínculo primário, Sérgio afirma: “A ideia de uma espécie de entidade imaterial e impessoal, pairando sobre os indivíduos e presidindo os seus destinos, é dificilmente inteligível para os povos da América Latina” (Holanda, página 138).

Ora, dessa formulação deveria decorrer que o Estado em sua plena configuração requer uma superestrutura normativa capaz de limitar quaisquer excessos que ocorressem entre os cidadãos, tal função não poderia ficar na dependência de uma ordem normativa apenas valorativa, e sim a uma ordem jurídica respaldada na força.

Saltemos para 2025. Hoje, uma enorme parcela da população vive em grandes metrópoles, não em comunidades rurais. A força de sentimentos de discórdia ou de concórdia como balizadores do comportamento social declinam de forma acelerada. A criminalidade não só aumenta, como se torna a cada dia mais bestial. E mesmo em Brasília, onde o esqueleto de um Estado é perceptível, o que mais vemos são interesses (não sentimentos) antiestatais.

Assim falou Zaratustra

“Para os puros tudo é puro”: 
– Assim fala o povo. 
– Mas eu vos digo: para os porcos tudo é porco!

Por isso os fanáticos e os que curvam a cerviz,
que também têm o coração inclinado, predicam
desta forma:
“O próprio mundo é um monstro lamacento!”

Porque todos esses têm o espírito sujo,
especialmente os que se não dão paz nem sossego
enquanto não veem o mundo por trás:
são os crentes no mundo posterior.

A esses lhes digo eu na cara, enquanto não
soe muito bem: o mundo parece-se com o homem por ter também traseiro; isto é uma verdade!

Há no mundo muita lama; isto é
muita verdade! Mas nem por isso o mundo é um
monstro lamacento!

É sensato haver no mundo muitas coisas
que cheirem mal; o próprio asco cria asas e
forças que pressentem mananciais!

Até nos melhores há qualquer coisa repugnante, e até
o melhor é coisa que se deve superar!

Oh! meus irmãos! é sensato haver
muita lama no mundo!
Friedrich Nietzsche

'Éramos todos civis'

"Sou o único sobrevivente que viu o que aconteceu com meus colegas", diz Munther Abed, enquanto mostra fotos de seus colegas paramédicos no telefone.

Ele sobreviveu ao ataque israelense que matou 15 profissionais de emergência em Gaza na madrugada de 23 de março, ao se jogar no chão na parte de trás da ambulância, enquanto seus dois colegas que estavam na frente foram atingidos pelos disparos.

No ataque, cinco ambulâncias, um caminhão dos bombeiros e um veículo da Organização das Nações Unidas (ONU) foram atacados "um por um" na região de al-Hashashin, no sul de Gaza, informou a ONU.

Os 15 corpos foram recuperados de uma vala comum no último domingo.


"Saímos da base perto do amanhecer", Munther contou a um dos jornalistas freelancers que trabalham em Gaza.

Ele explicou como a equipe de emergência do Crescente Vermelho Palestino, da agência de Defesa Civil de Gaza e da agência da ONU para refugiados palestinos (UNRWA, na sigla em inglês) se reuniu nos arredores da cidade de Rafah, no sul do país, depois de receber informações sobre tiros e feridos.

"Por volta das 4h30, todos os veículos da Defesa Civil estavam a postos. Às 4h40, os dois primeiros veículos saíram. Às 4h50, chegou o último. Por volta das 5h, o veículo da agência [da ONU] foi alvo de disparos diretos na rua", diz ele.

O Exército israelense afirma que suas forças abriram fogo porque os veículos estavam se movimentando de forma suspeita em direção aos soldados sem coordenação prévia, e com as luzes apagadas. E também alega que nove membros do Hamas e da Jihad Islâmica Palestina foram mortos no incidente.

Munther contesta esta versão.

"Durante o dia e à noite, é a mesma coisa. As luzes externas e internas ficam acesas. Tudo indica que se trata de um veículo ambulância que pertence ao Crescente Vermelho Palestino. Todas as luzes estavam acesas até que o veículo ficou sob fogo direto", diz ele.

Depois disso, ele contou que foi retirado dos escombros por soldados israelenses, preso e vendado. Ele afirmou que foi interrogado por mais de 15 horas antes de ser liberado.

A BBC apresentou as alegações dele às Forças de Defesa de Israel (FDI), mas ainda não obteve resposta.

"As FDI não atacaram aleatoriamente uma ambulância", afirmou o ministro das Relações Exteriores de Israel, Gideon Saar, quando questionado em uma entrevista coletiva de imprensa, ecoando as declarações das FDI.

"Vários veículos descoordenados foram identificados avançando de forma suspeita em direção às tropas das FDI, sem faróis ou sinais de emergência. Os soldados das FDI abriram então fogo contra os veículos suspeitos."

Ele acrescentou que "após uma avaliação inicial, foi determinado que as forças haviam eliminado um terrorista militar do Hamas, Mohammed Amin Ibrahim Shubaki, que participou do massacre de 7 de outubro, junto a outros oito terroristas do Hamas e da Jihad Islâmica".

O nome de Shubaki não consta da lista dos 15 profissionais de emergência mortos— oito deles eram paramédicos do Crescente Vermelho Palestino, seis eram socorristas da Defesa Civil e um era membro da equipe da UNRWA.

Israel não deu informações sobre o paradeiro do corpo de Shubaki, nem apresentou qualquer evidência da ameaça direta que os profissionais de emergência representavam.

Munther rejeita a alegação de Israel de que o Hamas pode ter usado as ambulâncias como fachada.

"Isso é totalmente falso. Todos nas equipes eram civis", diz ele.

"Não pertencemos a nenhum grupo militante. Nosso principal dever é oferecer serviços de ambulância e salvar vidas. Nem mais, nem menos."

Os paramédicos de Gaza transportaram os corpos de seus próprios colegas para os funerais no início desta semana. Houve um clamor de pesar e apelos por prestação de contas. Um pai enlutado disse à BBC que seu filho foi morto "a sangue frio".

As agências internacionais só puderam acessar a área para recuperar seus corpos uma semana após o ataque. Eles foram encontrados enterrados na areia junto às ambulâncias, o caminhão dos bombeiros e o veículo da ONU destruídos.

Sam Rose, diretor interino do escritório da UNRWA em Gaza, declarou: "O que sabemos é que 15 pessoas perderam a vida, que foram enterradas em covas rasas em um banco de areia no meio da estrada, tratadas com total indignidade e o que parece ser uma violação do direito humanitário internacional".

"Mas somente se realizarmos uma investigação, uma investigação total e completa, é que poderemos chegar ao fundo da questão."

Israel ainda não se comprometeu a realizar uma investigação. De acordo com a ONU, pelo menos 1.060 profissionais de saúde foram mortos desde o início do conflito.

"Sem dúvida, todos os funcionários de ambulância, todos os paramédicos, todos os trabalhadores humanitários dentro de Gaza neste momento se sentem cada vez mais inseguros, cada vez mais frágeis", afirma Rose.

Um paramédico segue desaparecido após o incidente de 23 de março.

"Eles não eram apenas colegas, mas amigos", diz Munther, enquanto passa nervosamente as contas de oração pelos dedos. "Costumávamos comer, beber, rir e fazer piadas juntos... Eu os considero minha segunda família."

"Vou expor os crimes cometidos pela ocupação [de Israel] contra meus colegas. Se eu não fosse o único sobrevivente, quem poderia ter contado ao mundo o que fizeram com eles, quem poderia contar sua história?"

As duas anistias do bolsonarismo

A medida que avança no STF o julgamento dos golpistas do bolsonarismo, cresce no Congresso e nas ruas a mobilização em torno de uma possível anistia. Buscando legitimar o perdão aos golpistas, a ultradireita foca seus esforços nos condenados pela intentona do 8 de Janeiro, estejam presos ou foragidos da justiça. É mais fácil tentar justificar o perdão a um bando de palermas manipulados pelos artífices do golpe do que isentá-los de responsabilidade.

Os palermas, contudo, não são meros inocentes úteis. São gente que, antes de invadir e destruir as sedes dos Três Poderes, acampou por semanas diante de instalações militares, clamando pelo cometimento do maior dos crimes, o golpe de Estado. Este é o maior dos crimes porque não se limita à transgressão pontual de alguma lei. Em vez disso, busca derrubar o próprio Estado de Direito, sem o qual nenhuma lei legítima vigora. Se tanto, após um golpe passa a viger uma pretensa legalidade, imposta por usurpadores que alegam legitimar a si mesmos graças a terem sido vitoriosos no emprego da violência para derrocar a ordem legal sob o pretexto de uma ilusória “causa justa”.


Ora, a palermada golpista não ocorreu diante das casernas à toa. Os ali reunidos pediam que militares saíssem de seus quartéis para efetuar uma violenta virada de mesa. Não fosse esse o objetivo, teriam se reunido noutro lugar – em frente a tribunais ou igrejas, por exemplo, apelando à justiça dos homens ou de Deus. Por isso mesmo, quando saí­ram da frente de um quartel em Brasília para assaltar os Três Poderes, pretenderam produzir o que não haviam conseguido após meses de acampamento golpista, uma ação militar. Caísse o governo recém-empossado nessa esparrela, teria decretado uma operação de garantia da lei e da ordem (GLO), convocando os militares a debelar o caos produzido justamente por aqueles que, por meses (e incitados a isso pelo bolsonarismo), imploraram pela intervenção castrense.

Aprovar a anistia para essa ­arraia-miú­da do golpismo significa normalizar o golpe de Estado, pois implica afirmar, por meio de um diploma legal, que o maior dos crimes não é coisa grave. Uma das várias falácias brandidas por Bolsonaro et caterva­ é que isso seria necessário para “pacificar o País”. Ora, mas quem é que perturbou e segue perturbando a paz neste País? Não é quem insistiu (e segue insistindo) em questionar sem qualquer fundamento factual a licitude das eleições? Havia um meio simples de manter o Brasil pacificado: o respeito à ordem legal, às instituições democráticas e ao resultado das urnas. Quem se negou a isso, perturbando a paz, foram Bolsonaro e sua gangue. Para eles, a pacificação vem do perdão a seus crimes, de modo que possam continuar a cometê-los. Que paz seria essa?

Contudo, se a anistia jurídica ainda é algo incerto (não me arrisco a dizer improvável), a anistia política já é um fato. Ela se dá pela normalização da ultradireita por políticos, partidos, órgãos de imprensa e analistas convencionais. Ora, quem numa eleição busca o apoio de Bolsonaro, coliga-se com ele e aparece a seu lado em atos de campanha, está o normalizando e, portanto, anistiando seu golpismo.

E como classificar quem, como Tarcísio de Freitas, sobe ao lado de Bolsonaro num palanque, clamando pela anistia aos golpistas do 8 de Janeiro e afirmando que o ex-presidente e seus colegas de banco dos réus são perseguidos políticos? Ora, trata-se de alguém em negacionismo democrático, seja por supor que todas as evidências colhidas pela investigação da Polícia Federal são invenções (ou, quem sabe, miragens), seja por acreditar que não há mal algum em tentar golpes de Estado. Da mesma forma, está em negacionismo quem, diante disso, afirma ser Tarcísio um político moderado ou de centro. Igualmente, normaliza-se a ultradireita, neste caso não em sua forma tosca e explícita, mas na pretensiosa e dissimulada.

Eis a gravidade não só de aprovar uma anistia legal para o golpismo bolsonarista (da arraia-miúda, das lideranças ou do médio escalão), mas de seguir aprovando a anistia política ao tratar como normal o extremismo direitista com modos. Acreditar em bolsonarismo moderado (isto é, em extremismo moderado, evidente oxímoro) equivale a anistiar politicamente o golpismo que ameaçou a democracia no passado recente e seguirá ameaçando-a no futuro próximo, se lhe for permitido. Ou alguém crê que, mesmo que o atual projeto de anistia aos golpistas naufrague no Congresso, outro não surgirá com a eleição de um aliado seu para a Presidência?

Quem são os invisíveis e ausentes no julgamento do 8 de Janeiro

Os aspectos mais retrógrados e sombrios da sociedade brasileira vieram à tona com a subversão olavo-bolsonarista em aspectos que nos perturbam e nos colocam diante daquilo que somos e não julgamos ser. Da cabeleireira ao general, todos expressam o fato de que o país está à beira do abismo de sua história. Ao menos um dos brasis que conhecemos está chegando ao fim. Resta saber qual deles.

O caso da cabeleireira sugere que uma inocente mãe de família, por ter participado de uma alegre excursão a Brasília e açulada por circunstantes movidos pelo mesmo espírito, depredou uma obra de arte, a escultura “A Justiça”, do artista plástico mineiro Alfredo Ceschiatti. Escrevendo-lhe no peito “Perreu, Mané” (sic).

Uma bandeira brasileira foi amarrada no pescoço da escultura, mais ou menos como o faziam as centenas de manifestantes que com o mesmo ímpeto invadiram e depredaram os palácios dos Três Poderes.

A ocorrência por ter mobilizado os contraditórios sentimentos que formam a personalidade nacional transformou-se em símbolo dessas contradições. Há nela todos os indícios do que não conseguimos ser, que manifestamos naquilo que achamos que somos, os patriotas que não somos.


Pátria somos quando estamos comprometidos com o nosso nós. O olavo-bolsonarismo nos dividiu e fragmentou, nos privou de pátria. Gente que vai ao governo americano pedir uma intervenção em nosso país, para assegurar interesses que não são os de nossa pátria, trai a pátria. Gente que ataca as instituições, que planeja assassinato de autoridades, é inimiga da pátria e inimiga de todos nós.

Gente, civil ou militar, que não sabe a diferença entre um botequim de Xiririca e os palácios que em Brasília abrigam as instituições, ao se comunicar por meio de palavrões, diz que por ela a pátria acabou. Porque pátria é também uma linguagem, a de uma unidade política de referência comum a todos. Religiosos, não só evangélicos que aceitam naturalmente essa linguagem são o quê?

O ato em torno da escultura de Ceschiatti reuniu e consagrou várias ignorâncias. A de não saber escrever. “Perreu”, em lugar de “perdeu”. A de achar que escultura é mera estátua e não saber que é obra de arte, obra de conhecimento e, nos países civilizados, de respeito e de admiração.

Não é estranho, pois, que os subversivos, imediatamente após a decisão do STF de transformar os acusados em réus, já têm montado o discurso de continuidade do golpe. Começam artimanhas para justificar as próprias ilegalidades com base na própria lei. Fragmentar o criminoso coletivo para diluir o delito na suposta multiplicidade de individualidades.

Justiça e Parlamento parecem propensos a cair na armadilha. O que aconteceu no dia 8 de janeiro de 2023 foi crime de multidão. Tem explicação sociológica e psicológica como crime de um sujeito único, um sujeito social e político. O próprio Código Penal atenua, mas não perdoa a participação nele.

Na imensa pesquisa que fiz sobre linchamentos no Brasil, crime de multidão, 2 mil casos num período de mais de 20 anos, ficou evidente que os participantes nesse tipo de violência coletiva têm consciência de que “linchar não é crime”, o que não é verdade.

Em seus depoimentos, os participantes da insurreição de 8 de janeiro de 2023 dão várias indicações de que se consideravam convocados por Bolsonaro e pelo Exército para depor o presidente eleito da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Aqueles acampamentos às portas dos quartéis só foram possíveis porque legitimados por diferentes modos de solidariedade e apoio de militares, de empresários e igrejas e seitas.

A multidão é um ente coletivo. Desde Gustave Le Bon, o médico e psicólogo que no século XIX estudou o surgimento e a ação desse sujeito social da modernidade, sabe-se que a personagem da turba é instrumento voluntário do que a turba faz. Ela se dirige com precisão aos objetivos e símbolos disseminados da ação coletiva.

Neste caso atual, a conspiração golpista desde 2021 era meramente indicial. A multidão subversiva da Praça dos Três Poderes revelou-lhe os meandros e os laços de unidade, o invisível tornou-se visível e deu sentido ao que já se vinha vendo.

Houve uma omissão na investigação. Muitos dos que foram presos e interrogados disseram que foram a Brasília orar pelo Brasil, mesmo as velhinhas com Bíblia nas mãos. De fato as filmagens registraram exaltados pentecostais orando aos berros dentro dos palácios, exorcizando o satanás do poder, isto é, das instituições democráticas.

A convergência das justificativas dos acusados indica um dos sujeitos invisíveis da mobilização e da violência, as igrejas e seus pastores. Não foram indiciados e continuam conspirando.