segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Bolsonaro, ano 1

Ele veio como um terremoto, mobilizando as profundezas da sociedade. Assustou, verdadeiramente. E continua a assustar, pois o tremor que se sentiu continua, dia após dia, sob fogo cerrado de um discurso intolerante e de uma linguagem marcada pela confrontação permanente, sem remissão nem acordos. Em meio ao turbilhão que se instalou com a vitória e ascensão ao poder de Jair Bolsonaro, já é tempo de entender que ele não veio “do nada”. O antipetismo que se formou desde as manifestações de 2013 até o impeachment de Dilma Rousseff foi o que essencialmente o elegeu. Mas há mais do que isso.

É necessário, de saída, reconhecer que Bolsonaro foi eleito dentro dos parâmetros democráticos que nos guiam e, portanto, sua vitória está coberta de legitimidade. Interessa a Bolsonaro ultrapassar a imagem de que seu êxito representou apenas um instante fugaz. Quer conclamar homens e mulheres a segui-lo e refazer o caminho de sua vitória eleitoral, rumo a outra, a de 2022. Mesmo com os olhos mergulhados no passado, busca alterar o tempo histórico. Mais importante do que conquistar posições que lhe garantam trânsito sustentável em direção ao futuro, importa instituir um movimento, em tempo curto, que o leve a mais um mandato.

No já longínquo 2018, o candidato derrotado do PT, Fernando Haddad, balbuciou palavras referentes à “resistência” de uma “outra nação”, mas permaneceu imóvel, como seu partido, esperando a “soltura” de seu guia, que continuaria a vociferar como antes, reiterando que nada mudara em sua visão. Diferentemente de Bolsonaro, Lula movimenta-se no sentido de voltar a ter posições mais favoráveis nas relações de força que compõem o difícil e complexo terreno da política brasileira nos dias que correm. Na linguagem preferida do velho líder: “corre muito, quer o jogo concentrado nele, mas marca poucos gols”!

A consigna de “resistência” a Bolsonaro foi aceita quase que generalizadamente, mas deveria ser traduzida por uma estratégia de construção de uma “oposição democrática” no corpo das instituições, na opinião pública e na sociedade, cuja principal missão deveria ser a de evitar que “as inclinações autoritárias do presidente eleito e do seu entorno” se transformem em “regime político”, como expusemos em Política Democrática Online 2, em novembro de 2018 (pp.18-19). Transcorrido um ano do governo Bolsonaro, não parece que tal objetivo tenha perdido sua validade, muito ao contrário. Atesta-se, por outro lado, a incapacidade do PT em dar corpo e solidez a essa estratégia.

O ano passou com Bolsonaro fazendo questão de se afirmar como o comandante de um governo de “destruição” de tudo que se havia construído nos 30 anos de vigência da Constituição de 1988. Fez questão de não evitar e mesmo assegurar suas posições homofóbicas, racistas, antiecológicas, antiparlamentares, anti-institucionais, antidemocratas ou similares. Foi mais corporativo, em defesa dos diversos grupos militares e religiosos que o apoiam, do que reformista. Mesmo quanto à Reforma da Previdência, aprovada em 2019, Bolsonaro não pode proclamar como uma vitória sua, uma vez que pouco ou nada fez para que ela passasse na Câmara e no Senado.

Diante das dificuldades de governança e do declínio em sua popularidade, atestado nas pesquisas, o presidente não se furtou a estimular especulações a respeito da sua sucessão. Sem um projeto claro a perseguir como marca de governo, Bolsonaro passou o ano fazendo com que a questão eleitoral de 2022 fosse o terreno oculto a lhe possibilitar uma contraposição retórica com seus possíveis adversários. O presidente da República não teve dúvidas em instrumentalizar antecipadamente sua sucessão para sondar como andam seus apoios, sem necessitar, mais uma vez, ceder à articulação com o mundo político.

Parece convencido de que investir suas fichas nas correias de transmissão que lhe deram a vitória eleitoral, com prevalência para as redes sociais, poderá lhe garantir a vitória novamente. Permanecer com o percentual de apoio que lhe assegure um lugar no segundo turno em 2022 é o objetivo almejado. Bolsonaro subiu a rampa do Planalto, mas imediatamente retornou ao palanque: é um presidente-candidato, como o foi Lula, o tempo todo, embora os estilos sejam notavelmente diferentes.

Ideologicamente, Bolsonaro é, sem dúvida, um político reacionário e regressivo que, para chegar a ser conservador, necessitaria de um programa de governo consonante com o desenvolvimento brasileiro e com os avanços civilizacionais do Ocidente, mas que supusesse um “freada de arrumação”, visando a garantir ou conservar parte do padrão histórico alcançado em ambas dimensões. Entretanto, Bolsonaro (e seu entorno, filhos inclusos) não chega a ser um conservador. Quer retroagir a marcha da história. Menos ainda um liberal, em termos políticos. Inúmeras vezes vociferou indiretamente contra a Constituição, a “Carta das liberdades e dos direitos”, como a ela se referia o liberal Ulisses Guimarães. Bolsonaro rejeita os vetores emancipatórios contidos nas transformações valorativas da modernidade. As metamorfoses atuais do mundo lhes são inadmissíveis. Identifica-se essencialmente com o mundo do pentecostalismo e seu cortejo de falaciosas restrições.

No plano internacional, Bolsonaro aposta na sua capacidade de anular a dinâmica e os efeitos da globalização entre nós e, por isso, se posiciona claramente contra o globalismo, sustentando um nacionalismo manchado de anacronismo. Diante do irredutível “conflito econômico mundial”, que se expressa de forma global, Bolsonaro não contempla uma perspectiva de cooperação entre os países, isto é, uma política de interdependência que favoreça a convivência entre diferentes e a busca de um destino comum para a humanidade. Sua postura extremista nos tem levado a uma posição subalterna ao atual governo norte-americano, além de vincular o país ao que há de mais reacionário na política europeia.

O “ano 1” projetou um líder que se recusou a formar uma base política no Parlamento, rifou o partido pelo qual se elegeu e busca construir um “novo partido” (Aliança pelo Brasil), de perfil personalista, seguindo as orientações de Olavo de Carvalho, um ideólogo saturado de nostalgia e extremismo. A construção desse partido seria então a resposta do presidente ao isolar-se do mainstream político e procurar consolidar, na sociedade, um movimento que possa lhe dar sustentação e lhe ser estritamente fiel.

Na dimensão reconhecidamente mais exitosa deste “ano 1”, os parcos resultados alcançados na economia são avaliados em meio a fortes suspeitas sobre sua sustentabilidade. A reforma da Previdência acionou, como afirma Luiz Carlos Mendonça de Barros, “a força de uma recuperação cíclica tradicional, que já existia desde o governo Temer (e que) começou a ganhar tração ao longo dos últimos meses. Mas a lentidão desta recuperação, principalmente na questão do desemprego, criou um ambiente de ceticismo entre os analistas e mesmo junto à sociedade” (Valor, 16.12.2019). Em síntese, a economia deu sinais de que está saindo da recessão provocada pelos disparates efetuados no governo de Dilma Rousseff (PT), mas não tem como avançar senão lentamente, mesmo com o rebaixamento dos juros a um nível jamais visto na história recente.

Em um ambiente político mais apropriado à “guerra de posições”, Bolsonaro preferiu a “guerra de movimento”, como o comandante de um “exército” embrionário identificado no “bolsonarismo”. Entretanto, à diferença dos seus pares internacionais, o iliberalismo de Bolsonaro não demonstrou, neste “ano 1”, força real para impor derrotas à democracia, como sistema político. Embora haja uma sensação de ameaça permanente, não há posições conquistadas no sentido de destruir a democracia da Carta de 1988 em seus fundamentos. As oposições resistem institucionalmente, mas não demonstram capacidade de enfrentar a “guerra de movimento” do bolsonarismo.

O “ano 1” de Bolsonaro está focado no segundo mandato. Ele precisa desesperadamente de sua reeleição. Para isso, quer nos manter estacionados politicamente em 2018.
Alberto Aggio

É preciso estar atento e forte

Luzes, ainda que fracas, no túnel da economia, reforma da Previdência feita, até talvez tributária e administrativa ainda este ano. Aos trancos e a despeito dos barrancos e barracos que o presidente Jair Bolsonaro arma, o governo faz que anda. Mas a melhor parte, digna de comemoração, é o que não anda: a retrógrada agenda de costumes. Graças à grita de muitos, nela o governo só colhe reveses.

Bolsonaro já foi avisado pelo presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) de que não há lugar em 2020 para temas como Escola sem Partido, reformulação do Estatuto da Família, Estatuto do Nascituro e questões que envolvam ideologia de gênero. Tudo sem chance de prosperar no horizonte próximo.

Pontos que não dependem do Congresso Nacional, como a vigilância digital de professores que o então ministro Ricardo Vélez tentou impor, foram rejeitados pela sociedade. Tampouco o sucessor Abraham Weintraub emplacou o controle pretendido nas universidades e dificilmente conseguirá manter limites ao ir e vir de cientistas e pesquisadores.



Na sexta-feira, o governo tomou mais uma invertida quando a Defensoria Pública da União recomendou, “por falta de evidências científicas”, que não seja veiculada a campanha de estímulo à abstinência sexual, parte da política pública que a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves quer implantar em nome de reduzir a gravidez precoce.

Bombardeada por todos os lados ao lançar uma ideia que dizia de eficácia comprovada e que mais tarde admitiu não ter dados para tal afirmação, Damares até tentou, nas últimas semanas, argumentar que sexo zero era apenas um dos itens do cardápio de educação dos jovens. Nada crível vindo de alguém que associa sexualidade juvenil a “comportamentos antissociais ou delinquentes”, conforme nota técnica de seu Ministério, e que, publicamente, defendeu que “o método mais eficiente para a não gravidez não é a camisinha, não é o DIU, não é o anticoncepcional, o método mais eficiente é a abstinência".

Pastora e “terrivelmente evangélica”, como ela própria se define, Damares é quem melhor traduz a diabólica pauta de costumes do governo.

Embora diga que não mistura religião com política, antes de assumir o cargo se dedicava a sermões eloquentes com pregações contrárias ao Estado laico: “Chegou a nossa hora, é o momento de a Igreja ocupar a nação. É o momento de a Igreja governar” (Culto, 1/5/2016).

Assim como o chefe, que faz política espetando, mesmo ciente de que será alvo de críticas, Damares se sustenta com frases icônicas que já fizeram dela o melhor do anedotário bolsonarista – “meninos vestem azul, meninas rosa”, “mulher nasceu para ser mãe”, “como eu gostaria de estar em casa numa rede e o meu marido ralando muito para me sustentar e me encher de joias e presentes”, só para citar algumas.

Em defesa da abstinência sexual, chegou às raias da imprudência, ao expor como regra a exceção da sexualidade infantil: “Se vocês me provarem, cientificamente, que o canal de vagina de uma menina de 12 anos está pronto para ser possuído todo dia por um homem, eu paro agora de falar”. Como quem só pensa naquilo, já havia causado espanto (e delírio da plateia) no CPAC Brasil, convescote direitista promovido pelo deputado Eduardo Bolsonaro, ao afirmar: “Estou aqui há 24 horas e ninguém me ofereceu um cigarro de maconha e nenhuma menina introduziu um crucifixo na vagina.”

Para o bem dos direitos e das liberdades, Damares tem enfrentado uma sociedade diligente e atuante. Com isso, nem ela nem outros afoitos ideológicos, como o nazista demitido da Cultura, conseguem emplacar as loucuras que preconizam.

Mas a pastora-ministra vê sua popularidade crescendo na mesma proporção das asneiras que fala. Tem 43% de aprovação, segundo pesquisa Datafolha, perdendo apenas para os 53% do ex-juiz Sérgio Moro. Em um país em digladio constante entre ideologias extremadas, onde o gosto popular é medido por piadas e memes, isso é um perigo.

Ainda que essa turma não tenha conseguido legalizar o atraso, as tentativas continuarão. Na maior parte das vezes abusando, sem qualquer escrúpulo, dos quase irresistíveis apelos à fé e à família.

Mais do que nunca é preciso estar atento e forte.

Paisagem brasileira

Recanto de Goiás (1982), Edson Franceschini

Bolsonaro socorre por pressão patrícios que abandonaria na China por opção

Jair Bolsonaro assistia ao drama dos brasileiros assediados pelo coronavírus na China com a insensibilidade de um comandante que abandona sua tropa em situação adversa. Conversou com os repórteres duas vezes. Em ambas expôs sua resistência à ideia de resgatar os patrícios em apuros. De repente, caiu-lhe a ficha. Em pleno domingo, o capitão teve de fazer por pressão o que deixara de providenciar por opção. Ordenou a montagem de uma operação para resgatar os brasileiros que estão em Wuhan, na China.

Apenas 48 horas antes, o mesmo Bolsonaro empilhava diante de repórteres céticos os pretextos que o impediam de enxergar o óbvio: dificuldades de logística, falta de verba, ausência de autorização do Congresso para realizar despesa extra, inexistência de previsão legal para impor uma quarentena aos resgatados, isso e aquilo. Declarou que não repatriaria ninguém "se não estiver tudo redondinho no Brasil." Pressionado, Bolsonaro executou algo parecido com um cavalo de pau.


O capitão tocou clarins nas redes sociais para informar que "serão trazidos em segurança para nós" todos os brasileiros que estiverem no epicentro chinês do coronavírus e "manifestarem desejo de retornar." Sumiu sem deixar vestígios aquele presidente que há apenas dois dias encostava sua inação num lero-lero sobre o risco de contágio: "Se lá [na China] temos algumas dezenas de vidas, aqui temos 210 milhões de brasileiros."

Nem sinal daquele personagem sensível como um pedregulho que desdenhara no início da semana passada do sofrimento de um casal brasileiro que amargava isolamento hospitalar nas Filipinas porque a filha de dez anos apresentava os sintomas do coronavírus. "Pelo que parece, tem uma família na região onde o vírus está atuando. Não seria oportuno retirar de lá. É o contrário. Não vamos colocar em risco nós aqui por uma família apenas."

No intervalo entre o sumiço daquele Bolsonaro que enxergava o padecimento alheio sob a lógica redutora do vocábulo "apenas" e o surgimento deste presidente preocupado em trazer os cidadãos brasileiros "em segurança para nós" ocorreram fatos constrangedores. Afora as críticas que trovejaram no noticiário e os raios que o partam despejados nas redes sociais, Bolsonaro foi como que contraditado por Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre.

Presidentes da Câmara e do Senado, Maia e Alcolumbre insinuaram que o governo não precisa do Congresso para socorrer os brasileiros em apuros na China. Ainda assim, imunizaram-se contra a terceirização de responsabilidades colocando-se à disposição para aprovar a toque de caixa medidas que Bolsonaro julgasse necessárias.

De resto, Bolsonaro foi abalroado no domingo nublado de Brasília por um vídeo levado ao ar na vitrine do You Tube. Nele, dez jovens brasileiros retidos na cidade chinesa de Wuhan se revezam na leitura de uma "carta aberta" dirigida ao presidente e seu chanceler Ernesto Araújo. Pedem para ser resgatados. Declaram-se dispostos a arrostar uma quarentena no Brasil. Realçam que cidadãos dos Estados Unidos, Itália, França, Reino Unido e Japão já foram levados de volta para seus países — evidência de que a China não opõe resistência à repatriação.

Supremo constrangimento: duas brasileiras que viviam em Wuhan e possuem também a nacionalidade portuguesa conseguiram embarcar num voo providenciado pela França para recambiar cidadãos da União Europeia. A dupla enfrentará a quarentena em Portugal. Tudo isso dois dias depois de o chanceler Ernesto Araújo ter declarado, ao lado de Bolsonaro, que as fronteiras de Wuhan estão fechadas. A retirada dos brasileiros envolveria intrincadas negociações. "Não é uma coisa óbvia e imediata", dissera Araújo.

Se Bolsonaro tivesse acomodado no Itamaraty um verdadeiro chanceler, não um áulico, talvez não tivesse que passar pela vergonha de esbarrar no óbvio, tropeçar no óbvio e passar adiante, sem suspeitar que o óbvio era o óbvio. Estava na cara que o abandono dos brasileiros em apuros na China exporia Bolsonaro no estrangeiro como um troglodita incapaz de perceber que um presidente é mais do que uma faixa. É preciso que por trás do pedaço de pano e da pose exista uma noção qualquer de honra e solidariedade.

Instabilidade dos buracos

Um governo tem que transmitir tranquilidade, união, um ambiente de trabalho onde as pessoas possam esperar com tranquilidade o desenvolvimento da sociedade. Não no tumulto de todo dia você ter uma intoxicação enorme de fake news e de grupos ideológicos espalhando conflitos. Não se pode viver num estado permanente pré-eleitoral
General Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo

O que a ciência tem a dizer sobre o Apocalipse

O fim do mundo sempre é pessoal, por vezes social e só uma vez literal. No entanto, a vivência irrefutável de que tudo nasce para decair costuma se trasladar para a ordem cósmica, e a ideia do Apocalipse é onipresente nas sociedades humanas. O universo costuma se encontrar entre uma criação onde tudo era bom e um final, muitas vezes próximo, que chegará porque, com nossa inépcia e maldade, corrompemos os dons que nos foram entregues. Dom Quixote recorda, ante um grupo de pastores, a visão da Grécia clássica quando fala de alguns séculos felizes “aos quais os antigos puseram o nome de dourados”, uma utopia comunista na qual “os que nela viviam ignoravam essas duas palavras de seu e meu”. Agora, após várias degradações, nós nos encontramos na idade do ferro, e a situação vai piorar. Algo similar contam os hindus, que dizem que vivemos no período Kali Yuga, uma era de disputas e hipocrisia que também é a última antes que algum tipo de cataclismo purifique o planeta.

A mesma tendência dos humanos de realizar analogias que confundem o ciclo da vida e do mundo pode fazer desprezar o medo de um desastre de dimensões planetárias. Se tantos povos ancestrais acreditaram que o final estava perto e erraram estrepitosamente, é fácil descartar sem rodeios os arautos do Apocalipse. Isso é o que deveria ser feito, por exemplo, com os pesquisadores do Boletim de Cientistas Atômicos, que na semana passada adiantaram seu metafórico relógio do fim do mundo e o deixaram a apenas 100 segundos do trágico final. Mas as situações nem sempre são comparáveis, e nos últimos séculos a humanidade incrementou sua capacidade de causar desastres planetários —e também de prevê-los.


O relógio do fim do mundo foi criado, fundamentalmente, para advertir sobre os riscos de aniquilação da civilização humana se a Guerra Fria, na qual durante décadas os Estados Unidos enfrentaram a União Soviética, se transformasse num conflito atômico. Hoje, porém, avaliam-se muito mais riscos, como uma inteligência artificial e uma biotecnologia descontroladas. E, segundo escreveu o físico Lawrence Krauss, membro do conselho de cientistas do relógio do fim do mundo, “essa multiplicação das ameaças elevou a sensação de alarme”. “O relógio do juízo final está hoje mais perto da meia-noite que durante a crise dos mísseis de Cuba (na época, ficou a sete minutos do final, contra os 100 segundos atuais), quando o mundo esteve realmente à beira do holocausto nuclear”, acrescentou, num artigo publicado no The Wall Street Journal em que duvidava da validez do instrumento.

Nem todas as ameaças são iguais, e nem os cataclismos têm as mesmas dimensões. Como o próprio Krauss dizia, a mudança climática associada à atividade industrial, uma das supostas grandes ameaças para a continuidade da civilização, terá provavelmente efeitos devastadores, mas eles serão sentidos no longo prazo e não serão iguais no mundo todo. María José Sanz, diretora do Centro Basco para a Mudança Climática, afirma que o aumento de mais de dois graus na temperatura média do planeta “pode provocar danos muito importantes para as sociedades humanas, que terão dificuldade de se adaptar a uma frequência de fenômenos climáticos extremos nunca vistos”. Mas isso não significa que a Terra se transformará num planeta hostil à vida, como Marte, nem que uma espécie como a humana, que já conta com mais de oito bilhões de indivíduos e uma capacidade tecnológica impressionante, terá sua continuidade ameaçada.

Sanz aponta, no entanto, alguns perigos difíceis de prever. “Além do aumento progressivo da temperatura, o sistema climático tem alguns pontos de inflexão”, explica. A quantidade de gelo dos polos, o sistema de monções tropicais e a corrente norte-sul, que faz com que Nova York seja muito mais fria que Madri apesar de estarem na mesma latitude, e que tem a ver com a quantidade de água doce que desemboca nos oceanos —que, por sua vez, está relacionada com o gelo dos polos—, são mecanismos que regulam o clima planetário e que podem mudar de repente. “Se esses pontos forem ultrapassados, pode haver mudanças muito abruptas, e isso é o que não se pode prever. Sabemos que estão aí, que estamos acelerando o trajeto rumo a esses pontos de inflexão, mas não sabemos o que vai acontecer se eles forem ultrapassados. Nem as consequências disso”, completa.

Como deixa claro o sucesso do gênero zumbi, as doenças infecciosas, como o coronavírus de Wuhan, são também uma fonte de terror apocalíptico. E, nesse caso, o medo não vem sustentado apenas por possíveis padecimentos futuros, mas por milhões de mortos. Durante grande parte da história, quando não se sabia o que provocava as infecções, alguns micróbios podiam dizimar a população que atingiam. O historiador Eric Hobsbawm estimou que apenas 6% ou 7% dos marinheiros ingleses mortos entre 1793 e 1815, durante as guerras contra Napoleão, faleceram nas mãos dos franceses. “Oitenta por cento morreram por causa de doenças e acidentes”, escreveu. A sujeira, os serviços médicos e a falta de higiene eram inimigos muito mais temíveis que os canhões franceses.

Calcula-se que a peste negra, provocada por uma bactéria, acabou com um terço da população da Europa. A gripe espanhola matava até 20% dos infectados e aniquilou 6% da população mundial. Para muitos dos habitantes da América pré-colombiana, embora não os exterminassem completamente, os vírus provocavam uma espécie de fim do mundo. “Na colonização da América, o principal soldado foram os vírus”, afirma Víctor Briones, professor de saúde animal da Faculdade de Veterinária da Universidade Complutense de Madri.

“Que uma infecção coloque em perigo a continuidade de uma espécie é muito difícil, embora isso quase tenha acontecido com doenças às vezes banais, como a sarna na camurça-dos-pirineus [uma espécie de caprino]. E a peste bovina provocou tanta mortandade na Europa que levou à fundação das faculdades de veterinária”, prossegue Briones. Em humanos, a gripe espanhola de 1918 “despovoou as zonas rurais”, e a praga de Justiniano do século VII pôde ter influenciado o final do Império Romano. “Reduziu a população de tal maneira que não havia braços para cultivar a terra nem gente para defender a fronteira. A ordem social se alterou”, diz Briones. E conclui: embora ele veja a possibilidade de que uma doença provoque uma grande mortandade, considera muito difícil a extinção da humanidade por essa via.

Ainda que não haja extinção, algumas doenças que não chamam a atenção do público nos países desenvolvidos matam centenas de milhares de pessoas. Somente o HIV, a tuberculose e a malária acabam com a vida de cerca de 2,5 milhões de pessoas por ano, a maioria nos países pobres. “Em cidades como Jacarta, Dar es Salaam [Tanzânia] e Cairo, onde a maior parte da população não mora em edifícios de vidro e aço, mas de chapa e latão, onde há uma imigração em massa, uma gestão deficiente dos resíduos e pouco acesso aos recursos sanitários, há doenças que provocam uma grande mortandade”, afirma Briones. A hecatombe ali não é um medo difuso no futuro, mas a vida cotidiana.

A gripe espanhola, uma das maiores pandemias conhecidas, acabou com apenas cerca de 6% da população mundial

Durante as guerras napoleônicas, 80% dos marinheiros ingleses mortos faleceram por doenças e acidentes, não pelas armas inimigas.

Os Correios vão fechar uma escola

A privatização de empresas públicas pode ser uma medida saudável na política econômica de qualquer governo. Mas se o preço da privatização for o fechamento de escolas, de centros de ensino que estão fornecendo mão de obra para o desenvolvimento de áreas importantes de nossa cultura e de nossa economia, ela só pode ser vista como uma ação selvagem, que não traz nenhum benefício para o país. Só prejuízo. É o que se está discutindo no atual debate entre os Correios e a Escola de Cinema Darcy Ribeiro, nome com que é conhecido o IBAV (Instituto Brasileiro do Audiovisual), sociedade civil, sem fins lucrativos, responsável pela escola.

Escola de Cinema Darcy Ribeiro
A eventual desestatização dos Correios parece ser uma fatalidade de nosso tempo. Sua privatização é um projeto permanente de quase todos os nossos ministros da Economia mais recentes. Não tenho uma posição muito definida sobre o assunto que, de um lado, deve levar em conta a inovação provocada pela revolução da internet; mas, por outro lado, tem-se hoje uma Empresa dos Correios, de natureza pública, que permite a comunicação e o comércio em todo o nosso território, do Oiapoque ao Chuí.

Enquanto ninguém chega a uma conclusão sobre qual será esse novo papel dos Correios, aqui e no mundo todo, quem está sofrendo as consequências é uma escola, por onde já passaram 20.000 jovens, em cursos regulares ou oficinas, vindos de todo o Brasil, alcançando todas as faixas sociais, exemplo de excelência pedagógica e social.

A Escola de Cinema Darcy Ribeiro (ECDR), comandada desde sempre pelo IBAV e pela obsessiva e eficiente professora Irene Ferraz, exemplo de servidora empenhada em seu papel, é um dos poucos centros que temos de ensino livre dedicado ao Audiovisual.

No ano 2000, ainda durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso, os Correios fizeram uma cessão de uso ao IBAV. Eram “restos” de um prédio em ruínas, confiscado durante a Segunda Guerra Mundial, por ser a sede do Deutsche Bank, nosso “inimigo de guerra”. Um prédio em desuso há muitos anos, na esquina da Rua Primeiro de Março com a Rua da Alfândega, no Rio de Janeiro, para que ali se instalasse o sonho raro de um centro de ensino e pensamento do Audiovisual. Para que isso se tornasse possível, os responsáveis pelo IBAV realizaram inúmeros investimentos para a restauração, recuperação, adequação e manutenção do edifício, utilizando-o em benefício da formação profissional na área.

Nesse prédio, hoje tombado pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, por iniciativa do deputado Carlos Minc, sempre se praticou, antes de tudo, a pesquisa capaz de desenvolver, na prática e na teoria, uma enorme área de técnicos e criadores, homens e mulheres dedicados à cultura e à fabricação do Audiovisual brasileiro. Hoje a escola mantém o prédio funcional, com cinco pavimentos, todos recuperados e remodelados, que abrigam salas de aula, ilhas de edição, estúdios, biblioteca e filmoteca, sala de exibição de todos os formatos óticos e digitais, locais preparados para receber estudantes do Rio de Janeiro e de todo o Brasil, como vem acontecendo desde sempre.

São esses os elementos formadores dos profissionais que já atuam hoje ou que vão atuar amanhã na indústria criativa do Audiovisual. Um item hoje significativo em nosso PIB nacional. E também nas contribuições prestadas por alunos e ex-alunos, no debate cultural do país, um país que ainda inventa sua forma de pensar e de se comportar como nação. Nessa segunda feira, por exemplo, a escola começa a preparar uma nova turma de estudantes, fruto de emenda parlamentar da Câmara dos Deputados, que possibilitou a abertura de uma nova classe com 35 vagas de bolsas integrais para jovens de periferia, que por ela serão formados. Essa é uma das contribuições decisivas que a escola dá ao crescimento e à consolidação da atividade Audiovisual no país, em benefício sobretudo do que estará na televisão e no cinema, visando ao desenvolvimento democrático do Brasil.

O que os Correios fazem neste momento, pedindo de volta um prédio que não tem nenhuma utilidade para o serviço que prestam, apenas para valorizar seus bens imobiliários, na hipótese de uma privatização do que já não serve mais, é no mínimo medíocre e pouco patriótico. O que seu gesto vai certamente provocar, se por infeliz acaso for executado, é a interrupção da atividade letiva da Escola e do IBAV. E portanto um boicote ao futuro do Brasil. Fica Darcy!</p>
Cacá Diegues