segunda-feira, 28 de outubro de 2024
Lula e eu estamos na idade da queda
Lula caiu no banheiro, cortou a cabeça e, em algumas horas, já estava apto para as tarefas cotidianas. Ele pratica musculação, caminha com regularidade, e sua dieta deve ser orientada por nutricionista. Nem todos os idosos, no entanto, têm a mesma sorte quando sofrem um acidente doméstico.
Estou lendo um belo livro da escritora portuguesa Lídia Jorge. Chama-se “Misericórdia” e se passa dentro de uma casa de repouso, chamada Hotel Paraíso. São precisamente 70 internos. Quando morre um, há nova admissão.
A narradora, que usa cadeira de rodas, ficou chocada quando uma recém-admitida descreveu sua queda. Era idêntica à que sofrera:
— Era demasiado semelhante ao que havia me acontecido três anos atrás, quando caí junto da porta de entrada e lá estive várias horas deitada de bruços, e o vizinho da Villa Sol me foi levantar do chão.
Havia sido como se os pulsos feridos tivessem aberto a decadência:
— Duas portas por onde a derrocada se infiltrava sem regresso.
O que é descrito no romance de Lídia Jorge costuma acontecer na realidade. Muitas vezes, a queda, dependendo da gravidade, pode ser o ponto de partida para uma decadência irreversível.
No meu tempo de redação, designaria um repórter para pesquisar a queda em idosos e aproveitaria a história do presidente para tornar o tema um pouco mais popular. Mas por que não fazer eu mesmo o trabalho? Lembro-me de que há uns dez anos sofri uma queda no banheiro de um hotel em Porto Velho. Não reparei no degrau e caí de costas. Senti dores incríveis por muitas noites e trabalhei no sacrifício, a câmera parecia uma peça de chumbo.
Os idosos muitas vezes têm problemas de equilíbrio, déficit de visão. Nesse caso, a casa torna-se uma perigosa armadilha. Precisa ser revista em todos os cômodos: tapetes enrolados, cadeiras sem braço, móveis ameaçadores. O banheiro, então, é um espaço escorregadio, e é preciso instalar barras para que se apoiem.
Segundo um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), 40% das pessoas com mais de 80 anos sofrem quedas. A situação é um pouco melhor entre os de 70 anos, mas não muito: 32% sofrem quedas.
Quando se olham os números mais amplos do SUS, observa-se que o custo de internação de idosos por queda é bastante alto. Pouco mais de 1,5 milhão de casos no país custaram quase R$ 2,5 bilhões ao sistema.
É um problema mundial, como mostra o próprio relatório da OMS. É preciso atacar os fatores ambientais, como os que mencionei, a casa como uma espécie de armadilha, mas também os fatores comportamentais, como exercícios leves, boa nutrição e sono, além da supressão de tabaco e álcool.
A queda é considerada a terceira causa de morte entre os idosos. No Brasil, o número de óbitos praticamente dobrou entre 2013 e 2022. Eram 4.816, passaram para 9.592. Esse aumento acontece porque a população está envelhecendo, mas também porque a subnotificação caiu. Os fatores que determinam as quedas são os mesmos: perda da massa muscular, problemas de equilíbrio, visão precária. É preciso acrescentar que não há grande debate sobre políticas públicas que atenuem o problema.
A queda do presidente, pelo menos, ensejou uma crônica, mas quem sabe o Ministério da Saúde não aproveita a oportunidade para fazer uma campanha?
Na ausência de políticas públicas, a própria família precisa ampliar sua atenção. Quando as condições físicas decaem com as cognitivas, a situação torna-se mais delicada. Não só caímos da nossa própria altura, como podemos cair da cama. Poucos se dão conta das inúmeras possibilidades de queda, embora saibamos que, para cair, basta estar de pé.
Talvez o Brasil subestime esses temas porque sempre se considerou um país de jovens e não percebeu que a realidade já não permite mais essa ilusão.
Estou lendo um belo livro da escritora portuguesa Lídia Jorge. Chama-se “Misericórdia” e se passa dentro de uma casa de repouso, chamada Hotel Paraíso. São precisamente 70 internos. Quando morre um, há nova admissão.
A narradora, que usa cadeira de rodas, ficou chocada quando uma recém-admitida descreveu sua queda. Era idêntica à que sofrera:
— Era demasiado semelhante ao que havia me acontecido três anos atrás, quando caí junto da porta de entrada e lá estive várias horas deitada de bruços, e o vizinho da Villa Sol me foi levantar do chão.
Havia sido como se os pulsos feridos tivessem aberto a decadência:
— Duas portas por onde a derrocada se infiltrava sem regresso.
O que é descrito no romance de Lídia Jorge costuma acontecer na realidade. Muitas vezes, a queda, dependendo da gravidade, pode ser o ponto de partida para uma decadência irreversível.
No meu tempo de redação, designaria um repórter para pesquisar a queda em idosos e aproveitaria a história do presidente para tornar o tema um pouco mais popular. Mas por que não fazer eu mesmo o trabalho? Lembro-me de que há uns dez anos sofri uma queda no banheiro de um hotel em Porto Velho. Não reparei no degrau e caí de costas. Senti dores incríveis por muitas noites e trabalhei no sacrifício, a câmera parecia uma peça de chumbo.
Os idosos muitas vezes têm problemas de equilíbrio, déficit de visão. Nesse caso, a casa torna-se uma perigosa armadilha. Precisa ser revista em todos os cômodos: tapetes enrolados, cadeiras sem braço, móveis ameaçadores. O banheiro, então, é um espaço escorregadio, e é preciso instalar barras para que se apoiem.
Segundo um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), 40% das pessoas com mais de 80 anos sofrem quedas. A situação é um pouco melhor entre os de 70 anos, mas não muito: 32% sofrem quedas.
Quando se olham os números mais amplos do SUS, observa-se que o custo de internação de idosos por queda é bastante alto. Pouco mais de 1,5 milhão de casos no país custaram quase R$ 2,5 bilhões ao sistema.
É um problema mundial, como mostra o próprio relatório da OMS. É preciso atacar os fatores ambientais, como os que mencionei, a casa como uma espécie de armadilha, mas também os fatores comportamentais, como exercícios leves, boa nutrição e sono, além da supressão de tabaco e álcool.
A queda é considerada a terceira causa de morte entre os idosos. No Brasil, o número de óbitos praticamente dobrou entre 2013 e 2022. Eram 4.816, passaram para 9.592. Esse aumento acontece porque a população está envelhecendo, mas também porque a subnotificação caiu. Os fatores que determinam as quedas são os mesmos: perda da massa muscular, problemas de equilíbrio, visão precária. É preciso acrescentar que não há grande debate sobre políticas públicas que atenuem o problema.
A queda do presidente, pelo menos, ensejou uma crônica, mas quem sabe o Ministério da Saúde não aproveita a oportunidade para fazer uma campanha?
Na ausência de políticas públicas, a própria família precisa ampliar sua atenção. Quando as condições físicas decaem com as cognitivas, a situação torna-se mais delicada. Não só caímos da nossa própria altura, como podemos cair da cama. Poucos se dão conta das inúmeras possibilidades de queda, embora saibamos que, para cair, basta estar de pé.
Talvez o Brasil subestime esses temas porque sempre se considerou um país de jovens e não percebeu que a realidade já não permite mais essa ilusão.
A guerra
A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.
A guerra, como todo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.
Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer alterar.
Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.
Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.
A química direta da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.
A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.
Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem!
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)
O grau menos zero da política
People Have the Power, cantava Patti Smith em 1988, altura em que não havia dúvida quanto a quem eram as pessoas e, sobretudo, a que se referia quando falava de poder.
Hoje começamos a ter fundadas dúvidas em relação a este “povo” e à sua capacidade de, no meio de tantas ações de marketing, informação, desinformação, Inteligência Artificial e outras manobras cibernéticas, ser quem mais ordena.
Quando Ray Bradbury escreveu Fahrenheit 451, mal sabia quão perto estava da realidade, ao falar da Tirania da Minoria.
A sua distopia parecia ser algo longínquo, quase improvável e no entanto assistimos nos últimos tempos a uma verdadeira manipulação das massas por minorias com agendas próprias, subordinadas a interesses económicos globais, ou, como no caso português mais à nossa escala, interesses meramente individuais ou corporativos quanto baste.
Assumir que é possível manipular eleições através das redes sociais, da contra informação ou até da IA, deveria deixar-nos aterrorizados porquanto o que pensávamos ser um objectivo alcançado – uma pessoa , um voto, uma vontade – é a utopia vigente.
Deveria obrigar-nos a repensar o modelo e o modo de nos organizarmos enquanto sociedade. Mas a realidade é que vivemos um tempo sem lideres!
Um tempo em que o poder acaba nas mãos de senhores da guerra, grupos económicos, religiosos que nada têm a ver com política, na verdadeira acessão do termo, na fórmula que Aristóteles enunciou.
Talvez tenhamos já remetido a noção de “política” e de “ políticos” para o reduto dos mitos, onde unicórnios não são mais cavalos alados mas grandes e novas empresas surgidas em tempo record.
Talvez sejamos apenas meia dúzia de velhos do Restelo a chamar a atenção para que a República vai completamente nua e nem o cabelo lhe tapa as “ vergonhas”. Antes as exibe como troféu.
Talvez…
Mas onde iremos parar com um Mundo sem estadistas, sem projectos humanistas e colectivos? Onde iremos parar quando se recrutam dirigentes ao mais alto nível nas fileiras das mocidades partidárias, transvestidas de agências de emprego garantido? Onde iremos parar sem vozes com peso, com um passado, com visão de futuro abrangente?
Temo bem que, no caso português e com a nossa tendência ancestral de importar as modas “ lá de fora” acabemos como os EUA.
A duas semanas das eleições mais importantes para o chamado Mundo Livre (?) e quando pensamos que já vimos tudo, eis que alguém tem a ideia fantástica de comprar, sem pejo ou subterfugio, o voto do eleitor comum.
Numa Roda da Sorte eleitoral, sorteia-se um milhão de dólares. É esse om preço da cidadania, da consciência política, do voto que custou sangue e lágrimas para se tornar universal. Um milhão de dólares é muito dinheiro! E se cada homem tem um preço, caso a moda pegue , por cá, e com a crise económica que vivemos desde os tempos de D. Afonso Henriques, a coisa é capaz de se fazer por cem mil euros e alguns trocos.
Está claro que dentro da cabinete de voto a decisão é de cada um e não é possível controlar se de facto o milhão foi ou não bem empegue.
Bem não é possível para já, pois há até quem, a um outro nível, considere legitimo o voto por e-mail e o voto electrónico, muito embora evite a grande abstenção, pode ser perigoso caso não seja firmemente controlado!
Acho sempre imensa graça aos nossos políticos quando afirmam publicamente que em política não vale tudo. Por norma são declarações feitas após tudo ter valido num jogo político qualquer.
Mas mesmo assim e como sempre, os EUA batem-nos aos pontos e colocam a Europa e o Mundo numa jogada praticamente de xeque mate internacional.
Não morro de amores pela Kamala e não considero que o mérito seja uma questão de género ou etnia. Mas entre dois males o menor, pois que Trump será, não tenho qualquer dúvida, o carrasco que decapitará uma Europa sem liderança, sem estadistas, sem rumo.
Com Trump não tenho qualquer dúvida que a guerra entre a Ucrânia e a Rússia acabará em 24 horas com a capitulação da primeira e a vitória e o alargamento territorial da segunda.
Como também não me surpreende que no Médio Oriente o conflito termine rapidamente e em força com Israel a ocupar toda a zona e a deixar uma faixa de no man’s land de forma a criar um perímetro de segurança.
Quanto à Europa que não se soube construir como alternativa e modelo de intervenção internacional, será cada vez mais irrelevante, como é já a outro nível a Organização das Nações Unidas.
O grau zero da política é aquilo a que um grande amigo meu, muito jovem, dizia há dias desgostoso e desiludido com tudo isto: Arrasar tudo e pôr galinhas.
Se calhar têm mais cérebro que alguns de nós que continuamos a picar o chão em busca duma minhoca gorda.
Hoje começamos a ter fundadas dúvidas em relação a este “povo” e à sua capacidade de, no meio de tantas ações de marketing, informação, desinformação, Inteligência Artificial e outras manobras cibernéticas, ser quem mais ordena.
Quando Ray Bradbury escreveu Fahrenheit 451, mal sabia quão perto estava da realidade, ao falar da Tirania da Minoria.
A sua distopia parecia ser algo longínquo, quase improvável e no entanto assistimos nos últimos tempos a uma verdadeira manipulação das massas por minorias com agendas próprias, subordinadas a interesses económicos globais, ou, como no caso português mais à nossa escala, interesses meramente individuais ou corporativos quanto baste.
Assumir que é possível manipular eleições através das redes sociais, da contra informação ou até da IA, deveria deixar-nos aterrorizados porquanto o que pensávamos ser um objectivo alcançado – uma pessoa , um voto, uma vontade – é a utopia vigente.
Deveria obrigar-nos a repensar o modelo e o modo de nos organizarmos enquanto sociedade. Mas a realidade é que vivemos um tempo sem lideres!
Um tempo em que o poder acaba nas mãos de senhores da guerra, grupos económicos, religiosos que nada têm a ver com política, na verdadeira acessão do termo, na fórmula que Aristóteles enunciou.
Talvez tenhamos já remetido a noção de “política” e de “ políticos” para o reduto dos mitos, onde unicórnios não são mais cavalos alados mas grandes e novas empresas surgidas em tempo record.
Talvez sejamos apenas meia dúzia de velhos do Restelo a chamar a atenção para que a República vai completamente nua e nem o cabelo lhe tapa as “ vergonhas”. Antes as exibe como troféu.
Talvez…
Mas onde iremos parar com um Mundo sem estadistas, sem projectos humanistas e colectivos? Onde iremos parar quando se recrutam dirigentes ao mais alto nível nas fileiras das mocidades partidárias, transvestidas de agências de emprego garantido? Onde iremos parar sem vozes com peso, com um passado, com visão de futuro abrangente?
Temo bem que, no caso português e com a nossa tendência ancestral de importar as modas “ lá de fora” acabemos como os EUA.
A duas semanas das eleições mais importantes para o chamado Mundo Livre (?) e quando pensamos que já vimos tudo, eis que alguém tem a ideia fantástica de comprar, sem pejo ou subterfugio, o voto do eleitor comum.
Numa Roda da Sorte eleitoral, sorteia-se um milhão de dólares. É esse om preço da cidadania, da consciência política, do voto que custou sangue e lágrimas para se tornar universal. Um milhão de dólares é muito dinheiro! E se cada homem tem um preço, caso a moda pegue , por cá, e com a crise económica que vivemos desde os tempos de D. Afonso Henriques, a coisa é capaz de se fazer por cem mil euros e alguns trocos.
Está claro que dentro da cabinete de voto a decisão é de cada um e não é possível controlar se de facto o milhão foi ou não bem empegue.
Bem não é possível para já, pois há até quem, a um outro nível, considere legitimo o voto por e-mail e o voto electrónico, muito embora evite a grande abstenção, pode ser perigoso caso não seja firmemente controlado!
Acho sempre imensa graça aos nossos políticos quando afirmam publicamente que em política não vale tudo. Por norma são declarações feitas após tudo ter valido num jogo político qualquer.
Mas mesmo assim e como sempre, os EUA batem-nos aos pontos e colocam a Europa e o Mundo numa jogada praticamente de xeque mate internacional.
Não morro de amores pela Kamala e não considero que o mérito seja uma questão de género ou etnia. Mas entre dois males o menor, pois que Trump será, não tenho qualquer dúvida, o carrasco que decapitará uma Europa sem liderança, sem estadistas, sem rumo.
Com Trump não tenho qualquer dúvida que a guerra entre a Ucrânia e a Rússia acabará em 24 horas com a capitulação da primeira e a vitória e o alargamento territorial da segunda.
Como também não me surpreende que no Médio Oriente o conflito termine rapidamente e em força com Israel a ocupar toda a zona e a deixar uma faixa de no man’s land de forma a criar um perímetro de segurança.
Quanto à Europa que não se soube construir como alternativa e modelo de intervenção internacional, será cada vez mais irrelevante, como é já a outro nível a Organização das Nações Unidas.
O grau zero da política é aquilo a que um grande amigo meu, muito jovem, dizia há dias desgostoso e desiludido com tudo isto: Arrasar tudo e pôr galinhas.
Se calhar têm mais cérebro que alguns de nós que continuamos a picar o chão em busca duma minhoca gorda.
Por que ser máquina?
Resumos de resumos, resumos de resumos de resumos. Política? Uma coluna, duas frases, uma manchete! Depois, no ar, tudo se dissolve! A mente humana entra em turbilhão sob as mãos dos editores, exploradores, locutores de rádio, tão depressa que a centrífuga joga fora todo pensamento desnecessário, desperdiçador de tempo!
A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?
Ray Bradbury, "Fahrenheit 451"
A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?
Ray Bradbury, "Fahrenheit 451"
A capa é verde, mesmo que digam que é vermelha
Uma professora de Filosofia está em frente a um anfiteatro cheio de universitários. Quando lhes mostra uma capa de cartolina e lhes pergunta de que cor é, todos respondem que é verde. A professora pede, então, aos alunos que, caso alguém chegue atrasado àquela aula e ela volte a perguntar a cor da capa, respondam que é vermelha. Pouco depois, entra um retardatário. A professora pergunta a vários alunos, um por um, de que cor é a capa. “Vermelha”, repetem, um após outro, perante o olhar incrédulo do estudante que chegou atrasado e se vai virando para trás, confuso com as respostas. Porém, quando chega a sua vez de responder, nem hesita: “É vermelha”, diz.
Na cena da série catalã Merlí, a professora usa a resposta para demonstrar a que ponto somos suscetíveis à pressão que exercem sobre nós as opiniões dos outros, “mesmo no que se refere à perceção física”. E explica como Nietzsche divide o mundo entre os que seguem os seus próprios desejos, impossíveis de dominar, e os que seguem os outros, fracos e sujeitos às vontades dos que os rodeiam.
“Não se preocupe. Este é o pão nosso de cada dia”, diz a mulher com um ar condescendente ao estudante embaraçado. “Somos muito submissos e acabamos por aceitar as ideias da maioria. Até na Alemanha, as pessoas foram capazes de acreditar no que repetia a propaganda nazi. Já dizia Kant, com toda a sua amargura, que o ser o humano é o único animal que precisa de um amo para viver”.
Na série, o aluno justifica-se, dizendo que a pergunta lhe pareceu um jogo e que se wlimitou a replicar a resposta que lhe parecia certa, tendo em conta o que tinham dito os outros. Na verdade, o maior perigo não está em quem repete, sem convicção, o que diz a maioria, embora esse seja um problema cada vez maior. O risco que enfrentamos está na forma como há cada vez mais pessoas capazes de acreditar convictamente que a capa de cartolina verde é vermelha.
O viés cognitivo é descrito como um erro de pensamento. Uma falha que ocorre quando o nosso cérebro segue um atalho, respondendo a um padrão conhecido. Vemos não o que lá está, mas o que nos parece provável que esteja, tendo em conta as nossas experiências passadas e crenças.
A forma como vemos o mundo é, em grande medida, construída a partir de vivências, mas também da valorização que fazemos dos relatos que ouvimos. Quem nos conta a história é uma parte importante de como a vamos ouvir. A autoridade que atribuímos às fontes tem também muito que ver com a forma como essas fontes validam ou não as nossas próprias conceções. E é aí que entra aquele que tem sido o maior catalisador da polarização das nossas sociedades: o insondável algoritmo.
O algoritmo traz até nós ideias com as quais acredita que vamos ter afinidade. Mas, como se move também pela capacidade de gerar reações, essas ideias são quase sempre envoltas num manto de emotividade capaz de acionar o grande motor de reação que é a indignação. E o problema é que a indignação é uma droga dura. Obriga a doses cada vez mais elevadas para gerar o mesmo efeito.
O resultado são grupos de pessoas unidas por emoções descontroladas, juntas em crenças que se vão reforçando mutuamente. Incapazes de pôr em causa a forma como pensam. Muitas vezes sem sequer ter acesso a ideias que ponham em causa a forma como pensam.
Como jornalista lido muitas vezes com isto. As pessoas assumem uma determinada versão. E eu insisto, uma e outra vez, acumulando dados, citando fontes, acrescentando descrições e imagens. É exasperantemente rara a vez em que alguém muda de opinião depois de confrontado com uma notícia escrita segundo as regras de contraditório e verificação, com fontes identificadas e elementos que a sustentam. No máximo, consigo um sorriso com reticências, que deixa no ar a dúvida e não é um sinal de adesão. E isto, claro, quando se consegue convencer um leitor a ir para lá do título, que essa é já em si uma vitória para quem escreve.
O meu trabalho é escrever que a capa de cartolina é verde. Não porque eu digo que é verde, mas porque o método jornalístico que sigo permite concluir que é verde. Não sei quantas pessoas acreditam ainda na importância de ter um jornalista a escrever que a capa de cartolina é verde. Não sei quantas estarão disponíveis para aceitar que é verde depois de ter sido induzidas a acreditar que era vermelha. Mas foi para isto que escolhi esta profissão.
Foram muitas as vezes em que escrevi que a capa de cartolina era verde e isso ajudou a aumentar o número de pessoas que a viam dessa cor. Noutras, falhei. Mas não vou desistir. A capa de cartolina é verde.
Na cena da série catalã Merlí, a professora usa a resposta para demonstrar a que ponto somos suscetíveis à pressão que exercem sobre nós as opiniões dos outros, “mesmo no que se refere à perceção física”. E explica como Nietzsche divide o mundo entre os que seguem os seus próprios desejos, impossíveis de dominar, e os que seguem os outros, fracos e sujeitos às vontades dos que os rodeiam.
“Não se preocupe. Este é o pão nosso de cada dia”, diz a mulher com um ar condescendente ao estudante embaraçado. “Somos muito submissos e acabamos por aceitar as ideias da maioria. Até na Alemanha, as pessoas foram capazes de acreditar no que repetia a propaganda nazi. Já dizia Kant, com toda a sua amargura, que o ser o humano é o único animal que precisa de um amo para viver”.
Na série, o aluno justifica-se, dizendo que a pergunta lhe pareceu um jogo e que se wlimitou a replicar a resposta que lhe parecia certa, tendo em conta o que tinham dito os outros. Na verdade, o maior perigo não está em quem repete, sem convicção, o que diz a maioria, embora esse seja um problema cada vez maior. O risco que enfrentamos está na forma como há cada vez mais pessoas capazes de acreditar convictamente que a capa de cartolina verde é vermelha.
O viés cognitivo é descrito como um erro de pensamento. Uma falha que ocorre quando o nosso cérebro segue um atalho, respondendo a um padrão conhecido. Vemos não o que lá está, mas o que nos parece provável que esteja, tendo em conta as nossas experiências passadas e crenças.
A forma como vemos o mundo é, em grande medida, construída a partir de vivências, mas também da valorização que fazemos dos relatos que ouvimos. Quem nos conta a história é uma parte importante de como a vamos ouvir. A autoridade que atribuímos às fontes tem também muito que ver com a forma como essas fontes validam ou não as nossas próprias conceções. E é aí que entra aquele que tem sido o maior catalisador da polarização das nossas sociedades: o insondável algoritmo.
O algoritmo traz até nós ideias com as quais acredita que vamos ter afinidade. Mas, como se move também pela capacidade de gerar reações, essas ideias são quase sempre envoltas num manto de emotividade capaz de acionar o grande motor de reação que é a indignação. E o problema é que a indignação é uma droga dura. Obriga a doses cada vez mais elevadas para gerar o mesmo efeito.
O resultado são grupos de pessoas unidas por emoções descontroladas, juntas em crenças que se vão reforçando mutuamente. Incapazes de pôr em causa a forma como pensam. Muitas vezes sem sequer ter acesso a ideias que ponham em causa a forma como pensam.
Como jornalista lido muitas vezes com isto. As pessoas assumem uma determinada versão. E eu insisto, uma e outra vez, acumulando dados, citando fontes, acrescentando descrições e imagens. É exasperantemente rara a vez em que alguém muda de opinião depois de confrontado com uma notícia escrita segundo as regras de contraditório e verificação, com fontes identificadas e elementos que a sustentam. No máximo, consigo um sorriso com reticências, que deixa no ar a dúvida e não é um sinal de adesão. E isto, claro, quando se consegue convencer um leitor a ir para lá do título, que essa é já em si uma vitória para quem escreve.
O meu trabalho é escrever que a capa de cartolina é verde. Não porque eu digo que é verde, mas porque o método jornalístico que sigo permite concluir que é verde. Não sei quantas pessoas acreditam ainda na importância de ter um jornalista a escrever que a capa de cartolina é verde. Não sei quantas estarão disponíveis para aceitar que é verde depois de ter sido induzidas a acreditar que era vermelha. Mas foi para isto que escolhi esta profissão.
Foram muitas as vezes em que escrevi que a capa de cartolina era verde e isso ajudou a aumentar o número de pessoas que a viam dessa cor. Noutras, falhei. Mas não vou desistir. A capa de cartolina é verde.
Tarcísio de Freitas, um governador inocente e sem malícia
Foi assim em 1989, na véspera do dia da primeira eleição direta para presidente em segundo turno (Collor x Lula) depois do fim da ditadura militar de 64: a polícia paulista informou que os sequestradores do empresário Abílio Diniz, recém-libertado, eram ligados ao PT, e que camisetas e cartazes do partido haviam sido encontrados no local onde Diniz esteve preso.
A notícia espalhou-se pelo país por meio de jornais e de emissoras de rádio. O ministro da Justiça desmentiu-a. Mas quanto a mentira custou a Lula em número de votos, não se sabe, nunca se soube. Como nunca se saberá quantos votos poderá ter perdido Guilherme Boulos (PSOL) com a notícia de que setores do crime organizado recomendaram o voto nele para prefeito de São Paulo.
O portador da notícia foi o governador Tarcísio de Freitas, bolsonarista de quatro costados que posa de direita civilizada. Segundo a Folha de São Paulo, ele não apresentou provas do que disse. Mas nem a Folha, nem outros veículos de comunicação, se negaram a publicá-la. A licença para ferir ou matar agora é assim: você escreve “sem apresentar provas”, e passa a notícia adiante.
Aconteceu em 2018 com o kit-gay que beneficiou Bolsonaro na reta final do segundo turno contra Fernando Haddad (PT). Não lembro de termos nos referido a ele como “suposto kit-gay”. Antes de publicar, cabe à imprensa, supostamente séria, investigar uma suposta mentira ou uma eventual verdade. O kit-gay foi uma mentira como tantas outras publicadas à época.
Deu-se crédito a supostos comunicados de facções criminosas só porque um governador de Estado os divulgou. Os ditos comunicados foram apreendidos em setembro. A justiça de São Paulo não foi informada a respeito, nem a Polícia Federal. Mas indagado sobre a existência dos comunicados sem assinatura, cuja autoria sua polícia sequer investigou, Tarcísio falou sobre eles.
O que pretendeu com isso? Favorecer seu candidato a prefeito de São Paulo e prejudicar Boulos? Ricardo Nunes (MDB), candidato à reeleição, não precisava de tal ajuda. Estava a poucas horas de ser reeleito, e Tarcísio sabia. Diante da má repercussão do seu gesto, Tarcísio disse que lhe faltou “malícia”, “experiência” e desculpou-se. Tadinho dele. Aprendendo com as lições que a vida lhe oferece.
O que fará a justiça? Nada, ora. Quanto aos habituais cúmplices de mentiras que caracterizam abuso de poder entre outros crimes, esses dirão, como já começaram a dizer desde ontem para salvar a própria face, que terá sido algo “muito grave” caso se confirme que a manobra sórdida de Tarcísio teve o claro propósito de influir nos resultados da eleição. Como se prova uma intenção?
Viva, pois, a democracia, a imprensa responsável, a justiça que se finge de cega quando lhe é conveniente e o direito à mentira assegurado pela Constituição.
A notícia espalhou-se pelo país por meio de jornais e de emissoras de rádio. O ministro da Justiça desmentiu-a. Mas quanto a mentira custou a Lula em número de votos, não se sabe, nunca se soube. Como nunca se saberá quantos votos poderá ter perdido Guilherme Boulos (PSOL) com a notícia de que setores do crime organizado recomendaram o voto nele para prefeito de São Paulo.
O portador da notícia foi o governador Tarcísio de Freitas, bolsonarista de quatro costados que posa de direita civilizada. Segundo a Folha de São Paulo, ele não apresentou provas do que disse. Mas nem a Folha, nem outros veículos de comunicação, se negaram a publicá-la. A licença para ferir ou matar agora é assim: você escreve “sem apresentar provas”, e passa a notícia adiante.
Aconteceu em 2018 com o kit-gay que beneficiou Bolsonaro na reta final do segundo turno contra Fernando Haddad (PT). Não lembro de termos nos referido a ele como “suposto kit-gay”. Antes de publicar, cabe à imprensa, supostamente séria, investigar uma suposta mentira ou uma eventual verdade. O kit-gay foi uma mentira como tantas outras publicadas à época.
Deu-se crédito a supostos comunicados de facções criminosas só porque um governador de Estado os divulgou. Os ditos comunicados foram apreendidos em setembro. A justiça de São Paulo não foi informada a respeito, nem a Polícia Federal. Mas indagado sobre a existência dos comunicados sem assinatura, cuja autoria sua polícia sequer investigou, Tarcísio falou sobre eles.
O que pretendeu com isso? Favorecer seu candidato a prefeito de São Paulo e prejudicar Boulos? Ricardo Nunes (MDB), candidato à reeleição, não precisava de tal ajuda. Estava a poucas horas de ser reeleito, e Tarcísio sabia. Diante da má repercussão do seu gesto, Tarcísio disse que lhe faltou “malícia”, “experiência” e desculpou-se. Tadinho dele. Aprendendo com as lições que a vida lhe oferece.
O que fará a justiça? Nada, ora. Quanto aos habituais cúmplices de mentiras que caracterizam abuso de poder entre outros crimes, esses dirão, como já começaram a dizer desde ontem para salvar a própria face, que terá sido algo “muito grave” caso se confirme que a manobra sórdida de Tarcísio teve o claro propósito de influir nos resultados da eleição. Como se prova uma intenção?
Viva, pois, a democracia, a imprensa responsável, a justiça que se finge de cega quando lhe é conveniente e o direito à mentira assegurado pela Constituição.
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