quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Os homens do subúrbio

Os que moram nos subúrbios trabalham no centro da cidade e recebem o pagamento no fim do dia. Pela manhã, quando chegam na praça, vêem sobre as bancas de madeira os peixes frescos e grandes que os caminhões trouxeram pela madrugada. Mas pela manhã ainda não trabalharam e não têm dinheiro. E eles passam o dia pensando nos peixes frescos e grandes estendidos sobre as bancas de madeira. À tarde, voltam com dinheiro e, quando se aproximam das bancas, sentem o mau cheiro: os peixes ficaram todo o dia ao sol e estragaram-se. Os homens dos subúrbios, então, levam para suas famílias outras coisas em vez de peixe fresco.

Oswaldo França Júnior, "As laranjas iguais"

ESG: o mercado salvará o mundo quando o G cuidar do S

Nesses tempos de mudança climática, nunca é demais falarmos sobre o ESG (Ambiental, Social, Governança), que representa as novas diretrizes estratégicas para os negócios. Em outras palavras, se o Ambiental e o Social não forem dirigidos por uma Governança consciente, corremos o risco de, em breve não restar empresas, nem acionistas, nem consumidores, e tampouco lucro, para contar a história.

Sobre o “E” do meio ambiente, já se fala bastante, especialmente a partir da cúpula climática Rio 92, que deu visibilidade ao problema. A descarbonização, a transição energética e a bioeconomia estão no centro das conferências e das tratativas multilaterais desde então.

Nesse contexto, o “G” tem demonstrado sensibilidade crescente para com o “E”, refletida na medida em que a governança superior das empresas e o setor financeiro têm alavancado o valor das ações de companhias ambientalmente responsáveis, como demonstram os resultados dos fundos baseados em ESG e os painéis das bolsas de valores dedicados a esse universo emergente.

Acontece que não bastará correr atrás do prejuízo ambiental enquanto os mercados e o Estado não pararem para cuidar igualmente do verdadeiro “pecado original” da humanidade, a desigualdade socioeconômica (o “S” da questão), que é o combustível de todos os desequilíbrios e descaminhos enfrentados pelo ser humano desde sempre (um custo jamais levado em conta na contabilidade empresarial).

Dito de outra forma, não será suficiente nos contentarmos com eufemismos já naturalizados na nossa linguagem, por exemplo, quando nos referimos às nações pobres como países em desenvolvimento (onde a desigualdade só aumenta), ou ao disfarçamos de empreendedorismo a “uberização” do trabalho, ou, ainda, quando classificamos a pobreza e a violência como vulnerabilidades.

Falando claramente, o ponto essencial sobre o futuro do mundo é a desigualdade social (a mesma questão política que tem definido a humanidade no passado e no presente). É aí que está o “S” e é aí que entra o potencial disruptivo do ESG. Trata-se de uma visão de mercado com capacidade de elevar ao andar das Diretorias Executivas e dos Conselhos de acionistas o reconhecimento de que o “S” significa Social, mas pode ser compreendido como Vida, em sentido amplo.

Não quer dizer que o Ambiental deva ficar em segundo plano. Muito pelo contrário, quer dizer que a devastação ambiental se dá em decorrência de uma distorção no ritmo dos mercados que leva a um acúmulo de riqueza por alguns em prejuízo do bem-estar da maioria. Ou seja, em meio a esse processo concentrador é que ocorre a degradação do meio ambiente de maneira geral.

O legado histórico do ESG (mais precisamente, da alta Governança dos mercados) no novo normal climático seria justamente reequilibrar essa balança social. Caso contrário, os vários setores de atividades – seja financeiro, agropecuário, mineral, energético industrial, tecnológico, serviços, transportes etc. etc. – poderão ser inviabilizados, cedo ou tarde, pelos extremos climáticos e ou pela convulsão social em larga escala. Levariam junto a soberania, a democracia e a segurança, em uma desarrumação caótica do que entendemos como Estado e sociedade, com final desconhecido.
Felipe Sampaio

Muito além da Venezuela

A crise em curso na Venezuela traz um grande desafio para o Brasil —maior até do que possa fazer por uma solução civilizada do conflito no país fronteiriço. Afinal, trata-se de definir o lugar que a defesa da democracia e da proteção aos direitos humanos ocupa na agenda externa nacional. A questão é a um só tempo antiga e enroscada.

Brasília de há muito se pauta pela não ingerência nos assuntos internos de outras nações ­­—atitude que deriva da aceitação da soberania como princípio ordenador das relações internacionais. Em consequência, como cada país se organiza politicamente e como os respectivos governos tratam seus cidadãos são realidades irrelevantes para orientar as ações do Itamaraty; relevante, mesmo crucial, é identificar aliados e os competidores, de quais deles se aproximar ou tomar distância.


Em um sistema internacional formado por Estados soberanos, mas desigualmente poderosos, apegar-se àquele princípio ­—de resto universalmente imperante— foi para o Brasil uma forma de proteger-se da ambição —e da interferência— das potências mundiais, em especial dos Estados Unidos.

Mas, já nas últimas décadas do século passado, direitos humanos e democracia foram deixando de ser assuntos apenas domésticos e ganharam relevância na agenda internacional. A criação de tribunais para julgar países e indivíduos responsáveis por genocídio e outros crimes contra a humanidade são parte dessa mudança.

O estabelecimento de cláusula democrática para ingresso na União Europeia; para pertencer à OEA (Organização dos Estados Americanos) ou ao Mercosul vão no mesmo rumo.

Sua existência implica reconhecer a legitimidade de pressões externas pelo advento de um regime que assegure liberdades básicas a seus cidadãos, garanta eleições livres e limpas e reconheça seus resultados.

O compromisso com a defesa da democracia e dos direitos humanos, inscrito na Constituição de 1988 no capítulo sobre política externa, não é, nem pode ser, o único valor a guiar a atuação internacional do Brasil, assim como não é em nenhuma das nações do Ocidente democrático. Mas tem crescente importância também porque fortalece o sistema de liberdades no país, que teria muito a perder com a ascensão de regimes autocráticos na vizinhança e no mundo.

A diplomacia profissional brasileira tem tudo para transformar esses valores em ações que contribuam para a dificílima transição do autoritarismo para a democracia na Venezuela. O que fará melhor se o presidente Lula abdicar dos improvisos e se o PT deixar de viver nos tempos da Guerra Fria —e finalmente desembarcar no século 21.