terça-feira, 17 de maio de 2022

As coisas fora do lugar

Quando admitiremos, à luz da coleção de fatos robustecida dia após dia, que as Forças Armadas — zelosas de caráter interventor assaltado à Constituição — estão fechadas com Bolsonaro? Num fechamento que não apenas abarca o ataque à credibilidade do sistema eleitoral, mas mesmo se intensifica neste que é ataque à República.

É óbvio que as Forças são usadas pelo presidente. São usadas sob autorização — estímulo — dos comandos militares. Usam-se. Servem-se. Não há submissos num arranjo de poder que configura o governo militar. Todos mui satisfeitos, os fardados comendo na frente — como lembra a reforma da Previdência que o Ministério da Defesa produziu para si.

Há uma sociedade. Os militares estão com Bolsonaro, ativamente, no projeto de golpear a instituição eleitoral — o que, repito, equivale a golpear a República. Fazem isso de barriga cheia. Essa turma tem nome e está no Planalto; ou não fomos informados de que, desde 2019, os helenos e ramos, usando estruturas públicas, GSI inclusive, operam para colher informações que subsidiem as teorias da conspiração disseminadas por Bolsonaro contra as urnas eletrônicas?

Não nos venham com esses papinhos de que militares incomodados (nunca sabemos quem são) estariam, por meio da ascensão do general Paulo Sérgio ao Ministério da Defesa, costurando, com o TSE, um antídoto à sanha corrosiva do presidente. Os fatos contam outra coisa.

Como se comporta o general que dirige o Ministério da Defesa? Agora, ele centraliza a relação com o TSE na esfera da Comissão de Transparência das Eleições. E querem nos fazer crer que isso seria bom sinal; da tentativa de esvaziamento da infiltração militar no tribunal. Pode-se esvaziá-la à vontade doravante. O estrago está feito.


Naquela ocasião, quando Braga Netto escolheu o braço que plantaria no TSE, ainda havia, no modo como se apregoou o currículo do general Portella, alguma preocupação em dar verniz técnico à jogada. Com Paulo Sérgio matando no peito, o que se informa é que nada mais será — nem sequer disfarçadamente — técnico e impessoal. O assunto é político e será tratado pelo general ministro da Defesa, o próprio espalhamento de uma instituição que, sob a leitura pervertida do Artigo 142 da Constituição, age como Poder especial da República, com alcance para intervir.

Quer entender, no mundo real, a dinâmica da queda do general Portella, apeado da tal comissão? Primeiro: cumpriu a missão. Segundo: é alguém ligado a Braga Netto. Há disputas políticas no interior do governo militar. Braga Netto botou seu homem no TSE e foi ser candidato a vice. Rei morto. Rei posto. O rei posto sendo também o que, convidado e legitimado como interlocutor em matéria eleitoral, fala de igual para igual com os Poderes. Para que intermediários? As questões diabólicas, conjunto cuja essência se resume em “a Justiça Eleitoral brasileira é desonesta”, já resultaram. Nunca precisaram de respostas. Agora é só avançar.

É maio de 2022. Vão-se três anos e cinco meses de um governo que sustenta estado permanente de confronto e instabilidade, para o que sempre colaboraram os militares. Não existe, nunca existiu, ministro da Defesa moderado de Bolsonaro. Ou se é moderado, ou se é ministro da Defesa de populista autocrata. Não dá mais para embarcar na de “Paulo Sérgio é o novo Fernando Azevedo e Silva” — até porque Azevedo e Silva jamais foi moderado.

Ou se é ministro da Defesa moderado, ou se sobrevoa, com o presidente, em helicóptero camuflado, manifestação pedindo “intervenção militar com Bolsonaro no Poder”? Isso foi em maio de 2020.

Quem era o comandante do Exército quando Pazuello, general, subiu em carro de som para — em afronta aos códigos militares — discursar em ato de campanha eleitoral antecipada de Bolsonaro? Paulo Sérgio. E o que ele fez? Colocou os seus no devido lugar ou ignorou o regramento e passou adiante a mensagem de que militar podia ser agente político?

Os coturnos estão sobre a mesa da atividade política.

Que norte para a moderação encontra-se na forma e no conteúdo com que o general reagiu à fala do ministro Barroso — observação tão correta quanto atrasada — sobre estarem as Forças Armadas orientadas a desqualificar o sistema eleitoral? Barroso não deveria ter falado. Muito menos deveria ter reagido o ministro da Defesa. Mas ele é agente político cujo “âmbito das competências” há muito deixou de ser sugestão ambígua.

“As forças desarmadas”, como Fachin definiu quem cuida de eleição, não é só sacada esperta. É expressão que coloca, ao menos em palavras, as coisas no lugar, já que um dos componentes que distinguem e fundamentam a jactância militar como Poder interventor é a condição armada. Exatamente uma das razões por que militar não pode se meter em política.

As coisas — as armas — não estão no lugar. Não fingir que estão ajuda.

Brasil do terror

 


Pais contra a educação?

Nunca imaginei que o professor de geografia de esquerda que tive no segundo colegial fosse parte de um plano para implantar o comunismo no Brasil. Nem muito menos os professores de biologia, orientadores e psicólogos que se encarregaram da educação sexual desde o ginásio. Se fossem, não foi um plano muito eficaz. A maioria dos meus colegas não aderiu ao comunismo e não me consta que nem um único seja "contra a família". Boa parte deles, aliás, vota em Bolsonaro.

Imagine que terror ensinar para inocentes crianças de 14 anos que se deve respeitar as diferentes orientações sexuais? Ou que os jovens devem transar de camisinha para impedir ISTs e gravidez? Infelizmente, é justamente esse tipo de conteúdo que está sob ataque cerrado de políticos, líderes religiosos e pais ansiosos pelo Brasil inteiro. É o que mostra o relatório "‘Tenho medo, esse era o objetivo deles’: esforços para proibir a educação sobre gênero e sexualidade no Brasil", publicado pela Human Rights Watch.


Desde 2014, foram 217 projetos de lei (federais, estaduais e municipais) feitos para barrar "doutrinação" em sala de aula e proibir educação sexual e de gênero. Muitos são aprovados e só caem graças ao STF. Isso conta com apoio direto do governo federal, que só se interessa por educação quando é para estimular a caça às bruxas.

Chegamos ao ponto da então ministra dos Direitos Humanos criar um canal direto do governo federal para a denúncia de professores que atentem "contra a moral, a religião e a ética da família". Stalin —para ficar nas referências comunistas— não faria melhor.

Violência doméstica, abuso sexual, ISTs, gravidez indesejada, bullying. São alguns dos males que a educação sexual consegue prevenir e denunciar. Muitas crianças e jovens só se descobrem vítimas de abuso sexual ou violência —no seio da família, na igreja, na própria escola— graças às aulas de educação sexual.

As iniciativas dentro da política formal —governo e Legislativo— são apenas a ponta do iceberg. A perseguição hoje em dia não precisa do governo. Basta um trecho de aula —ou ainda uma proposta de tarefa— fora de contexto, embalada por um discurso de denúncia daquele "absurdo", um influenciador inescrupuloso, um grupo de pais politizado, e o estrago está feito. Professores recebem ameaça de morte por falar sobre métodos contraceptivos ou violência contra a mulher, algo que todo adolescente brasileiro, sem exceção, deveria conhecer. O resultado, apontado pelo relatório: professores ficam intimidados e omitem temas importantes.

O grupo de WhatsApp de pais da turma é uma ferramenta poderosa. É um jeito de os pais se conhecerem melhor, de acompanharem juntos o andamento da escola. Como pai, isso me ajuda. Acompanhar as atividades dos filhos, trocar impressões, conversar com eles, às vezes até criticar ou apresentar contraponto a algo que venha da escola, é contribuir com a educação. E, quando se acredita que algo grave aconteceu, conversar antes de tudo com a direção. Tudo isso contribui com a educação. Tornar esse grupo uma câmara de eco de histeria moral e denúncia é enterrá-la.

Vivemos na sociedade uma crise de confiança, estimulada por aqueles que ganham semeando a desconfiança infundada. A educação de crianças e jovens depende da relação de confiança entre pais e escola. Miná-la com leis de mordaça e com caça às bruxas é fazer dos próprios filhos bucha de canhão de militância política.

O orçamento de carbono e as eleições brasileiras

São dois os maiores desafios enfrentados por nós, humanos, neste século: reverter a dupla degradação, a humana (pobreza) e a ambiental (destruição de biomas).

Propostas para avançar nesse caminho deveriam ser um dos temas centrais nas eleições brasileiras neste ano; isso seria essencial para os brasileiros termos boas chances neste século XXI. Nada disso, porém, tem ocorrido. As conversas versam sobre quem é menos pior, quem se alia a quem, quem diz algo que aliena quem, quem escorrega ou não. Nunca se aborda o fundamental, ou seja, eleger quem para fazer o quê?

Pode-se afirmar sem receio de errar ser elevado o percentual da população que está ciente e preocupada com a persistência da miséria e com as consequências do aquecimento global, além da má qualidade da saúde e de outras necessidades básicas. Mesmo sem ser tema corriqueiro nas conversas entre eleitores, o “orçamento de carbono” pode ser facilmente entendido. Trata-se da quantidade adicional de gases que ainda se pode emitir sem comprometer os objetivos definidos no acordo de Paris. É tema central em conversas de eleitores de vários países.


Muitos países onde a população é majoritariamente pobre, Brasil inclusive, exigem ajuda dos países ricos para reduzir suas emissões. O argumento é basicamente o seguinte: “nosso povo precisa melhorar sua qualidade de vida. Alterar o padrão energético custa caro. Assim, sem ajuda, optamos pelo “desenvolvimento” e não por reduzir nossas emissões”.

Há muitas falhas neste argumento. A primeira delas é considerar “desenvolvimento” como sinônimo de “melhorar a qualidade de vida”. Esse erro afasta muitas opções que, ao mesmo tempo, podem melhorar a qualidade de vida e contribuir para reduzir as emissões. Por exemplo: 1) acabar com o lixo espalhado pelas ruas, rios, campos e cidades; 2) alcançar pontualidade no sistema de transporte coletivo.

Voltando ao orçamento de carbono, o fato é que restam aos humanos apenas 1,3 trilhões de toneladas para ficarmos dentro das metas de Paris. Devíamos emitir bem menos, para ficarmos abaixo do limite. Dada essa condição, o que se pode fazer para conseguir o máximo de melhora da qualidade de vida dos mais pobres, com o mínimo de emissões?

É preciso que se dê à essa questão e a esse orçamento uma importância no mínimo igual à que se dá ao equilíbrio dos gastos públicos, com ou sem teto de gastos. Isso, para dar aos brasileiros que vivem com várias carências uma chance de melhora. De pouco adianta tentar dar-lhes alimentos que serão levados por uma enchente decorrente do mal controle do uso do solo. Ou permitindo construções ao longo dos cursos d’água. Ou desviando recursos com a finalidade de ajudar a eleger os já eleitos.

São problemas concretos os que afligem a maior parte da população brasileira. Só com propostas também concretas será possível encontrar o caminho para tirar o brasileiro da triste situação em que se encontra.

Se reeleito, Bolsonaro dará um chute no traseiro dos seus devotos

Foi assim que fez Benito Mussolini, o Duce da Itália fascista dos anos 20 a 40 do século passado, tão logo se consolidou no poder. “O homem da Providência”, como o batizou o Papa Pio X, expurgou de suas fileiras mais de 100 mil fascistas de raiz, todos sinceros, porém fanáticos, radicais, que atrapalhavam seus planos.

Sem jamais desprezar o emprego da violência, no comando de um Estado policial onde já não havia mais oposição e o Rei era seu maior aliado, Mussolini queria ser reconhecido pelo mundo como um estadista, e foi, até aliar-se a Hitler, ser deposto, virar um governante fantoche e, por fim, ser morto pela resistência italiana.

Morreu fuzilado. Seu corpo, e o da sua amante, foram expostos em uma praça de Milão, onde o fascismo nasceu depois da Primeira Guerra Mundial. Bolsonaro não precisa se preocupar porque essas coisas não acontecem por aqui. Nem mesmo se preocupar em ser preso. Este é o país dos acordos, não de rupturas.

Investigado em quatro inquéritos que correm no Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro usa o risco de ser preso para se vitimar e despertar os instintos mais primitivos dos seus devotos, para além dos que se reúnem no cercadinho do Palácio da Alvorada. Para todos, ontem, ele passou recibo do seu desespero.



Talvez tenha sido até aqui o recibo mais escandaloso do primeiro presidente candidato à reeleição da história do Brasil que poderá ser derrotado. “A liberdade é mais importante que a nossa própria vida. Ainda falam que eu vou ser preso. Por Deus que está no céu, eu nunca serei preso”, afirmou Bolsonaro.

O discurso de improviso, recheado de palavrões e de gritos, foi feito diante de empresários em um almoço fechado que marcou a abertura de uma feira da Associação Paulista de Supermercados, na zona norte da capital paulista. Pelo cálculo dos organizadores do evento, compareceram 720 pessoas. Os aplausos foram tímidos.

“Eu não sou fodão, não”, disse Bolsonaro, antes de profetizar que o país terá em outubro “eleições conturbadas”. Segundo ele, “tudo pode acontecer. Podemos ter outra crise. Podemos ter eleições conturbadas. Imagine acabarmos as eleições e pairar, para um lado ou para o outro, a suspeição de que elas não foram limpas?”

“Não sou ditador. Sou uma pessoa que tem responsabilidade com o Brasil”, ponderou, para em seguida dizer que “só Deus” poderá tirá-lo da presidência. “Não adianta ficar inventando canetada”. Deus nada tem a ver com isso. Aos homens, concedeu o livre arbítrio. Aos eleitores, caberá decidir a sorte de Bolsonaro.

Foi Lula quem falou que Bolsonaro não teme o voto eletrônico, teme ser preso. Mas não foi o que Lula disse que fez Bolsonaro exaltar-se. Seu destempero foi tal que ele criticou até parte dos brasileiros por sua ignorância. Costuma ser um mau sinal quando candidato critica o povo:

“Uma parte da população não sabe ver diferença. Olha na ponta da linha o preço na gôndola do supermercado e vota de acordo com o que está vendo, achando que vai voltar o diesel a R$ 3, a lata de óleo a R$ 5″.

É sinal de amadorismo quando um candidato dá munição de graça aos adversário, e Bolsonaro deu antes de voar a São Paulo:

“Falam ‘no tempo dele, o povo vivia um pouco melhor do que hoje’. Lógico que vivia, eu concordo. Não tinha o pós-pandemia, do ‘fique em casa’, economia cheia de coisa, uma guerra, entre outros problemas”.

Lula poderá invocar o testemunho de Bolsonaro de que o povo vivia melhor quando ele governava o Brasil. Por sinal, em 2002, Bolsonaro votou em Lula para presidente. Depois procurou-o para sugerir um nome para ministro da Defesa. Levou um chá de cadeira na Granja do Torto e foi embora sem ser recebido.

Bolsonaro sequer tem se dado o cuidado de poupar os que lhe dão razão e atendem aos seus apelos. A pretexto de defendê-los, chamou muitos deles de “malucos” no último domingo em Brasília:

“Um maluco levanta uma faixa lá: AI-5. Existe AI-5? Tem que ter pena do cara”.

Não “tem que ter pena do cara”. Os “malucos” repetem o que já ouviram de Bolsonaro e dos seus filhos. Ouviram que a ditadura de 64 foi boa, ouviram que ela matou menos gente do que deveria, ouviram elogios à tortura e ao coronel torturador Brilhante Ulstra, e ouviram os ataques à Justiça, como este, o mais recente:

“Só um psicopata ou um imbecil para dizer que os movimentos de 7 de Setembro e 1º de Maio atentam contra a democracia. Quem diz isso é um psicopata ou imbecil”.

Ministros do Supremo e do Tribunal Superior Eleitoral classificaram as manifestações bolsonaristas de 7 de setembro do ano passado e de 1º de Maio deste ano de atentados contra a democracia.