sábado, 15 de fevereiro de 2020

Com desvarios do governo, 2020 começa com certo cheiro ruim de 2019

Este 2020 começa com algum cheiro ruim de 2019, com um pouco de mofo e poeira. Há pelo menos paralelismos entre o primeiro e o segundo ano da “nova era”.

1) O crescimento da economia na virada do ano foi frustrante, pelos dados conhecidos até agora, oficiais. Indústria e comércio cresceram menos em 2019 do que em 2018; serviços, um tico mais. O investimento em máquinas, instalações produtivas e residências foi menor, pela estimativa do Ipea.

2) O governo cria crises políticas e de imagem gratuitas e grotescas, atirando no próprio pé, tentando mirar na própria cabecinha.

3) Embora o “parlamentarismo branco”, a nova preponderância do Congresso, tenda a permanecer, mudanças ministeriais, a militarização do Planalto, incompetências políticas e outras barbaridades do governismo vão exigir algum rearranjo da relação com o Parlamento.

4) A demagogia de Jair Bolsonaro levanta outra vez a suspeita, ainda que risco ora remoto, de que o presidente avacalhe de vez a dita “agenda de reformas”, o programa da elite econômica.

Como se sabe, Bolsonaro causou confusão ao tratar de impostos sobre combustíveis ou de dólar, além de fraquejar com a reforma administrativa.

5) O governo parece uma balbúrdia mesmo em assuntos cruciais, de interesse do “bloco de poder”. Bolsonaro, numa contradança com Paulo Guedes, cria confusão sobre a reforma tributária. Em parte, o governo não sabe o que quer; em parte, ideias de Guedes têm sido vetadas em público pelo presidente (CPMF, “imposto do pecado”).

As perspectivas, no entanto, pelo menos até agora, são certamente melhores do que as de 2019, ao menos no que diz respeito à retomada da economia (para quem considera “retomada” um crescimento de uns 2% neste ano).

Ainda assim, o investimento continua catatônico e o governo não consegue colocar na rua um programa de concessões para a iniciativa privada ou medidas que removam o entulho burocrático da economia. Vai tudo ficando para 2021.

Os dados de indústria, comércio e serviço foram frustrantes, mas não há cheiro de queimado ou chabu. Além do mais, os dados publicados até agora não cobrem toda a produção que acaba aparecendo na medida do PIB. Pode haver surpresa (até surpresa ruim, claro).

O regime acidental do “parlamentarismo branco’’, que inexistia até março de 2019, tende a durar pelo menos até o final do ano, o que deve permitir a aprovação de alguma reforma, como a do arrochão dos gastos (PEC Emergencial), sem o que o teto de gastos vai ser furado em 2021. No entanto, o Congresso está meio farto de Bolsonaro.

Com o começo do ano legislativo e protestos dos donos do dinheiro grosso, é possível que Bolsonaro se controle ao menos no que diz respeito a esses interesses econômicos maiores.

Ou seja, delegaria a condução da economia para o premiê acidental Rodrigo Maia e seu ministro Paulo Guedes, dedicando-se como de costume à sua preocupação maior, o desvario ideológico e ultrajes autoritários.

Enfim, em vez da guerra econômica sino-americana, neste ano temos o risco ainda sem medida do novo coronavírus, que vai morder algum crescimento no Brasil.

Em resumo, apesar das perspectivas melhores, o governo recria ou alimenta riscos velhos, engaja-se no desvario e não define prioridades racionais.

Com a economia frágil e a possibilidade normal de choques, por definição fora do nosso controle, conclui-se que o governo está dando muita chance para o azar.

Bolsonaro se importa?

Doméstica não!

A Constituição de 1988 estabeleceu como objetivos fundamentais da República “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza”, “reduzir as desigualdades”, “garantir o desenvolvimento” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Para alcançar esses objetivos, assegurou inúmeros direitos, entre os quais o direito universal à educação e à saúde, além de assistência social a todos aqueles que dela necessitarem.

A esses direitos correspondem uma série de obrigações, sem as quais direitos não passam de promessas vazias.


Além disso, a Constituição também reconheceu que diversos grupos, devido a sua vulnerabilidade ou discriminação histórica, como indígenas, quilombolas, idosos e, especialmente, crianças e adolescentes, merecem proteção especial.

A Constituição está longe da perfeição. Muitas são as lacunas. Cito apenas uma: os trabalhadores domésticos não foram equiparados aos demais trabalhadores.

Essa grave falha só foi sanada em 2013, por intermédio da emenda 72, sob fortes protestos daqueles que transferem às domésticas a responsabilidade de criar seus filhos e limpar suas latrinas.

Não surpreende que Jair Bolsonaro tenha sido um dos dois deputados que votaram contra sua aprovação.

Ainda assim, nossa Constituição não pode ser acusada de indiferente às principais injustiças que estruturam a nossa sociedade.


A Constituição, no entanto, não é uma varinha mágica. Seu desempenho depende da economia, da sociedade e especialmente das políticas levadas a cabo pelos sucessivos governos.

Com objetivo de compreender essas políticas a professora Marta Arretche e diversos colaboradores realizaram um rigoroso e extenso balanço das políticas públicas implementadas entre 1993 e 2015 pelos governos do PSDB e PT (“As Políticas da Política: Desigualdades e inclusão nos governos do PSDB e do PT”, ed. Unesp).

Apesar das diferenças ideológicas e de estratégia, as pesquisas apontam para um processo incremental de implementação dos objetivos da República pelos sucessivos governos, que teve início com a estruturação do SUS, passando pela universalização do ensino fundamental e a expansão do ensino infantil e médio, a criação de uma rede de proteção social para os mais pobres e ampliação do salário mínimo.

Os dados apontam para uma significativa redução da miséria, ainda que com um impacto tímido sobre a desigualdade.

Parte da responsabilidade pela persistência de altos padrões de desigualdade, que voltou a crescer nos últimos anos, é consequência da omissão desses mesmos governos em promover uma reforma tributária que tornasse o nosso sistema menos injusto —o que beneficia os mais ricos em detrimento dos mais pobres.

Isso sem falar nos subsídios, desonerações e outros mecanismos de transferência de renda para os mais ricos.

Em resumo, muitas das políticas progressistas de origem constitucional foram neutralizadas por um sistema tributário altamente regressivo, que foi se enraizando ao longo de décadas.

Como constata Arminio Fraga em contundente artigo publicado na revista Novos Estudos, “o Brasil é dos (países) que mais transferem para os mais ricos, e o que menos transfere para os mais pobres”.

A sistemática erosão das políticas de inclusão social de inspiração constitucional pelo presente governo, combinada com a ausência de uma discussão mais ampla sobre a redução da regressividade de nosso sistema tributário, deixa claro que se a festa do crescimento chegar, doméstica não entra, exceto se for na cozinha.
Oscar Vilhena Vieira

Pensamento do Dia


Um terrível equívoco

Baltazar Almeida tinha orgulho em ser branco. Odiava com igual paixão negros e gays. Aos 20 anos tatuara no ombro direito, em letras góticas, grandes e sólidas: white pride. O problema é que não era branco – era português.

Evitava apanhar sol. Usava protetor solar de grau máximo e nunca ia à praia. Mesmo assim, passeando em qualquer cidade europeia acima de Barcelona era frequentemente confundido com um árabe. O jovem sofria com o equívoco. Por vezes, ao cruzar-se com outros cabeças-rapadas (que mostravam, nos fortes braços, tatuagens semelhantes à sua), estes cuspiam-lhe insultos ferozes: “Volta para a tua terra, pastor de camelos!”, ou algo do género, e era como se lhe acertassem duas facadas certeiras no âmago da sua puríssima alma ariana.

Susa Monteiro
Aquele era o tipo de insultos que o próprio Baltazar gritava em Lisboa contra os pretos. Nada a ver, tentou explicar à namorada, Fátima: uma coisa eram os pretos na Europa, vindos aos magotes de África para roubar os empregos aos brancos, para corromper as culturas nacionais, para impor o Islão, para subverter as instituições, para violar as mulheres e degradar o precioso património genético ocidental; outra era um honesto jovem europeu passeando no glorioso continente dos seus ancestrais.

– Além disso, o que tenho eu a ver com um árabe?

Baltazar viajava bastante pela Europa, em trabalho. Escondia as tatuagens dos colegas, mas tinha mais dificuldade em ocultar os preconceitos, o que já lhe trouxera vários dissabores. Certa tarde, estando de passagem por Hamburgo, achou-se diante de uma manifestação de extrema-direita. Viu a sua gente avançar, uma multidão sólida, vestida de negro, gritando palavras ásperas, e, num impulso solidário, correu a juntar-se a ela. Infelizmente, o seu gesto foi mal-interpretado. Um sujeito gordo, espantosamente ágil atendendo ao excesso de peso, cortou-lhe o caminho com um súbito golpe no pescoço. O português caiu no chão, arfando, e no instante seguinte estava rodeado de brutos, que o socavam e pontapeavam. Viu o brilho de uma lâmina e o sangue que saltava, mas não sentiu dor nem compreendeu onde o haviam ferido. Julgou que morreria ali, por um triste equívoco, às mãos dos companheiros de ideais. O alarido aumentou. Uma turba embateu contra a primeira. Alguém o ergueu. Baltazar abriu os olhos e percebeu que mudara de lado. Um grupo de jovens arrastava-o para longe. Gritavam em árabe. “Estes gajos estão a falar árabe!”, pensou, aterrorizado: “Estou a ser raptado por árabes!”

Na verdade, seria mais acertado chamar-lhe resgate. Uma porta abriu-se, outra fechou-se. Estenderam-no num divã. Baltazar olhou em volta e percebeu que estavam num restaurante oriental. Doía-lhe o corpo todo. Levou a mão esquerda ao ombro direito e sentiu a camisa empapada. Um rapaz de olhos largos e brilhantes colocou-se diante dele. Falava alto, numa algaraviada rápida e cerrada.

– Sou português. – Conseguiu dizer Baltazar, em inglês. – Não falo árabe.

– É português – disse o rapaz para os outros, mudando também para o inglês. – Um árabe cristão. Como te chamas?

– Almeida…

– Al-Maída, a mesa – traduziu o rapaz, rindo-se muito. Todos se riram. – És um bravo! Vimos como te lançaste sozinho contra os nazis.

– Não… Eu…

— Sim, sim, todos nós vimos. És um herói, Al-Maída.

Os outros vieram abraçá-lo, comovidos. Uma moça apareceu com água e material de primeiros socorros. Explicou que era enfermeira e pediu-lhe para tirar a camisa. Precisava tratar do ferimento. Baltazar lembrou-se da tatuagem. O que aconteceria se vissem a tatuagem?

– Não, não! Estou bem. Não vale a pena. Isto é só um arranhão…

A moça insistiu. Com uma tesoura, cortou a camisa. Depois, com um algodão, delicadamente, começou a limpar-lhe o ombro. Baltazar fechou os olhos. Pela primeira vez arrependia-se de ter mandado fazer a tatuagem.

– A ferida não é profunda – disse a enfermeira. – Mas estragaram-lhe a tatuagem. Só se consegue ler “pride”. Era “gay pride”?

À sua volta houve murmúrios, risos abafados.

– O português é gay – disse um dos rapazes.

A moça indignou-se:

– E qual é o problema de ser gay? É mais corajoso do que qualquer um de vocês.

Baltazar assumiu: sim, era gay, um gay português, quase árabe. Regressado a Lisboa, contou à namorada que havia sido assaltado por um bando de pretos. Um deles dera-lhe uma facada no ombro. Destruíra-lhe a tatuagem. “Não te preocupes”, consolou-o Fátima: “Fazes outra.”

Então, torturado pelos remorsos, Baltazar hesitou:

– Talvez não fossem bem pretos…

– Não?!

– Talvez fosse o contrário.

– Como assim?

– O preto era eu. O preto deles.

E caiu num imenso pranto. Depois, sentiu-se melhor. A verdade conforta.

José Eduardo Agualusa

Maus modos

Pensar antes de falar é um trabalho insano tanto para o presidente quanto para seus ministros. A ideia lhes vem à cabeça e eles a expelem sem o menor cuidado. Cinco minutos depois ou se desmentem ou tentam explicar o inexplicável. E fica tudo como dantes.

Agora o Posto Ipiranga do Bolsonaro inventou uma nova. Fala besteira em cima de besteira, agride os ouvintes com suas patacoadas e depois diz que, à maneira do presidente, sofre de maus modos. Com o que não se importa, pois o que lhe é importante é o conteúdo. Mas qual conteúdo ele encontra no que disse ontem? Que a farra do dólar baixo estava tão grande que havia empregadas domésticas indo à Disney quatro vezes por ano?


Isso, que eu saiba, é uma tremenda inverdade. Pode ser que uma empregada que sirva a um dos ricaços que frequentam os salões da família Guedes tenha ido à Disney para acompanhar as crianças da casa onde trabalha. Pode ser. Mas que ela tenha ido quatro vezes em 365 dias por sua própria conta, duvideodó.

Começa que nós, brasileiros, não fomos premiados por Trump como os americanos foram premiados por Bolsonaro. Para entrar nos EUA precisamos de visto, que é caro e cheio de obstáculos até ser concedido por aquele país que anda expulsando estrangeiros.

O extraordinário Guedes sugere que em vez de ir à Disney nossas empregadas façam turismo em Foz do Iguaçu, praias do Nordeste ou que visitem a cidade onde nasceu Roberto Carlos. Será que ele já foi, em avião de carreira ou de ônibus, a qualquer desses lugares? Não vale a viagem mais comum, pela FABTOUR. Só vale a viagem paga do próprio bolso.

Se ele já foi a esses belos lugares do Brasil, sabe com certeza que não são nada baratos. Cara é a hospedagem por mais simples que seja, caros são os quiosques ou restaurantes, caríssimo é o transporte por lá.

Pena. Pois se fosse possível às nossas empregadas domésticas irem à Disney, que maravilha o Brasil seria. Viagens são instrutivas. Sempre aprendemos alguma coisa. E na Disney curtimos a alegria de personagens que conhecemos desde a infância, andamos em brinquedos maravilhosos e ainda ganhamos abraços do Pateta.

Não dos patetas daqui, que esses não abraçam gente simples, só abraçam os clientes VIP do Posto Ipiranga.

Ainda um detalhe: senhor Guedes, aprenda a falar português. Não usar um guardanapo, não levantar ao cumprimentar uma senhora, não oferecer o lugar a um idoso ou a uma grávida, falar em voz alta no cinema, assoar o nariz sem um lenço, esses são maus modos.

O que o senhor e o presidente fazem não são maus modos. São, desgraçadamente, somente falta de educação.

Acredite, se quiser

A Amazônia é nossa e queremos preservá-la e fazer com que possamos ser beneficiados com os recursos de forma sustentável
Jair Bolsonaro

Governo desmonta biblioteca do Palácio do Planalto para abrigar Michelle

As obras já começaram, de novo. A tradicional biblioteca da Presidência da República, localizada no anexo I do Palácio do Planalto, está sendo reduzida pela metade para receber e equipe do programa Pátria Voluntária, coordenado por Michelle Bolsonaro. O local também vai abrigar uma sala para a primeira-dama.

A coluna perguntou à Presidência qual o valor gasto com a reforma, mas não teve resposta. O governo também não quis comentar detalhes da obra e o motivo da diminuição da biblioteca.

Com um acervo de 42 mil itens e 3 mil discursos de presidentes, o local tem a função de preservar a memória dos presidentes do Brasil. Agora, a biblioteca terá seus espaços de estudo, convivência e leitura praticamente extintos. Também não terá mais capacidade de aumentar o acervo, segundo pessoas que acompanham as obras. Já a sala de Michelle e sua equipe ganhará até banheiro privativo.

A previsão é que os trabalhos iniciados na semana passada terminem no início de março. Essa é a segunda vez que o governo federal banca uma reforma para abrigar Michelle Bolsonaro e sua equipe na Esplanada. 

Há sete meses, foram gastos R$ 330 mil em obras no Ministério da Cidadania para adaptar salas para a primeira-dama e servidoras do Pátria Voluntária. Pessoas que trabalham na pasta afirmam que era raro Michelle aparecer por lá.

Antes da 'reforma'
No fim do ano passado, o programa pátria voluntaria migrou da pasta da Cidadania para a Casa Civil, que funciona dentro do Palácio do Planalto.

– Nossa preocupação é o impacto dessa reforma na preservação da memória institucional do Brasil. Em todos os países, as bibliotecas presidenciais têm o objetivo de preservar o legado dos presidentes. – disse Fábio Cordeiro, presidente do Conselho Regional de Biblioteconomia da 1ª Região.

As bibliotecas presidenciais disponibilizam ao público documentos e materiais históricos de todos os presidentes e de órgãos e servidores ligados à Presidência. A Biblioteca Presidencial do Brasil também documenta discursos e fotos oficiais dos ex-presidentes e garante acesso público a esse material.