sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Surfistas de onda fáceis

Uma catástrofe aconteceu em Brumadinho porque a empresa dona da barragem que se rompeu e as instâncias do poder público responsáveis por regular a operação foram e são criminosamente negligentes. Esse é o fato. Já as versões que nos dias seguintes se reproduziram a respeito, principalmente na internet, tiveram menos a ver com o fato e mais com o drama ou a comédia (sim, houve disso) que as pessoas se dispuseram a fazer dele com base nas respectivas posições ditas políticas.

Atitudes usuais em se tratando das redes, esses ambientes permeáveis aos surfistas de ondas fáceis. Desconforta, no entanto, constatar que uma tragédia das proporções da ocorrida em Minas Gerais seja utilizada para esse tipo de atividade. E aqui se incluem todas as correntes delirantes: a daqueles que culparam a privatização da Vale nos anos 1990, a dos que responsabilizaram a insensibilidade de Jair Bolsonaro e companhia ao tema do meio ambiente e a turma que resolveu tripudiar sobre a população de Brumadinho porque Bolsonaro ganhou a eleição na cidade.


O traço comum entre esses grupos é o exercício da manifestação sem compromisso algum com a realidade e com os efeitos que possam causar aos outros. Repetiu-se a situação quando da morte do irmão mais velho de Lula, em razão do pedido do ex-presi¬dente para comparecer ao velório. De um lado, falou-se que a autorização dada pelo ministro Dias Toffoli a Lula para ir a uma unidade militar encontrar-se com parentes, com proibição de fotos e uso de celular, significava um “sequestro” dos direitos do ex-presidente, e, de outro, fizeram-se inúmeras piadas com a entrevista da presidente do PT, Gleisi Hoffmann, no cemitério. Houve até quem aventasse a hipótese de uma armação para permitir a saída temporária de Lula da prisão em Curitiba.

Além de desnecessárias, são em alguns aspectos manifestações nefastas, prova de que boçalidade não tem ideologia. Sinais de um tempo em que as pessoas se impõem a obrigação de dar opinião sobre tudo, saibam ou não a respeito do que falam, tenham ou não informações mínimas sobre o assunto de que tratam. O destaque disso que chamemos aqui de fenômeno, até por falta de termo mais adequado, é a tendência de dar ao fato o caráter de drama ou de comédia, dependendo do gosto do freguês.

O que se tem com isso é um misto de superficialidade e distorção, cujo resultado é um elogio permanente à ignorância. Seus autores são todos uns indignados de plantão, donos da convicção de que suas opiniões dão rumo ao mundo. Tomando emprestada de Nelson Rodrigues a expressão e pedindo licença para trabalhar no seu inverso, formariam com louvor na tropa dos imbecis da falta de objetividade.

A postos. Com todos os elogios que já foram feitos ao comportamento de Hamilton Mourão no exercício da Presidência, há que notar uma franca adaptação do general algo folclórico da campanha ao personagem de vice-presidente em contraponto ao chefe, pronto para o que der e vier.

A lama, o ódio, a responsabiidade

Um país que faz a gente se confrontar com um sentimento tão violento precisa parar e repensar, a sério, as suas prioridades

Como é morrer soterrada na lama? Eu já levei muitos caldos na praia, já tive o lombo arranhado pela areia do fundo, perdi noção se subia ou descia, engoli tanta água salgada que a garganta e o nariz ficaram ardendo dias — não cheguei a me afogar mas quase, e não preciso fazer um grande esforço de imaginação para entender como é morrer no mar.

Qualquer um que já caiu numa piscina ou que teve banheira em casa quando era criança e tentou ver quanto tempo ficava sem respirar tem pelo menos uma vaga ideia de como é morrer afogado na água.


Mas como é morrer afogada na lama? Como é ser arrastada por aquela massa? Como é sentir o impacto, perder o pé, engolir aquela porcaria toda? Como é tentar lutar por ar naquela escuridão gosmenta?

Tento imaginar mas desisto logo, abalada pelo horror. Subo para a superfície do pensamento, respiro e tenho vontade de gritar, de sair para a rua quebrando tudo, de me esconder debaixo da cama e de comprar a primeira passagem para qualquer outro canto, tudo junto, ao mesmo tempo.

Penso em Brumadinho, nas vítimas de Brumadinho, em toda a natureza perdida de Brumadinho, e sinto um ódio tão grande e tão poderoso quanto a lama.

Um país que faz a gente se confrontar com um sentimento tão violento precisa parar e repensar, a sério, as suas prioridades; uma empresa que traz esse sentimento à tona precisa parar, ponto.

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Até agora, as multas do Ibama aplicadas à Samarco ainda não foram pagas; até agora, os atingidos de Mariana aguardam reparação.

Diretores vão para a televisão, manifestam surpresa, pedem desculpas, choram lágrimas de crocodilo... e continuam intocáveis e intocados nas suas vidas bem acolchoadas, homens virtuosos que, afinal, não fizeram nada.

Quando não vão eles, vão os seus advogados, para negar qualquer responsabilidade.

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O governo falhou na fiscalização, falhou na legislação, falhou em tudo o que precisava ter feito mas não fez, tudo o que precisava ter feito mas não faz, desde que existe governo neste país. A canalha é federal, estadual e municipal. Se isso não bastasse, ainda precisamos aguentar o cinismo de autoridades e ex-autoridades que tentam usar politicamente a tragédia pela qual são corresponsáveis.

Mas é fácil apontar o dedo para as falhas do governo, e dizer que a Vale, afinal, agia dentro da lei.

Empresas, como pessoas, precisam ter valores. Uma pessoa decente não é decente apenas por medo de ir para a cadeia; uma empresa decente não pode ser decente apenas no limite da lei — que ela molda e retorce de acordo com as suas conveniências.

Gente fora do mapa


Crescimento econômico de baixo carbono

A questão que mais se destacou em 2018 para as perspectivas de crescimento econômico dos países foi o impacto devastador da negligência ambiental e da mudança climática induzida pelo homem. Para o Brasil a escolha se coloca entre buscar um crescimento econômico anual no curto prazo de 3% a 4% em detrimento do meio ambiente, ou se empenhar no crescimento sustentado de longo prazo por meio de ações ambientais e climáticas. Esta última opção é muito melhor para o País, mas é preciso ter vontade política para ser posta em prática.

Quando há uma estagnação no crescimento econômico, é tentador pôr a culpa nas regulamentações ambientais e nas ações climáticas. Porém está claro que crescer à custa da destruição do meio ambiente não produziu o avanço econômico sustentado no Brasil. Uma estratégia de crescimento de longo prazo precisa de investimentos e cuidado, não apenas em relação ao capital físico e humano, mas também ao capital natural, especialmente num país como o Brasil, com a riqueza de seus recursos naturais.

Além disso, as recentes inundações, tempestades, secas e ondas de calor que bateram recordes alertam que o aumento das emissões de carbono vai acelerar a mudança climática, prejudicando vidas e meios de subsistência e reduzindo o crescimento econômico. Com a sua extensa costa e diversos tipos de solo, o Brasil é altamente vulnerável a enchentes e secas.


Os perigos estão aqui e agora. Os cientistas vêm alertando que a maior probabilidade da ocorrência desses eventos extremos está associada às emissões de carbono e mudanças no clima. Em 2018 houve chuvas intensas na cidade de São Paulo e a precipitação em apenas uma hora no Rio de Janeiro correspondeu à de um mês inteiro. O Sudeste foi atingido recentemente por uma prolongada seca, exacerbada pelo desmatamento e as mudanças climáticas. Enquanto isso, a Argentina e o Uruguai sofreram secas recordes. Nos Estados Unidos houve grandes destruições provocadas por enchentes monumentais e pelos piores incêndios florestais da história do país.

O Brasil é o 11.º maior emissor de dióxido de carbono, mas tem sido também um dos líderes na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas. Como maior mercado de energia renovável da América Latina, o País pode se tornar altamente competitivo em energia eólica, solar e hídrica. Energia renovável pode ser o maior nicho das contribuições do Brasil e um motor de crescimento econômico.

Contudo, após os avanços registrados desde 2005, houve um recente e acentuado aumento do desmatamento e das emissões de carbono – o que vai em sentido contrário ao compromisso assumido pelo Brasil no Acordo de Paris de reduzir a zero o desmatamento ilegal na Amazônia brasileira em 2030. Em agosto de 2018 o País derrubou três vezes mais árvores do que a área devastada no mesmo período do ano anterior.

A importância do Acordo de Paris é que todos os países, ao imporem limites às emissões de carbono, criaram um instrumento valioso, como o estabelecimento do preço de uma matéria-prima, para modificar e compartilhar o uso do ar, que, por ser livre, acaba sendo mal utilizado. A adoção dessa medida por todos os interessados acarretará grandes benefícios para a economia brasileira.

Com milhões de hectares de terras abandonadas ou subutilizadas, o Brasil pode usar os solos degradados para expandir a fronteira agrícola, sem precisar se aventurar em novas áreas. Afinal, o desmatamento ilegal é, em sua maior parte, a apropriação privada de recursos públicos, com impacto econômico negativo. O crescimento de baixo carbono na agropecuária também se estende ao transporte, no qual é possível depender menos de novas estradas e mais de ferrovias e hidrovias.

Outros países também necessitam realizar profundas mudanças. As emissões da China continuam a aumentar, embora o país esteja investindo em energia renovável. A atual administração dos Estados Unidos vem desmontando as políticas de proteção do meio ambiente, substituindo-as por ações favoráveis aos combustíveis fósseis, que poderão provocar um grande aumento das emissões de carbono – o que prejudica a vida dos americanos e constitui um crime contra o desenvolvimento global.

Enquanto isso, algumas soluções políticas e tecnológicas estão sendo adotadas em âmbito local. O número de cidades no mundo que utilizam energia limpa duplicou nos últimos três anos. Uma lei de 2018 aprovada na Califórnia exige que toda a eletricidade seja proveniente de fontes renováveis ou sem emissões de carbono até 2045, com metas intermediárias para 2026 e 2030. Chile, Alemanha, México, África do Sul e Reino Unido estão começando a cobrar impostos sobre o carbono.

Relatórios das Nações Unidas e do governo dos Estados Unidos, divulgados no ano passado, sugerem que se está reduzindo rapidamente a expectativa do alcance de um nível máximo das emissões globais em 2020, passando, na sequência, a uma queda acentuada, para manter o aumento da temperatura abaixo de dois graus centígrados. Se os países principais emissores, incluindo o Brasil, seguirem a rota de aumento para as emissões de carbono, o aquecimento atingirá de fato mais de dois e até três graus Celsius, impedindo assim todas as perspectivas de crescimento econômico.

A pergunta crucial não é se o Brasil vai retomar o crescimento, mas como esse crescimento se pode concretizar incorporando as ações sobre o clima. O País é altamente vulnerável às mudanças climáticas e tem todo o incentivo para liderar o mundo na transição para um caminho de baixas emissões de carbono.

O mar de lama que degrada a República

Já é hora de pensar nos fatores e nas causas de termos estacionado no estágio histórico da raiva e do ressentimento e não termos conseguido chegar ao estágio civilizado da indignação para demarcar nossa postura política.

Grupos proto-políticos, em décadas recentes, têm cultivado o ressentimento contra a história e o nosso passado, como se viu nas celebrações do quinto centenário da descoberta do Brasil. Reivindicam uma história sem contradições, antidialética. Não sabem que a pátria é sempre muito mais do que o tão somente.

Não são diferentes os grupos que acabam de chegar ao poder, ainda dispersos em orientações ideológicas e excludentes, que satanizam o outro para elaborar suas equívocas certezas. Especialmente os oportunistas que se penduraram na campanha do candidato vencedor. São prisioneiros da extinta Guerra Fria.

Dois acontecimentos destes dias nos dão a medida do purgatório a que essas polarizações nos condenam. Um, a renúncia, antes da posse, do deputado federal reeleito pelo Rio de Janeiro, Jean Wyllys, porque ameaçado de morte já muito próxima de sua pessoa.

O general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, reconheceu que o fato grave fere a democracia. Portanto, nos fere a todos em nossos direitos como cidadãos. A renúncia de Jean Wyllys mostra que a ameaça de morte que lhe é dirigida faz o Brasil bem menor do que temos o direito de querer. Nos bastidores há uma máquina de delinquência política que ameaça a todos, não só alguns. É o mar de lama que degrada a República.

O outro acontecimento é o da tragédia de Brumadinho, em Minas Gerais, a lama dos rejeitos de uma das minas da Vale cobrindo extensa área, matas, plantações, águas. Sobretudo seres humanos, o melhor patrimônio da nação. Em resumidas contas, porque neste país, diferente de outros países autenticamente capitalistas, o lucro está acima de qualquer suspeita, é irresponsável e inimputável a priori.

Nessa perspectiva deplorável, a pátria é o resto, o descartável. A lama do lucro sem compromisso com o destino de todos se sobrepõe à vida e aos valores que nos definem. Talvez devêssemos reler "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", de Max Weber, para rever ali as condições éticas e históricas que viabilizaram o nascimento do capitalismo.

É descabido que o governo, recém-inaugurado, se defenda alegando que não é responsável pela tragédia. Ninguém disse que o é. Mas ninguém disse que não o é. Quando um partido assume o governo, mesmo em nome de antagonismos ideológicos, assume as funções do Estado e herda todas as responsabilidades históricas que fazem parte do legado do Estado.

Não pode omitir-se em relação à violação de princípios, de valores e obrigações pressupostos na Constituição e nas leis. Se não é cúmplice dos responsáveis pela tragédia, é responsável pelas medidas duras que no caso cabem para sobrepor as razões de Estado ao senso comum de seus motivos partidários. Essa lama confronta a campanha eleitoral. Já é o real e o depois.

Não se pode nem se deve negar a prontidão desse governo no reconhecimento da tragédia e nas providências muito rápidas para salvar os que podem ser salvos e aliviar o sofrimento da extensa lista das vítimas colaterais de mortos e desaparecidos.

A campanha eleitoral vencedora foi de satanização de algumas das mais significativas conquistas do povo brasileiro no que se refere aos direitos sociais, aos direitos humanos, à defesa do patrimônio ambiental, ao reconhecimento da humanidade das populações indígenas, ao direito à diferença entre as pessoas e à pluralidade das ideias. Vai o governo, agora, descobrindo suas limitações ideológicas no dia a dia do poder.

Nosso grande patrimônio humano, moral e histórico, é o que nos faz plurais em todos os sentidos, mas também o que nos diferencia como povo de singularidades: modos de ver, de viver, de pensar e de reagir defensivamente na crítica aos abusos, ao desrespeito que nos minimiza e subjuga. Mas onde está nossa indignação construtiva?

O Estado cúmplice dos poderios mesquinhos dos que mandam mais do que tem o direito de mandar e cúmplice do lucro acima da moral, dos bons costumes e da própria vida é o Estado que padecerá de permanente déficit de legitimidade, sempre dominado pela instabilidade que decorre inevitavelmente desse carecimento.

Um fato positivo das adversidades de quem governa é que, nesse governo, vão elas descontruindo as limitações de um senso comum impróprio ao exercício do poder. O general Augusto Heleno, em face da lama, corrigiu a interpretação de que o governo pretenderia flexibilizar as leis ambientais. Ao contrário, pretende racionalizar sua aplicação e torná-las mais rígidas, explicou.
José de Souza Martins

Corrupção é geral


Em política nada se perde e nada se transforma - tudo se corrompe
Millôr Fernandes

A palavra magica

Todo motorista alemão teme a frase “até que o TÜV” nos separe. Significa que o veículo dele não passou pelo TÜV (“Technischer Überwachungsverein”, a organização privada que vigia, entre milhares de outras coisas, se um carro obedece às normas técnicas para circular nas ruas). O TÜV foi inventado em 1865 no sul da Alemanha para acabar com as frequentes explosões de caldeiras a vapor, especialmente em cervejarias.

Trata-se de uma organização privada que assumiu funções do poder público (vigiar normas técnicas) e deu tão certo nos últimos 150 anos a ponto de se transformar num produto de exportação alemão. “Examinado pelo TÜV” está carimbado na placa de cada veículo, no reator de uma central nuclear ou numa escova de dentes. Funciona como atestado de qualidade e respeito às normas (legais e técnicas) emitido por organização independente e privada.


No Brasil, uma das três grandes “holdings” regionais dessa organização, o TÜV SÜD (24 mil funcionários, US$ 2,6 bilhões de faturamento) em meados do ano passado conferiu à barragem da Vale que se rompeu em Brumadinho um macabro “tudo ok” de trágicas consequências. Como assim aquilo que os alemães apontam com tanto orgulho – o autocontrole exercido pelo próprio setor privado da economia – não funcionou no Brasil?

Advogados já consideram como o TÜV – assim como a Vale – terá de assumir no mínimo responsabilidades cíveis pela tragédia, mas o que as investigações e o noticiário de Brumadinho já parecem sugerir é um contexto de falha coletiva que envolve a grosso modo os dois setores (público e privado). Por exemplo, barragens como a de Brumadinho (rio acima) são proibidas em países de tradicional atividade de mineração, como Peru e Chile, por causa de frequentes terremotos.

No Brasil, a técnica obsoleta de confecção dessas barragens (nas quais se utilizam os próprios rejeitos da mina) se arrasta desde a década dos anos 1970. A fiscalização não existe ou é incipiente, numa clara demonstração que talvez o principal problema da burocracia brasileira nem é o excesso dela, mas o fato de que não funciona. E que prevalece em boa parte a mentalidade – nos setores público e privado – resumida na expressão “se nada aconteceu até agora é porque nada vai acontecer”.

Pois aconteceu. E deve alterar substancialmente a atmosfera política nacional e internacional para se debater a relação entre desenvolvimento econômico (sobretudo a exploração de recursos naturais, como agricultura e mineração) e proteção do meio ambiente.

Se o governo de Bolsonaro se elegeu apegado em parte à narrativa política de que licenciamento ambiental não pode se transformar em barreira burocrática à atividade empresarial, a tragédia de Brumadinho altera fortemente a percepção que o público tem da questão e, portanto, vai exigir do presidente e seus ministros habilidade política em vez de frases de efeito. A palavra mágica “desregulação” se arrisca a virar palavra maldita.

O TÜV SÜD expandiu sua venda de serviços ao Brasil na euforia das obras de infraestrutura para a Copa de 2014. Também empenhada em crescer a todo custo, a organização alemã encontrou aqui nosso jeito tradicional no qual leis “pegam” ou “não pegam”, fiscalização existe sobretudo no papel, a burocracia é pesada e ineficiente e um autointitulado “orgulho nacional”, como a Vale, a maior produtora mundial de minério de ferro, demonstrou que, se sabia de erros do passado, precisou de mais um desastre para dizer que vai corrigi-los.

Ambiente institucional – a relação entre ideias e interesses – , diria esse tão citado sociólogo alemão, Max Weber, é tudo.

Imagem do Dia

Monsanto, Distrito de Castelo Branco (Portugal)  

Apenas acesso à educação não é suficiente para reduzir desigualdade

O Brasil é hoje um dos países mais desiguais do mundo com quase 30% da renda nas mãos de apenas 1% dos habitantes do país. Para tentar diminuir tamanha brecha entre os ricos e os pobres, o investimento em educação quase sempre aparece como um dos remédios mais promissores. A solução frequentemente repetida para tentar resolver a desigualdade, entretanto, já é relativizada por especialistas.

Um estudo recente mostrou que optar apenas por uma política de expansão de ensino, dentro de um prazo razoável, não é suficiente para melhorar os salários e impactar na distribuição mais igualitária de renda do trabalho no país. A pesquisa foi realizada pelos sociólogos Marcelo Medeiros, do Instituto de Pesquisas Econômica Aplicadas (Ipea), Rogério Barbosa, da Universidade de São Paulo (USP), e Flávio Carvalhes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


"Em termos globais, a educação já não é mais uma grande solução para os problemas de pobreza e desigualdade no Brasil. Ela pode ser vista como uma alternativa apenas num prazo muito longo", explica Medeiros.

Através de simulações com dados estatísticos, o grupo concluiu que, se desde 1994 o Brasil tivesse conseguido um sistema educacional "perfeito" em que os alunos de todo o país saíssem da escola com, no mínimo, o ensino médio completo direto para o mercado de trabalho, a desigualdade hoje teria caído apenas 2%.

A pesquisa apontou ainda que o quadro não seria muito diferente caso uma grande reforma garantisse que ninguém deixasse o sistema de ensino sem um diploma universitário. Em um caso hipotético em que todos os alunos tivessem conseguido um diploma semelhante ao de formação de professores e Ciências da Educação, uma das profissões mais mal pagas do mercado, a desigualdade teria recuado 4%.

"É uma queda muito pequena diante do grande esforço que o Brasil teria conseguido fazer para isso. Não dá mais para falar que é a educação que vai diminuir a desigualdade", afirma Marcelo Medeiros. Para o pesquisador, além desta via de combate à disparidade de renda ter um efeito menor do que se idealiza, seria necessário no mínimo meio século para conseguir educar toda a força de trabalho do país. "É tempo demais para esperar diante da urgência do problema", avalia.

Em 2017, o Brasil era o nono país do mundo com a maior desigualdade de renda, segundo o coeficiente de Gini. O mais desigual do continente americano. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano passado, o Gini foi de 0,549, conforme a renda média mensal domiciliar per capita. O indicador varia de zero a um, quanto mais próximo de zero, mais perto de uma situação ideal de absoluta igualdade.
Ensino médio é pouco

Os pesquisadores também simularam os efeitos da educação em um prazo mais longo, mas, novamente, os impactos dos estudos na queda da desigualdade foram aquém do que se imagina o senso comum. Em um cenário hipotético em que, desde 1956, todos os alunos tivessem concluído ensino médio ou tivessem o ensino superior incompleto, a desigualdade não teria caído nem 10% nos dias de hoje. Apenas em um cenário mais extremo, no qual fosse viável para todos, há mais de 60 anos, o ensino superior com retornos financeiro equivalentes aos proporcionados por um diploma em medicina, uma das carreiras mais bem pagas do país, é que a diminuição da brecha poderia chegar a um patamar substancial: 18%. O estudo ressalta, entretanto, que oferecer educação de elite para toda a força de trabalho é algo irrealista, "pelo menos em qualquer cenário futuro minimamente possível".

"O que concluímos é que ter um ensino médio é pouco para combater as diferenças de renda. O Brasil precisa massificar o acesso à universidade para ter um resultado melhor na queda da desigualdade. Nas últimas décadas, o ensino superior foi expandido, mas ainda precisa ser muito mais", diz Medeiros.

As propostas defendidas pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, no entanto, parecem ir de algum modo na contramão dessa expansão. Uma das propostas dele é transferir recursos do ensino superior para o ensino básico. No seu programa de Governo, Bolsonaro ressalta que os gastos com educação no Brasil —cerca de 6% do Produto Interno Bruto— são comparáveis aos de países desenvolvidos, mas os resultados estão entre os piores do mundo. Ele propõe uma "reversão da pirâmide" de despesas para priorizar a educação básica. Para o ensino superior, o programa fala em parcerias de universidades com a iniciativa privada para desenvolvimento de novos produtos visando aumentar a produtividade no país.

O país é hoje um dos com o maior número de habitantes sem diploma do ensino médio. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mais da metade dos adultos (52%) com idade entre 25 e 64 anos não possuem esse nível de formação. E apenas 15% da população brasileira tem curso superior.

Na avaliação do pesquisador Rogério Barbosa, os dados do estudo comprovam que é preciso deixar de lado a ideia que a educação é a solução para todos os problemas. Na avaliação dele, a redução da desigualdade poderia ser atacada de forma mais rápida caso fossem adotadas medidas contra a discriminação de gênero, raça e cor no mercado de trabalho e através de uma reforma tributária que adotasse um programa que aumentasse a progressividade dos impostos.

"A educação é mais que necessária, é um requisito de cidadania, que possui inúmeros bens sociais. Mas hoje não é ela a credencial que vai te fazer ganhar mais. Os aumentos do salário mínimo, por exemplo, foram a principal política distributiva na década de 2000. Muito mais rápida e efetiva do que a educação", afirma Barbosa.
Pobreza

Com respeito à pobreza, a pesquisa "Educação, desigualdade e redução da pobreza no Brasil" mostrou que os impactos da educação são um pouco mais relevantes. No entanto, os estudiosos ponderam que o poder de redução da pobreza por essa via diminuiu, ao longo das últimas décadas, já que uma série de políticas do mercado de trabalho e de programas de assistência —como o Bolsa Família, de transferência de renda— tornaram a população menos pobre independentemente da formação escolar.

Para que o Brasil reduzisse a pobreza para menos da metade, seriam necessárias enormes melhorias, como, por exemplo, garantir a universalização da formação superior. Uma mudança ambiciosa, mas mais realista, segundo os pesquisadores, seria a de garantir que ninguém saísse da escola sem o ensino médio completo. No entanto, mesmo com esse nível de instrução da população, a pobreza ainda seria igual a três quartos da atualmente observada.

Com a lama na alma

Metáforas são um perigo. Quando rompem suas barragens e jorram pelas encostas do sentido literal, fenômeno menos raro do que parece, têm grande poder de destruição física.

Veja-se o proverbial "mar de lama". Na crise que conduziu ao suicídio de Getúlio Vargas em 1954, a expressão brandida pela UDN no parlamento e na imprensa virou um dos mais poderosos bordões da política brasileira em todos os tempos.


É a senha definitiva da denúncia —meio justificada, meio histérica— de uma corrupção supostamente universal e sem freios instalada no seio do populismo de esquerda, arma de mobilização eleitoral que o populismo de direita não inventou agora.

Curiosamente, a paternidade de "mar de lama" é atribuída ao próprio Vargas, que com imagem tão gráfica teria expressado a um coronel da Aeronáutica sua decepção com as jogadas corruptas de Gregório Fortunato, chefe de sua guarda pessoal. Mas essa é outra história.

"Mar de lama" virou chavão, metáfora morta, mas em sua origem era uma imagem potente —ou não teria sido abraçada por Carlos Lacerda, um dos mais brilhantes oradores de nossa história parlamentar (essa parte nosso populismo de direita desaprendeu), em sua feroz campanha contra Vargas.

É claro que, entre aquele Brasil dos anos 1950, que mal engatinhava esperançosamente na modernidade, e o de agora, mistura grotesca e já exausta de arcaico e pós-moderno, o mar de lama do Catete ganhou um ar até bucólico de poça d'água, mas não é disso que quero falar aqui. O que me interessa é a história de uma boa metáfora.

Na tradição rural —vastíssima nos sentidos geográfico e histórico— em que o Brasil nasceu e foi criado, a lama simboliza o atraso. A urbanização é uma guerra contra ela. Carros de boi atolavam na lama, vacas iam para o brejo. "É o carro enguiçado/ É a lama, é a lama", cantou Tom Jobim em "Águas de março".

Além do atraso, coube à lama simbolizar a pobreza e a sujeira física e moral a ela associada: metiam-se os pés cascudos no barro, emporcalhavam-se os tratadores de porcos em chiqueiros, enlameavam-se reputações, chafurdava-se em charcos. É "a moral toda enterrada na lama" cantada por Clara Nunes.

Pode parecer que, definitivamente suja, a lama tem o mesmo conjunto de sentidos em qualquer cultura, mas não é assim. No repertório de diversos povos da antiguidade, a principal força simbólica da pasta de terra e água é positiva à beça: liga-se à criação da vida.

Na mitologia de gregos, sumérios, egípcios, chineses, hindus, iorubás e, claro, no próprio "Gênese", a humanidade foi moldada por mãos divinas tendo por matéria-prima algum tipo de argila. O que pode estar mais perto da verdade do que se imagina.

O oceano goza de boa reputação científica como provável criadouro da vida na Terra, mas nunca abafou por completo a teoria do "laguinho morno" —cheio de lama, óbvio— que Charles Darwin propôs.

Com Mariana, em versão incomparavelmente mais letal e absurda, Brumadinho, a velha lama brasileira, agora acrescida de toneladas de metais venenosos e desprezo, não se limita a romper as barragens do sentido figurado: soterra qualquer ligação com a vida que pudesse estar enterrada no barro.

Atraso, sujeira física e moral, tudo isso já parece pouco. Nossa lama simboliza a morte, ponto. Estamos enlameados até a alma. O vizinho de coluna Vinicius Torres Freire tem razão: o Brasil está apodrecendo fisicamente.

A disciplina é necessária

A violência generalizada que desfaz a estrutura familiar, provocando desemprego e pobreza, também conduz à violência do tráfico, do assalto, das balas perdidas. Penetra na escola, e o professor vira vítima da violência sobre a escola. Mas há outra violência que é da própria escola contra os alunos, pela precariedade de instalações e equipamentos, que incentiva a reação violenta dos jovens.

A desadaptabilidade da escola aos tempos atuais faz com que o aluno não veja o professor como o condutor para uma vida melhor. A consciência dos alunos de que a escola não está sendo um instrumento de sua promoção social faz com que o professor não seja visto como construtor do seu futuro.


No Brasil, o profissional está diretamente ligado ao seu prestígio material identificado com o salário. Com baixa remuneração, o professor se diminui no imaginário da população e dos alunos; desprestigiado, sofre bullying e é candidato a vítima de violência moral e física.

A desconexão geracional é um fenômeno de quase todo profissional nos tempos de hoje, mas a situação é mais grave na escola porque o professor lida com crianças e adolescentes que estão mais sintonizados com os novos tempos e instrumentos do que os clientes já adultos de outros profissionais. Essa desconexão geral com estranhamento pode se transformar em violência.

A principal causa da violência é o mundo político que despreza a educação e o professor. Quando, às vezes, despertam para o problema da violência contra o professor, os dirigentes políticos decidem tratar o assunto como caso de polícia, de repressão.

Todas essas causas têm a ver com características da “mente brasileira”, que jamais colocou a educação como um valor central da sociedade, como o indicador maior de riqueza e de progresso, desprezando o elemento-chave da geração de saber: o professor.

A retomada da disciplina é um ponto de partida, embora não suficiente, para quebrar o círculo vicioso da violência. E no atual quadro de indisciplina, dificilmente os professores são capazes de romper com isso. É preciso assessoria técnica para entender as medidas necessárias, sem deixar de ser escola.

O uso de uniformes, a pontualidade do aluno e do professor, o respeito coletivo aos símbolos nacionais, a exigência do bom comportamento, com penalidade aos que desrespeitam o funcionamento escolar, são medidas disciplinadoras que certamente ajudarão a coibir a violência.

No entanto, transformar as escolas civis em escolas militares – tal como ocorre no Distrito Federal – não é o caminho. Manter diálogo com assessores do meio militar, subordinados aos professores, psicólogos e psicopedagogos, pode trazer vantagens.

Para isso, é preciso que os professores entendam que eles serão os grandes beneficiados imediatos com o novo clima de respeito que será criado. E que compreendam também que a indisciplina, além de violência, é um gesto antidemocrático, porque desrespeita as instituições e as pessoas.