Já é hora de pensar nos fatores e nas causas de termos estacionado no estágio histórico da raiva e do ressentimento e não termos conseguido chegar ao estágio civilizado da indignação para demarcar nossa postura política.
Grupos proto-políticos, em décadas recentes, têm cultivado o ressentimento contra a história e o nosso passado, como se viu nas celebrações do quinto centenário da descoberta do Brasil. Reivindicam uma história sem contradições, antidialética. Não sabem que a pátria é sempre muito mais do que o tão somente.
Não são diferentes os grupos que acabam de chegar ao poder, ainda dispersos em orientações ideológicas e excludentes, que satanizam o outro para elaborar suas equívocas certezas. Especialmente os oportunistas que se penduraram na campanha do candidato vencedor. São prisioneiros da extinta Guerra Fria.
Dois acontecimentos destes dias nos dão a medida do purgatório a que essas polarizações nos condenam. Um, a renúncia, antes da posse, do deputado federal reeleito pelo Rio de Janeiro, Jean Wyllys, porque ameaçado de morte já muito próxima de sua pessoa.
O general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, reconheceu que o fato grave fere a democracia. Portanto, nos fere a todos em nossos direitos como cidadãos. A renúncia de Jean Wyllys mostra que a ameaça de morte que lhe é dirigida faz o Brasil bem menor do que temos o direito de querer. Nos bastidores há uma máquina de delinquência política que ameaça a todos, não só alguns. É o mar de lama que degrada a República.
O outro acontecimento é o da tragédia de Brumadinho, em Minas Gerais, a lama dos rejeitos de uma das minas da Vale cobrindo extensa área, matas, plantações, águas. Sobretudo seres humanos, o melhor patrimônio da nação. Em resumidas contas, porque neste país, diferente de outros países autenticamente capitalistas, o lucro está acima de qualquer suspeita, é irresponsável e inimputável a priori.
Nessa perspectiva deplorável, a pátria é o resto, o descartável. A lama do lucro sem compromisso com o destino de todos se sobrepõe à vida e aos valores que nos definem. Talvez devêssemos reler "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", de Max Weber, para rever ali as condições éticas e históricas que viabilizaram o nascimento do capitalismo.
É descabido que o governo, recém-inaugurado, se defenda alegando que não é responsável pela tragédia. Ninguém disse que o é. Mas ninguém disse que não o é. Quando um partido assume o governo, mesmo em nome de antagonismos ideológicos, assume as funções do Estado e herda todas as responsabilidades históricas que fazem parte do legado do Estado.
Não pode omitir-se em relação à violação de princípios, de valores e obrigações pressupostos na Constituição e nas leis. Se não é cúmplice dos responsáveis pela tragédia, é responsável pelas medidas duras que no caso cabem para sobrepor as razões de Estado ao senso comum de seus motivos partidários. Essa lama confronta a campanha eleitoral. Já é o real e o depois.
Não se pode nem se deve negar a prontidão desse governo no reconhecimento da tragédia e nas providências muito rápidas para salvar os que podem ser salvos e aliviar o sofrimento da extensa lista das vítimas colaterais de mortos e desaparecidos.
A campanha eleitoral vencedora foi de satanização de algumas das mais significativas conquistas do povo brasileiro no que se refere aos direitos sociais, aos direitos humanos, à defesa do patrimônio ambiental, ao reconhecimento da humanidade das populações indígenas, ao direito à diferença entre as pessoas e à pluralidade das ideias. Vai o governo, agora, descobrindo suas limitações ideológicas no dia a dia do poder.
Nosso grande patrimônio humano, moral e histórico, é o que nos faz plurais em todos os sentidos, mas também o que nos diferencia como povo de singularidades: modos de ver, de viver, de pensar e de reagir defensivamente na crítica aos abusos, ao desrespeito que nos minimiza e subjuga. Mas onde está nossa indignação construtiva?
O Estado cúmplice dos poderios mesquinhos dos que mandam mais do que tem o direito de mandar e cúmplice do lucro acima da moral, dos bons costumes e da própria vida é o Estado que padecerá de permanente déficit de legitimidade, sempre dominado pela instabilidade que decorre inevitavelmente desse carecimento.
Um fato positivo das adversidades de quem governa é que, nesse governo, vão elas descontruindo as limitações de um senso comum impróprio ao exercício do poder. O general Augusto Heleno, em face da lama, corrigiu a interpretação de que o governo pretenderia flexibilizar as leis ambientais. Ao contrário, pretende racionalizar sua aplicação e torná-las mais rígidas, explicou.José de Souza Martins
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