domingo, 8 de setembro de 2019

Francesas vão dar o troco

Qual é o problema deles no governo brasileiro? Depois de Jair Bolsonaro, o ministro da Economia? Bando de mercenários grotescos! Quando eles insultam Brigitte Macron, são todas as mulheres francesas que se sentem insultadas
Valérie Pécresse, ex-ministra francesa que governa a Île-de-France, região onde se situa Paris

Independência ou submissão?

Um presidente casmurro para em frente ao Palácio da Alvorada para sua já tradicional prosa diária. Ele pensa se tratar de uma entrevista, um favor que presta a jornalistas que se amontoam no calor seco de Brasília à espera de palavras para guiar suas reportagens. Trata-se, isso sim, da tentativa cotidiana de Jair Bolsonaro de impor sua visão de mundo não só à imprensa, mas ao público.

Conta, na intermediação, com os acólitos que filmam e transmitem ao vivo nas redes sociais, e com a claque disposta a apoiar com gargalhadas e apupos encorajadores o que quer que ele diga. O presidente dita a pauta e o que pode, ou não ser perguntado. Se estiver de ovo virado, dá as costas e vai embora sem responder.

Na última semana, uma nova arma de “comunicação” foi introduzida no ritual: o mimimi choroso. Visivelmente assustado com a reação furiosa de seus apoiadores das redes sociais à indicação de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, Bolsonaro se pôs a filosofar sobre política. Se as pessoas não apoiarem suas decisões, como a indicação de Aras, ele vai “cair” e o PT, uma espécie de bicho-papão que brande perante um eleitor infantilizado como a vovó diante da criança malcriada, vai voltar.

Isso no dia do aniversário de um ano de seu “renascimento”, outra mistificação perigosa que Bolsonaro faz de um incidente grave, hediondo, o do atentado a faca de que foi vítima em Juiz de Fora, que de fato quase o vitimou, pelo qual sofre consequências físicas até hoje – como a cirurgia a que será submetido neste domingo – e que certamente influenciou o resultado das eleições.

E na véspera de outro evento simbólico, o Sete de Setembro, no qual o presidente se cercou da família e de políticos, mas não só: estavam lá, em posição de destaque, dois dos principais homens de mídia do Brasil, Silvio Santos e Edir Macedo, concorrentes irmanados em sorrisos em jantares e palanques. Uma semana antes, Bolsonaro se ajoelhou aos pés do primeiro e foi visitar o segundo.


O que se quer com essa parceria amplamente fotografada não tem sutileza nem se tenta esconder: Bolsonaro deseja fomentar uma mídia favorável ao governo, para se contrapor ao inimigo-mor, a Globo, e aos demais veículos que enxerga como adversários. Não é sequer novo o expediente: foi usado fartamente por Lula, sem nem variação dos personagens.

No fundo, o que Bolsonaro espera da imprensa, do público que trata como criança e das instituições como o Ministério Público, cujo chefe acaba de designar, é a mesma coisa: submissão.

Não passava pela cabeça do capitão que seus seguidores sempre tão inflamados, dispostos a postar emojis de bandeirinhas do Brasil e arminhas, trocar suas fotos por cafonas avatares vaporwave e aceitar qualquer narrativa fake fossem ficar enfurecidos com a escolha de Aras.

A fragilidade no olhar e a hesitação na fala de Bolsonaro na live de quinta-feira, quando inacreditavelmente instruiu as pessoas a apagarem comentários contra ele, e no dia seguinte, ao contar a história da carochinha da volta do PT-papão, são provas disso: ele foi convencido pelos acólitos de que aquele terreno era impermeável a críticas.

Nem a internet é controlável, presidente. Que dizer de instituições republicanas, como a imprensa e o Ministério Público? O senhor pode até encontrar puxa-sacos influentes para tirar fotos risonhas para acalmar as redes revoltas, mas a sociedade brasileira evoluiu, se institucionalizou e não se submeterá.

“Independência ou morte!”, teria proclamado Dom Pedro I às margens do Ipiranga, segundo a história. Que o mote anime jornalistas, eleitores, procuradores e o resto da sociedade a não se deixarem intimidar com muxoxos, ameaças e acenos à adesão condescendente.

Diplomacia em falta

Faltam poucas semanas para o primeiro turno da eleição presidencial na Argentina, e no horizonte do candidato conservador à reeleição, Mauricio Macri, os obstáculos se empilham. A última coisa de que ele necessita nesta reta final seria uma ejaculação verbal ideológica a seu favor por parte de Jair Bolsonaro. A recente apologia a ditaduras passadas e elogios à barbárie da era Pinochet no Chile, feitas pelo chefe do governo brasileiro, receberam execração mundial. Melhor não mexer com isso na Argentina. A ideia de que o ministro da Fazenda brasileiro, Paulo Guedes, também possa ter uma recidiva, desta vez em relação a Cristina Kirchner, companheira de chapa do candidato esquerdista Alberto Fernández, seria outro pesadelo para Macri. Guedes, que esta semana achou espirituoso emitir vulgaridades sobre a primeira-dama da França, Brigitte Macron, faria melhor atendo-se à sua função oficial. Cristina, como se sabe, é a principal locomotiva do que resta do peronismo/kirchnerismo no país, e grosserias gratuitas contra ela em nada alavancariam a popularidade do argentino.

É pouco provável que o chanceler Ernesto Araújo considere necessário atualizar Bolsonaro sobre a “diplomacia de desclassificação” existente entre Estados Unidos e Argentina. Pena, pois desconhecê-la é atalho certo para mais erros do Brasil no futuro.


A audaciosa iniciativa diplomática fora anunciada em 2016 por Barack Obama durante sua visita oficial à Argentina de Cristina Kirchner, que à época ocupava a Casa Rosada. A pedido de Buenos Aires, os Estados Unidos se comprometiam a liberar a montanha de documentos oficiais secretos das relações bilaterais do período 1976-83. Um total de 47 mil páginas guardadas pelo FBI, CIA, Pentágono, Conselho de Segurança Nacional e Departamento de Estado.

O último lote de 7.500 documentos foi entregue cinco meses atrás, em cerimônia histórica, pois representou a maior quebra de sigilo de documentos sigilosos dos EUA para um governo estrangeiro. O evento fora deliberadamente agendado para coincidir com o 43º aniversário do golpe argentino. E quem recebeu em mãos a caixa selada contendo os últimos seis discos rígidos de luz crua sobre essa história foi o ministro da Justiça e dos Direitos Humanos da Argentina, Germán Garavano.

Garavano era um meninote de 6 anos quando a ditadura esquartejou seu país. Só nos 36 primeiros meses do regime de exceção, havia perto de 22 mil mortos e desaparecidos políticos na Argentina. E foi na presença de algumas vítimas daquela ditadura que Garavano, no papel de representante oficial de Mauricio Macri à cerimônia, fez questão de agradecer ao governo Donald Trump por ter dado continuidade à “diplomacia de desclassificação”. De fato, é um espanto, considerando-se a distância ideológica entre Obama e Trump. Algo como 400 funcionários de 16 órgãos públicos e agências federais das duas administrações americanas trabalharam na empreitada.

“Acredito que temos a responsabilidade de confrontar o passado com honestidade e transparência”, dissera Obama ao dar o pontapé inicial ao projeto, numa alusão ao envolvimento dos Estados Unidos na tragédia. Trump preferiu terceirizar responsabilidades. “Em nome do presidente dos EUA, entrego-lhe estes arquivos com a esperança de que ajudem a sanar o seu pais”, escreveu ao presidente argentino. A resposta de Macri deveria servir de alerta a Bolsonaro caso ele pense em discorrer sobre as virtudes da ditadura no país vizinho para ajudar o aliado em apuros. “Estes documentos terão papel fundamental para ajudar a Justiça nos episódios ainda inconclusos desse passado que constitui um dos períodos mais sombrios da história da Argentina”, escreveu Macri.

Na papelada liberada com apenas 3% de trechos embargados, o que é pouquíssimo para documentação tão cabeluda, há de tudo — nomes de perpetradores, dimensão da participação americana, detalhes das atrocidades, atuação dos serviços de inteligência europeus, escopo da Operação Condor, a parceria clandestina entre as ditaduras da época no Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Brasil. Aprende-se, por exemplo, que agentes em missões de assassinato no exterior recebiam US$ 3.500 para dez dias de trabalho, e que a “seleção final”das vítimas a serem eliminadas era feita “através de voto por maioria simples” do grupo. Ou vê-se o documento oficial no qual o agente do FBI em Buenos Aires, Robert Scherrer, informa sobre o sequestro e assassinato de dois funcionários diplomáticos cubanos , cujos corpos foram cimentados em tambores industriais de armazenamento.

É a Argentina — e os Estados Unidos — se confrontando com a sua história. Para o escritor, dramaturgo e professor chileno Ariel Dorfman, o Brasil continua de costas para o seu passado. Em entrevista ao repórter André Duchiade, ele dá a sua visão do futuro: “A impunidade das Forças Armadas brasileiras é o que abriu o caminho para Bolsonaro ser presidente e dizer as barbáries que pronuncia diariamente”.
Dorrit Harazim

Pensamento do Dia


Ministério da Educação tentou censurar a Wikipedia

No ar desde 2001, a versão em português da Wikipédia já acumula mais de 1 milhão de verbetes. Assim como no restante do mundo, a enciclopédia online é colaborativa, escrita e editada por voluntários, a partir de regras criadas pela própria comunidade.

De vez em quando, há incompreensão sobre o funcionamento do sistema. A questão acaba sobrando para um dos administradores, como são chamados os usuários mais experientes e com mais status dentro da organização da plataforma – no Brasil, são 78.

A mais recente polêmica da Wikipédia no Brasil envolve o verbete de um representante do alto escalão do governo Jair Bolsonaro: o ministro da Educação, Abraham Weintraub.

O verbete sobre Weintraub foi criado em 8 de abril deste ano, logo que sua nomeação para o cargo de ministro da Educação foi anunciada. Aos poucos, como costuma ocorrer, o conteúdo foi sendo editado conforme notícias a seu respeito eram divulgadas pela mídia.

Segundo as regras da Wikipédia, todas as informações ali escritas precisam conter referências a fontes externas, como reportagens publicadas por veículos reconhecidos e artigos acadêmicos.

"Não existe informação nova publicada na Wikipédia. Tudo o que está ali vem de outra fonte", afirma um dos administradores brasileiros, o gerente de projetos da Wikipédia Lusófona Rodrigo Padula. "Também exigimos que o conteúdo seja regido pela imparcialidade, pela pluralidade de fontes, principalmente se há divergência na imprensa ou na academia sobre alguma questão, assunto ou conteúdo."


Aos poucos, episódios polêmicos da biografia de Weintraub foram sendo incluídos no perfil, como o fato de que ele e o irmão abriram um processo judicial, em 2011, para tentar interditar o pai, ou o anúncio dos cortes em 30% de verbas para a educação – ou contingenciamento, na versão oficial do governo.

Por um lado, isso despertou o que a comunidade da Wikipédia chama de "vandalismos": usuários que interferem no conteúdo, de modo ofensivo, mentiroso ou satírico. Por outro, assessores do próprio ministério tentaram editar o verbete. A solução encontrada pelos administradores foi corrigir e bloquear o conteúdo.

O Ministério da Educação (MEC) solicitou a retirada do verbete e ameaçou tomar medidas judiciais. Nesta última quarta-feira, o caso chegou à Câmara dos Deputados. O deputado federal Marcelo Freixo (PSOL) protocolou uma solicitação formal para que o ministro preste esclarecimentos.

Confira abaixo trechos da entrevista de Padula à DW Brasil, em que o administrador da Wikipédia classifica o caso como "tentativa de censura". Procurado pela reportagem, o MEC não se posicionou até a publicação desta entrevista.

Como está a situação hoje, neste caso com o MEC?

Respondi aos e-mails do ministério [o primeiro foi enviado em 27 de junho; o último, em 13 de agosto], oferecendo auxílio, capacitação e orientações sobre as dinâmicas da Wikipédia, mas eles nunca nos responderam. A equipe de comunicação do MEC solicitou que excluíssemos o verbete porque eles não estava conseguindo editar e, segundo eles, não estavam tendo "direito ao contraditório". Fato é que o conteúdo foi bloqueado para proteger as informações. Todas as tentativas de edições mal feitas a um artigo são tratadas como vandalismo, independentemente do interesse – até aquele momento, nem sabíamos que havia gente do próprio ministério tentando editar o verbete. Entendemos que temos o direito de publicar informações biográficas corretas de uma pessoa pública. E se o MEC não está de acordo com tal entendimento, vemos isso como tentativa de censura.

Houve ameaça judicial?

Em 13 de agosto, mesmo sem responder a meus e-mails, eles enviaram nova mensagem dizendo que se não agíssemos conforme eles queriam em cinco dias, tomariam medidas judiciais. Nossa estranheza é pelo fato de que se tratava de uma questão puramente pessoal: a biografia do ministro. E ele estava usando o poder do Estado e funcionários públicos para tentar pressionar os editores da Wikipédia. Senti-me coagido. Foi tentativa do Ministério da Educação de censurar a Wikipédia. Se a moda pega, o projeto corre risco.

Como funciona a Wikipédia?

A Wikipédia não é uma instituição. É um site mantido por uma instituição, a Wikimedia Foundation, com sede em São Francisco, nos Estados Unidos. A versão em português não é institucionalizada, não tem um CNPJ. Somos um coletivo de pessoas que trabalham, de forma voluntária, criando e editando conteúdo. Ações como esta, portanto, coíbem pessoas de editarem conteúdo. As pessoas precisam compreender as dinâmicas da Wikipédia.

E quais são essas dinâmicas?

A tendência é que toda informação, para entrar na Wikipédia, venha de fontes fiáveis. Todo o conteúdo é produzido e publicado seguindo regras da comunidade. O site é uma enciclopédia online colaborativa. Qualquer um pode publicar e editar, mas isso não pode ser feito de qualquer jeito. Cabe aos administradores, como eu, o papel de prezar pelo cumprimento das regras, protegendo conteúdo, combatendo vandalismo e bloqueando contas que fazem trabalho negativo dentro da plataforma.

Em casos de interferência de órgãos externos, qual é a conduta padrão?

Quando algum órgão externo tenta interferir, verificamos o conteúdo. Observamos se o conteúdo está de acordo com as regras, se há alguma tentativa de calúnia e difamação, etc. Se necessário, fazemos as devidas correções no verbete e protegemos ou desprotegemos a página segundo a necessidade real.

Há casos semelhantes em outros países? A comunidade internacional da Wikipédia está acompanhando a questão brasileira?

Sempre quando ocorre um problema desse tipo nós comunicamos a comunidade internacional. Mas cada editor responde por suas ações dentro da plataforma, então não tenho como responder por outros países. A Wikimedia Foundation foi comunicada por nós, mas não cobramos nenhum tipo de posicionamento oficial nesse sentido. Basicamente, estamos tentando fazer com o que o Ministério da Educação e o próprio ministro compreendam o funcionamento e a dinâmica da Wikipédia, sem levar essa questão para a esfera judicial. É um trabalho de conscientização.

Qual o status atual do verbete dele na plataforma?

O artigo foi protegido para edição por usuários anônimos e novatos por um período, depois esse período acabou expandido. Após o e-mail do MEC, eu removi a proteção, permitindo que qualquer pessoa editasse, inclusive a equipe do ministro, desde que respeitasse as regras da Wikipédia. Houve muito vandalismo, principalmente contra a posição do ministro de censurar a Wikipédia. Corrigimos o verbete e novamente o protegemos, sempre agindo com boa-fé. Esse bloqueio protege o próprio ministro, já que a maior parte das edições, dos vandalismos, era contra ele.

A luta dele contra a Wikipédia foi incluída em seu verbete, sempre com base em referências, ou seja, informações fiáveis de terceiros. Na Wikipédia não trabalhamos nem para um viés ideológico, nem para outro – o conteúdo deve se reger pela imparcialidade, pela pluralidade de fontes, pelas referências. E, como o caso envolve o Ministério da Educação, é importante dizer que a plataforma é importante para a Educação por promover o conhecimento aberto. Conhecimento aberto não é de direita nem de esquerda.
Deutsche Welle

Voltam as trevas

Sob o signo do retrocesso – cuja inspiração resulta das trevas que dominam o poder do Estado –, um novo e sombrio tempo se anuncia: o da intolerância, da repressão ao pensamento, da interdição ostensiva ao pluralismo de ideias e do repúdio ao princípio democrático
Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal, hostilizado nas redes sociais depois de votar pela criminalização da homofobia

'Governos usam símbolos nacionais para reescrever a história conforme seus interesses'

O Brasil é um país que dá importância demais aos seus símbolos, e de menos à sua gente. A definição é do escritor Laurentino Gomes, autor de uma trilogia premiada sobre a história do Brasil- os livros 1808, 1822 e 1889- e que acaba de lançar o primeiro livro de uma nova série, desta vez sobre a escravidão no país.

Segundo Laurentino Gomes, datas como a do feriado da Independência, e símbolos nacionais, como a bandeira do Brasil, têm sido utilizados há anos por governos para reescrever a história conforme seus interesses.

Segundo ele, no governo Jair Bolsonaro, patriotismo e datas históricas são usados para negar o legado da escravidão e para manter sistemas de privilégios. Mas o renomado historiador ressalta que a estratégia de utilizar símbolos patrióticos para vender ideologia e políticas públicas não é de hoje.

"Como a história é ferramenta de construção da identidade (...) é natural que a história, e também os seus símbolos, sejam manipulados pelas autoridades, pelos partidos políticos, pelos diferentes grupos ideológicos", afirma.

Em entrevista à BBC News Brasil, ele exemplifica como a estratégia foi usada nos primeiros anos da República, no Regime Militar, no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e por Bolsonaro.
A escravidão não é só um comércio de gente. Ela é uma estruturação da sociedade, de poder, distribuição de recursos, de terras, riquezas, de benefícios e de privilégios. Um grupo tem acesso a riqueza, a privilégios, a confortos, à repartição dos recursos públicos, e outro não
"Se você observar, a frase preferida do presidente Lula, no governo do PT, era 'nunca antes na história deste país'. É uma maneira de reescrever o passado para justificar conquistas e desafios do presente", diz.

"E o governo atual faz a mesma coisa, tenta reescrever a história. Inclusive com essa história da escravidão, de que os brancos não têm nada a ver com a escravidão, Existe um projeto político muito bem-definido, cujo objetivo é, ou combater as políticas públicas em vigor, ou impedir que novas políticas públicas destinadas a enfrentar o legado da escravidão sejam discutidas e implantadas."

Na entrevista, Laurentino Gomes também explicou os elos entre datas e símbolos que um país escolhe exaltar - como é o caso do feriado de 7 de Setembro -, e os eventos do passado que tentamos esconder.

"Preferimos valorizar imagens enganosas com as quais aprendemos a nos identificar, como o gigante adormecido em berço esplêndido, a bandeira, o hino, e deixamos de lado momentos incômodos do passado. A violência, a corrupção, os milhões de africanos que foram escravizados no Brasil", disse o escritor.

Gomes destaca, sobretudo, o que chama de "negligência histórica" ao legado de escravidão.

"Nossa alma africana nunca foi observada, estudada, valorizada como deveria", disse o escritor. "E é por descuidar dessa alma que digo que viramos, sem querer fazer um jogo rasteiro de palavras, um país desalmado. Temos uma visão mercantilista dos símbolos nacionais, valorizamos o aspecto físico dos recursos naturais, mas não é isso o que reflete e valoriza a sociedade brasileira."
O Brasil nunca teve até hoje um único grande museu nacional da escravidão, ao contrário do que há em Liverpool, na Inglaterra, em Angola, em Washington, nos Estados Unidos. É uma maneira, inclusive, de esconder uma parte da história que incomoda 
Entre as consequências que enfrenta um país ao ignorar sua alma, lembrou o escritor, está o caso do adolescente que levou chibatadas dentro de um supermercado na periferia de São Paulo, conforme noticiado esta semana.

"Aquilo foi muito forte, porque jogou um holofote sobre um legado da escravidão que a gente julgava que estava apenas em bibliotecas, em livros de história do Brasil. É uma prática muito comum no regime escravista, um século e meio atrás, que aparece em 2019 na periferia da cidade mais rica do país."

Bolsonaro fez do desfile seu parque de diversões

Com a popularidade em declínio e sob ataque dos próprios aliados nas redes sociais, Jair Bolsonaro foi ao desfile de 7 de Setembro como quem vai a um parque de diversões. Os guarda-costas tiveram de molhar o paletó. Com a felicidade a pino, o capitão deu de ombros para as normas de segurança. Queria ver e, sobretudo, ser visto.

No ápice da ostentação, Bolsonaro se autoconverteu na atração principal da parada militar. Deslizou do palanque de autoridades para o asfalto. Interrompeu a evolução de tanques e soldados para desfilar sua alegria. Faixa presidencial no peito, saboreou algo como dois minutos de arquibancadas. Filtrada pelos órgãos de segurança, a plateia gritou "mito".

Alguns ministros acompanharam Bolsonaro no ataque ao asfalto. Entre eles Sergio Moro, cujo prestígio, segundo o Datafolha, é 25 pontos maior do que o do chefe. Súbito, o público gritou "Moro, Moro". E as cotoveladas que o ex-juiz da Lava Jato recebe do capitão nos bastidores foram substituídas por abraços. As mãos de Bolsonaro atraíram Moro rapidamente para o seu lado.

Foi como se Bolsonaro quisesse enviar um pedido de perdão à tropa das redes sociais, em guerra contra a indicação de Augusto Aras para o posto de procurador-geral da República. Escolhido à revelia de Moro, Aras é visto pela força-tarefa de Curitiba como adversário. O nome foi mal recebido na bolha bolsonarista da internet. O capitão passou a ser chamado de "traidor" no seu habitat natural.



Outras três cenas marcaram o desfile. Na chegada em carro aberto, acompanhado por Carlos Bolsonaro, seu filho 02, o presidente mandou parar o Rolls-Royce presidencial para chamar uma criança. Dividiu os instantes inaugurais de sua manhã no parque com Ivo César Gonzalez, de nove anos.

No palanque, Bolsonaro expôs uma segunda imagem em alto relevo. Exibiu-se ao lado do apresentador Silvio Santos e do autoproclamado bispo Edir Macedo, donos do SBT e da TV Record. Enquanto esteve em cena, a dupla ganhou mais destaque do que o vice-presidente Hamilton Mourão. Até a primeira-dama Michelle e a caçula Laura Bolsonaro, 8, foram enviadas para a retaguarda.

Nem o SBT nem a Record transmitiram o desfile em seus canais abertos. Apenas a TV estatal transmitiu ao vivo. Suprema ironia: entre as emissoras privadas, ironicamente, só a TV Globo, considerada por Bolsonaro como "inimiga", injetou flashes do divertimento do presidente em sua programação matinal.

Terminado o desfile, Bolsonaro não cabia em si. Tampouco cabia dentro do automóvel fechado que o cerimonial estacionou defronte do palanque para conduzi-lo de volta ao Alvorada. Para desespero dos seguranças, o capitão dependurou-se do lado de fora do carro, com a porta aberta.

Produziu-se, então, a derradeira cena marcante. Com uma mão, Bolsonaro agarrava-se ao automóvel. Com a outra, acenava para a plateia. Foi com o se o presidente desejasse esticar a atmosfera de parque de diversões. Degustou cada segundo. Até o último centímetro de arquibancada.