domingo, 8 de setembro de 2019

'Governos usam símbolos nacionais para reescrever a história conforme seus interesses'

O Brasil é um país que dá importância demais aos seus símbolos, e de menos à sua gente. A definição é do escritor Laurentino Gomes, autor de uma trilogia premiada sobre a história do Brasil- os livros 1808, 1822 e 1889- e que acaba de lançar o primeiro livro de uma nova série, desta vez sobre a escravidão no país.

Segundo Laurentino Gomes, datas como a do feriado da Independência, e símbolos nacionais, como a bandeira do Brasil, têm sido utilizados há anos por governos para reescrever a história conforme seus interesses.

Segundo ele, no governo Jair Bolsonaro, patriotismo e datas históricas são usados para negar o legado da escravidão e para manter sistemas de privilégios. Mas o renomado historiador ressalta que a estratégia de utilizar símbolos patrióticos para vender ideologia e políticas públicas não é de hoje.

"Como a história é ferramenta de construção da identidade (...) é natural que a história, e também os seus símbolos, sejam manipulados pelas autoridades, pelos partidos políticos, pelos diferentes grupos ideológicos", afirma.

Em entrevista à BBC News Brasil, ele exemplifica como a estratégia foi usada nos primeiros anos da República, no Regime Militar, no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e por Bolsonaro.
A escravidão não é só um comércio de gente. Ela é uma estruturação da sociedade, de poder, distribuição de recursos, de terras, riquezas, de benefícios e de privilégios. Um grupo tem acesso a riqueza, a privilégios, a confortos, à repartição dos recursos públicos, e outro não
"Se você observar, a frase preferida do presidente Lula, no governo do PT, era 'nunca antes na história deste país'. É uma maneira de reescrever o passado para justificar conquistas e desafios do presente", diz.

"E o governo atual faz a mesma coisa, tenta reescrever a história. Inclusive com essa história da escravidão, de que os brancos não têm nada a ver com a escravidão, Existe um projeto político muito bem-definido, cujo objetivo é, ou combater as políticas públicas em vigor, ou impedir que novas políticas públicas destinadas a enfrentar o legado da escravidão sejam discutidas e implantadas."

Na entrevista, Laurentino Gomes também explicou os elos entre datas e símbolos que um país escolhe exaltar - como é o caso do feriado de 7 de Setembro -, e os eventos do passado que tentamos esconder.

"Preferimos valorizar imagens enganosas com as quais aprendemos a nos identificar, como o gigante adormecido em berço esplêndido, a bandeira, o hino, e deixamos de lado momentos incômodos do passado. A violência, a corrupção, os milhões de africanos que foram escravizados no Brasil", disse o escritor.

Gomes destaca, sobretudo, o que chama de "negligência histórica" ao legado de escravidão.

"Nossa alma africana nunca foi observada, estudada, valorizada como deveria", disse o escritor. "E é por descuidar dessa alma que digo que viramos, sem querer fazer um jogo rasteiro de palavras, um país desalmado. Temos uma visão mercantilista dos símbolos nacionais, valorizamos o aspecto físico dos recursos naturais, mas não é isso o que reflete e valoriza a sociedade brasileira."
O Brasil nunca teve até hoje um único grande museu nacional da escravidão, ao contrário do que há em Liverpool, na Inglaterra, em Angola, em Washington, nos Estados Unidos. É uma maneira, inclusive, de esconder uma parte da história que incomoda 
Entre as consequências que enfrenta um país ao ignorar sua alma, lembrou o escritor, está o caso do adolescente que levou chibatadas dentro de um supermercado na periferia de São Paulo, conforme noticiado esta semana.

"Aquilo foi muito forte, porque jogou um holofote sobre um legado da escravidão que a gente julgava que estava apenas em bibliotecas, em livros de história do Brasil. É uma prática muito comum no regime escravista, um século e meio atrás, que aparece em 2019 na periferia da cidade mais rica do país."

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