domingo, 24 de maio de 2020

Pensamento do Dia


Ou os Bolsonaro passarão ou o Brasil faz, sim, por merecê-los

Logo após assistir aos principais trechos do vídeo sobre a reunião ministerial de 22 de abril último, a irmã de um amigo meu escreveu nas redes sociais: “Se antes era 100% bolsonarista, agora passei a ser 200%”. E daí? Bolsonarista de raiz era Bolsonaro e continuará sendo. Jogo jogado. Jamais se imaginou o contrário.

O que se discute: se bolsonarista de ocasião, depois do vídeo, poderá deixar de ser. E se bolsonarista há muito chocado com as atitudes do presidente que elegeu, abandonará Bolsonaro depois do que viu. Em síntese: é improvável que o vídeo tenha fortalecido Bolsonaro como alguns se apressaram a dizer. O contrário é o mais provável.

Em 2022 não haverá Lula candidato. Dificilmente haverá Lula preso para que seja outra vez martirizado por seus devotos. Com toda certeza, o candidato da oposição será mais de um. O do PT, se não for Fernando Haddad, o boneco de ventríloquo de Lula em 2018, será Haddad de cara limpa e com maior independência.

Até lá, o barco em que navega o atual desgoverno já terá batido no iceberg gigantesco que Bolsonaro admitiu no vídeo estar à vista de todos, inclusive na dele: uma recessão econômica sem paralelo na História do mundo e, aqui, à sombra dos efeitos para ele deletérios das milhares de pessoas mortas pelo Covid-19.

Quem, além dos seus de carteirinha, desejará se perfilar a um candidato tão comprovadamente tóxico? Que no seu primeiro mandato governou à base do venha a mim e à minha família o vosso reino, e que seja feita a nossa vontade, amém? Incapaz de lutar contra a morte e, sequer, de recolher os corpos dos mortos na batalha?



O governo ou desgoverno de Bolsonaro teve suas vísceras expostas como nunca aconteceu na vida de outros governos, nem daqui e nem de parte alguma. Vale a pena ver o vídeo de novo. Pois uma coisa é ler a respeito, outra é assistir. E o que se viu será outras milhares de vezes visto até 2022 e explorado ao longo da campanha. Um case.

O Brasil não está refém de Bolsonaro e dos seus filhos como parece há muitos. Quando a hora chegar, se quiser, se livrará deles. Mas Bolsonaro e seus filhos estão reféns das porcarias que fizeram antes de assaltarem o poder e depois de nele se instalarem. Em comparação com o que fizeram, ainda sabemos pouco, mas se saberá um dia.

Onde está Fabrício Queiroz que pouca satisfação deu ao Ministério Público do Rio de Janeiro? Não há passarinho que não cante. Onde estão os servidores da família que, funcionários fantasmas ou de verdade, foram obrigados a devolver aos empregadores parte dos seus salários pagos com dinheiro público? O que têm a dizer?

Onde está o celular do ex-ministro Gustavo Bebbiano, demitido da Secretaria do Governo por Bolsonaro sob a pressão do seu filho Carlos, que guarda segredos capazes de fazer corar a alma dos mais sensíveis ou ferrenhos conservadores e patriotas, sem esquecer a alma das ditas criaturas limpinhas e recatadas do lar?

A vigilância redobrada que doravante será exercida sobre uma Polícia Federal posta sob suspeita dará margem a que ela atue como um braço auxiliar dos Bolsonaro? As investigações sobre os negócios da família simplesmente serão esquecidas de uma hora para a outra ou irão adiante de forma mais acelerada?

Das Forças Armadas não se espere nada. Elas foram escorraçadas do poder depois do fracasso de uma ditadura construída sobre os falsos pilares do enfrentamento à corrupção, ao comunismo e à desordem econômica. Ao poder voltaram pegando carona na candidatura do ex- capitão. Irão com ele até o fim para a gloria ou a desgraça.

Se a empecilhos presentes e futuros sobreviverem os Bolsonaro e a sua turma devassa, é porque de fato foram mais fortes. Ou então é porque a maioria dos brasileiros fez por merecê-los. Simples e triste assim. A democracia tem dessas coisas. Ela não caminha em linha reta nem aponta sempre para o alto.

Com milico, agora vai...



Vai botar mais militares, sim, com civis não deu certo
Jair Bolsonaro 

Difícil compreender

Confesso não conseguir compreender o motivo, ou os motivos, que levaram os militares a jogar fora o respeito que conquistaram do país ao longo dos anos que se sucederam à ditadura de 64. Trabalharam muito por isso e foram vitoriosos. Da triste imagem que deixaram dos vinte anos que dominaram o Brasil, os fardados passaram a ter o respeito e a admiração da sociedade, pelo modo como se portaram até 2018.

Dali em diante, tudo desandou na área das três Armas.

Não sei qual foi a mágica empregada pelo ex-militar Jair Messias Bolsonaro, que saiu do Exército expulso como tenente levando consigo a patente de capitão, como era praxe naqueles tempos. Julgado pelo ex-presidente General Ernesto Geisel como um mau militar, o neo capitão conseguiu, após 20 e tantos anos como deputado obscuro que foi, o apoio e os votos dos militares que o levaram para o Palácio do Planalto.

O fato é que sem tanques ou tiros, os milicos voltaram a comandar o Brasil. Hoje ocupam não sei quantos cargos na administração federal. Passaram a comandar, prestem bem atenção, o Ministério da Saúde, sem passar nem meio dia numa faculdade de medicina. E mais, editam protocolos sobre o uso de uma droga recusada pelo resto do mundo como inútil para o Covid-19 e muito perigosa para a saúde de seus usuários. Até o inacreditável Donald Trump, que sem ninguém lhe perguntar foi logo avisando que tomava cloroquina diariamente, já voltou atrás e declarou que parou de tomar essa droga ao constatar seus terríveis e danosos efeitos colaterais.

Dizem, não sei se as más ou boas línguas, que os milicos se animaram com o fato de um ex-fardado ascender ao posto máximo da Nação, o que poderia levá-los a postos de comando que lhes daria um bom salário para complementar o soldo minguado que estavam recebendo nos últimos anos. Não quero acreditar nisso, mas como dizem na Itália, se non é vero, è bene trovato.
Quero crer que a maioria dos militares esteja arrependida. Não posso acreditar que não os incomode esse Bolsonaro a espalhar pelo Brasil que tem as Forças Armadas a seu lado. Quem acredita nisso? Além dos três zeros que compõem a infame Bolsonaro & Filhos, creio que muito pouca gente. De qualquer modo, logo saberemos: vêm aí as eleições e se o coronavírus deixar, estaremos aqui para votar e então saberemos.

Alea jacta est.
Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa

Talkey

A linguagem do decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, em nada se assemelha ao idioma criado por Jair Bolsonaro para pregar a seus devotos. A sintaxe, o léxico, o conteúdo falam a dois Brasis cada vez mais estrangeiros. Na sexta-feira passada, porém, Celso de Mello se fez entender por todos ao lembrar que cabe ao Estado mandar apurar delitos apontados por “qualquer pessoa do povo”, mesmo que se trate de “alguém investido de autoridade na hierarquia da República”. Em outras palavras: nem o "Mito" está acima da lei, talkey? O causídico assinou dois despachos — bomba com poucas horas de intervalo —, autorizou a liberação quase integral do vídeo da polêmica reunião ministerial de 22 de abril último, e encaminhou à Procuradoria-Geral da República (PGR) um pedido de apreensão do celular de Bolsonaro e de seu filho 02, o vereador bissexto Carlos. As duas decisões são desdobramentos das investigações sobre a suposta interferência do presidente na Polícia Federal, denunciada pelo ex-ministro Sergio Moro.

A partir daí, o estado democrático de direito viu-se, mais uma vez, enroscado.

Com 48 horas de intervalo, o general de reserva Augusto Heleno, ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) também emitira dois comunicados à nação. O primeiro já teve sonoridade meio esquisita, embora pretendesse soar como afago aos historicamente inquietos. “Os militares não vão dar golpe. Isso não passa na cabeça dessa nossa geração... São provocações feitas por alguns indivíduos...”, garantiu o general durante uma live com o grupo Personalidades em Foco. Heleno acrescentou que deve isso à geração de seus instrutores, “vacinados por toda aquela trajetória de militares se intrometendo de uma forma pouco aconselhável, mas muitas vezes necessária, na política”. No segundo comunicado, em papel timbrado via Twitter, indignou-se com o pedido de apreensão e encaminhamento à PGR do celular presidencial. Considerou o pedido uma afronta à autoridade máxima, e uma interferência “inadmissível” do STF na privacidade de Bolsonaro e na segurança nacional. E assim sendo, alertava “as autoridades constituídas que tal atitude... poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. 


Pronto, o “inadmissível” estava colocado na mesa. Para bolsonaristas, intolerável passa a ser o pedido de apreensão do celular do presidente; para ouvidos mais maduros, inquietante é o aceno pouco velado a uma eventual instabilidade nacional. Tudo pouco apaziguante para um país que ultrapassara a marca de 330 mil casos de Covid-19 e um séquito fúnebre de mais de 21 mil óbitos notificados. 

Foi nesse pano de fundo que os brasileiros puderam acompanhar a transmissão de largos trechos da reunião ministerial de 22 de abril, peça-chave na investigação sobre as acusações feitas pelo ex-ministro Moro ao chefe do Executivo, e cujo sigilo o ministro Celso de Mello liberara. 

O seu conteúdo será dissecado por anos a fio, por histórico, revelador, estupefaciente. Mas como esta coluna dominical está sendo enviada dois dias antes, no meio da transmissão do material libertado, cita-se aqui apenas uma rima presidencial pinçada às pressas, que não se refere às acusações de Sergio Moro mas não deixa de ser instigante. Palavras do presidente da República um tanto alterado, estilo haikai talkey:
“Os caras querem/ A nossa hemorroida!/ A nossa liberdade!/ Isso é que é a verdade”.

Também digno de nota foi a imagem na parede de um grupo de crianças lindinhas, todas branquinhas, olhando com enlevo para um cartaz do governo com os dizeres PÁTRIA AMADA, BRASIL. Servia de pano de fundo ao ministro da Educação, Abraham Weintraub, que podia ser visto e ouvido elencando seu rol de inimigos. “Odeio o termo povos indígenas” haverá de se tornar um clássico. Mandar prender todos os ministros do STF também. Não que o presidente ficasse atrás. “Estou armando o povo porque não quero a ditadura” e “Povo armado jamais será escravizado”, entoou com vigor o chefe da nação. 

Talvez seja oportuno invocar o velho Bertolt Brecht dos tempos em que ele ainda acreditava na capacidade humana de renunciar ao mal. Marxista de raiz, o dramaturgo alemão escreveu este poema antes de Hitler apresar o mundo:

“O vosso tanque, general, é um carro-forte/ Derruba uma floresta, esmaga cem homens/ Mas tem um defeito/ — Precisa de um motorista/ O vosso bombardeiro, general/ É poderoso:/ Voa mais depressa que a tempestade/ E transporta mais carga que um elefante/ Mas tem um defeito/ —Precisa de um piloto/ O homem, meu general, é muito útil:/ Sabe voar, e sabe matar/ Mas tem um defeito/ — Sabe pensar.”

Pensemos, pois. 

O Brasil de volta à Idade das Trevas

Tempos de pestes sempre trouxeram um ar lunático, com todos buscando um culpado pela praga. Na Alemanha, se reúnem atualmente em praças públicas negacionistas de todas as causas, ativistas anti-vacina, da extrema direita e extrema esquerda, e juntos se manifestam contra a conspiração viral de Bill Gates e George Soros. Ainda bem que representam uma minoria. E que a Alemanha – por enquanto – tem um governo baseado na razão e na ciência, e não em likes das redes sociais ou vídeos de youtubers.

Chama a atenção o fato de que países governados por mulheres passaram com mais facilidade pela pandemia, a ver: Alemanha, Finlândia, Noruega e Nova Zelândia. A alemã Angela Merkel é física, a finlandesa Sanna Marin formada em Administração, a norueguesa Erna Solberg é sociológica, cientista política e ainda economista, enquanto a neozelandesa Jacinda Ardern é bacharel em comunicação política.

Por outro lado, os três países com mais casos de coronavírus – Estados Unidos, Rússia e Brasil – são liderados por homens de egos tão inflados que desprezam a ciência e os conselhos das vozes da razão. Magnata, Czar e Messias: todos se achando invencíveis devido a um vírus, que causaria uma "gripezinha". E estão pagando o preço da prepotência, por terem abandonado o caminho da ciência em favor de ideias obscurantistas, que misturam superstição com uma dose de pseudo-religiosidade. Minto. São os cidadãos desses países que estão pagando o preço, em milhares de mortes.




"O vírus tá aí, vamos ter de enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, pô, não como moleque", disse o presidente do Brasil. Para isso, promoveu um dia de oração contra o vírus, medida muito superior ao isolamento social feito nos países governados por mulheres. Depois da tentativa das orações, veio o remédio milagroso, revelado pelo Messias (é óbvio que o messias deve apresentar o milagre, para justificar seu nome): a cloroquina, um medicamento sem eficácia comprovada, como o próprio presidente admite. Mas, "pior do que ser derrotado é a vergonha de não ter lutado", segundo Jair Bolsonaro. Orem e, depois, morram como heróis, bravos brasileiros!


Havia a falsa esperança (e promessa) de um governo técnico, sem ideologia. Mas na área de saúde, onde mais se precisa de liderança técnica, os ministros técnicos foram dispensados por terem feito uma gestão meramente técnica. E por não terem defendido as ideias messiânicas do presidente.

Há no mundo três líderes defendendo o uso da cloroquina:

1. O magnata Donald Trump, que, depois de aconselhar as pessoas a tomarem uma injeção de desinfetante contra o vírus, agora disse tomar cloroquina como profilaxia.

2. O maquinista de metro Nicolás Maduro, líder da Venezuela, que já disse que seu falecido tutor Hugo Chávez lhe aparece em forma de passarinho. Se tal acontecimento se realizou depois de ele ter tomado a cloroquina, não se sabe.

3. O capitão reformado Jair Messias Bolsonaro, que, como deputado, liderou o projeto para aprovar a fosfoetanolamina sintética, a chamada "pílula do câncer". O produto, ainda sem a eficácia comprovada, foi barrado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

O Ministério da Saúde está agora interinamente nas mãos de um general com vasta experiência em logística, mas sem experiência na área de saúde. Foi ele que, finalmente, seguiu o desejo do presidente de incluir a cloroquina e seu derivado hidroxicloroquina no protocolo de tratamento para pacientes com sintomas de coronavírus. Mesmo admitindo que não há comprovação da eficácia. Fica a dica do presidente: "Quem é de direita toma cloroquina, quem é esquerda, tubaína".

Seria cômico se não fosse trágico. Mas, para ser sincero, já estava claro desde o começo que não se podia esperar muita coisa desse governo, muito menos políticas sérias baseadas na ciência e na razão.

Há, no entanto, uma grande decepção com a ala militar do governo. Esperava-se dela segurar as loucuras da ala ideológica. Afinal, há uma longa tradição científica dos militares brasileiros. Houve uma época em que eles lideraram a marcha da modernidade, hasteando a bandeira do positivismo, do lema "Ordem e progresso". Defenderam a ideia de que o conhecimento científico deveria ser a base da sociedade e não as orações e remédios milagrosos. O Brasil voltou para a Idade das Trevas.