terça-feira, 31 de maio de 2022

Brasil salvador

 


¿Por qué no te callas?

A causa, talvez, seja o ano eleitoral. Mas, também, pode ser por conta do mês de maio, que está acabando. O fato é que “eles” começaram a botar as manguinhas de fora. Foi assim: o primeiro ocupou generosos espaços nas mídias sociais fazendo críticas machistas a Anitta; depois, abriu a boca para malhar as leis de incentivo à cultura. Só que o autor das críticas era, ele mesmo, um dos artistas que mais se beneficiam com essas legislações.

Sociólogos e cientistas políticos, tremei! Os cantores sertanejos agora estão opinando. Mais recentemente, um parou o show para alertar os fãs contra a ameaça do fantasma do comunismo. Sabe quando a pessoa fala sem saber o que está dizendo? Igual ao colega, também centrou fogo nas leis de incentivo. A música sertaneja hoje ocupa status de potência no Brasil, mas os seus cantores deveriam fechar a boca.


Deixo bem entendido: não estou sugerindo que eles fechem a boca e parem de cantar. Mas, de certa forma, repito o conselho que o rei João Carlos I, da Espanha, deu ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em 2007: “¿Por qué no te callas?”. Com todo respeito aos fãs dos sertanejos, esses cantores, calados, são ótimos. Bem entendido número 2: quando digo fechar a boca é em termos políticos e de elaboração de crítica social.

Maturidade é se calar quando não se tem o que dizer. No começo dessa reflexão, falei que talvez o mês de maio tenha a ver com tudo isso. Força de expressão, apenas porque este é o mês que tem, entre os seus dias, um em que se homenageia o gênero musical. Para ser mais exato, dia 3, do Sertanejo. Por causa da data, o site do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) publicou um texto em que diz que o “sertanejo urbano” é a preferência nacional. Bacana. Gosto não se discute.

Só porque é homenageado, o representante pode tudo? Não. Mas há quem ouça o que os cantores dizem? Sim. Essa estética musical já atinge todas as classes sociais deste país. O site do Ecad assegura que 48% dos brasileiros gostam da melodia; 27% gostam das letras; 47% se identificam com o ritmo sertanejo (se acham “a cara”); e 40% amam os artistas do gênero. O que os caras falam, influencia.

O texto do Ecad diz ainda que o gênero é quase unânime: “Se em 2011 o sertanejo era uma estrela em ascensão, o top 20 das músicas mais tocadas em rádios em 2020 mostra a sua consolidação”: são 14 entre as 20 mais tocadas em todo o País. Do brega ao romântico, do forró ao arrocha.

Por aí se tire a capacidade de influência dos cantores sertanejos. Na minha singela opinião, eles não vendem somente música. Com suas roupas grifadas, calças coladíssimas às pernas, passam o estereótipo do corpo perfeito e da beleza. O heterossexual, branco, viril, antenado com a moda, cheio de energia, sedutor, como padrão, é quase uma busca política.

Eles fazem a linha “sertanejos urbanos e chiquérrimos”. São personagens para o consumo artístico, como a maioria dos fãs jamais conseguirá ser. Mas, o simples fato de imitá-los já garante o sentido da estética. Eles influenciam no gosto musical, mas também repassam filosofia de vida através de um padrão de beleza e de um modelo de comportamento.

Por isso o agronegócio investe pesado e a televisão diz que agro é pop. Os “influencers musicais”, agora, avançaram o estágio. Em ano eleitoral, resolveram se expressar com palavras faladas, expondo a estética política que representam. Cá para nós, cantando, já estariam em bom tamanho.

Ociosidade criminosa

Oxalá nossos políticos, ao invés de ficar discutindo ideologia, discutam verdadeiramente o bem do nosso amado povo. Olhem para os problemas reais da vida do nosso amado povo
Dom Paulo Cezar Costa, arcebispo de Brasília, nomeado cardeal pelo Papa Francisco

A glória da bala perdida

“Quatro são feridos por bala perdida.”
Cotidiano, 7 nov. 1996

Que triste destino o meu, suspirava a Bala Perdida. E tinha razão: entre as Balas Certeiras, a sua reputação era lamentável, para dizer o mínimo. À diferença delas, a Bala Perdida não tinha rumo certo, não tinha alvo definido. Disparada a esmo, ela ia cravar-se numa parede, ou no tronco de uma árvore, ou simplesmente perdia-se. Poderia até cair na água suja de um charco qualquer, onde ficaria por muito tempo, até que misericordiosa ferrugem viesse corroer o metal de que era feita, terminando assim com o seu sofrimento.

O pior não era tanto o fracasso, que afinal é parte da existência. O pior era a inveja. As Balas Certeiras se gabavam, e com razão, do estrago que faziam. Hoje vou estourar um crânio, dizia uma, e outra acrescentava: hoje vou varar um pulmão. Havia aquelas que sonhavam em destruir múltiplos órgãos, ou atingir mais de uma pessoa de cada vez.


A Bala Perdida não podia permitir-se esses sonhos. As outras sabiam disso. Mal eram colocadas no tambor do revólver, começavam a debochar: então, o que vai ser hoje? Um muro caindo aos pedaços? A parede de um barraco imundo? A Bala Perdida nada respondia.

Aguardava somente o doloroso instante da percussão, aquele instante em que, depois da explosão, seria projetada no espaço infinito, rumo a um alvo infamante.

E de repente isso mudou.

Um dia o revólver disparou várias vezes. As Balas Certeiras partiam, alegres. Quando chegou a vez da Bala Perdida ela foi, resignada, esperando sofrer o impacto humilhante em tijolo de barro ou em madeira apodrecida. Mas não; para sua surpresa foi em carne que ela mergulhou, a carne macia da perna de um homem. Ele gritou, e seu grito foi música para a Bala Perdida. Seguiu-se uma jornada excitante: o homem foi levado para o hospital e uma operação foi necessária e o cirurgião comentou com os assistentes: Puxa vida, foi difícil extrair essa bala perdida. Mandou recolhê-la num saco plástico. E ali, examinada por muitos, a Bala Perdida viveu seu instante de glória maior. Queriam saber de seu calibre, queriam saber de onde tinha sido disparada, queriam até examiná-la sob lentes.

A hora das Balas Perdidas tinha chegado. Daí em diante elas passariam a fazer parte do noticiário, ganhando até manchetes. Havia, sim, um deus das Balas Perdidas. E ele tinha por fim manifestado a sua vontade poderosa.
Moacyr Scliar

Graciliano Ramos analisa o bolsonarismo

Em 1937, depois de passar dez meses e dez dias na prisão e quase morrer, Graciliano Ramos foi solto: "Não sinto o meu corpo". Assim começa "Em Liberdade", de Silviano Santiago, publicado pela primeira vez em 1981 e que está de volta às livrarias. Uma obra inclassificável —ficção, autobiografia, relato histórico, ensaio, pastiche—, que tem o dom (ou a desgraça) da atualidade eterna.

O Brasil que Graciliano encontrou ao deixar o presídio da Ilha Grande às vésperas da instauração do Estado Novo, o de Silviano enquanto escrevia o livro ainda no período da ditadura militar e o de agora, com Bolsonaro e seus generais conspirando para dar um golpe durante as eleições, revelam quão frágil é a nossa realidade democrática.


"Em Liberdade" é um falso diário íntimo, que cobre dois meses da nova vida fora das grades. O leitor acompanha o romancista alagoano na casa do amigo José Lins do Rego, jantando bife à milanesa no Lamas, morando numa pensão do Catete, ganhando o sustento com frilas, seguindo uma garota na praia de Botafogo e tendo de esconder a ereção.

Silviano escreve como se psicografasse, Chico Xavier recebendo Graciliano. Para conseguir o efeito mediúnico, antes de iniciar o livro tirou seis meses para imitar o estilo seco, castiço e límpido do mestre. Eis o resultado:

"Todos e cada um acreditam-se idênticos na miséria, na dor e no sofrimento, isto é: desgraçados todos, mas quem narra é sempre o mais desgraçado dos mortais. Por isso as pessoas são pouco tolerantes diante da miséria alheia. (...) Já a linguagem do prazer é original. Putaria, política e futebol –isso as pessoas escutam. Com o gozo nos olhos e nos lábios, acrescentam: é um brasileiro da gema".

Talvez o desabafo de Graciliano (ou de Gracilviano) explique por que Bolsonaro, segundo o Datafolha, tenha apenas 54% de rejeição entre os eleitores —fora o grupo de fanáticos que aprova a putaria.