sábado, 8 de junho de 2019

Empurrando o Brasil com a barriga


Em busca do método

“Apesar de isso ser loucura, há método nela”, escreveu Shakespeare. Quando se trata de Jair Bolsonaro, não temos muita dificuldade em identificar as loucuras, mas encontrar um método nelas é tarefa das mais desafiadoras.

O presidente atira para todos os lados. Ele representa a direita nacionalista, dirão alguns. Não duvido. Bolsonaro inscreveu o “Brasil acima de tudo” em seu dístico de campanha, ameaçou tirar o país de tratados internacionais, desconfia dos chineses e tem fixação pelo nióbio. Mas ele agora está falando em adotar uma moeda comum para o Mercosul, ideia das mais internacionalistas, que deveria causar arrepios em qualquer nacionalista legítimo.

Ele é um punitivista reacionário, proclamarão outros. De novo, a observação faz sentido. Bolsonaro acaba de vetar a única parte decente da nova lei sobre drogas, que permitiria a redução de até dois terços da pena para pequenos traficantes. Mas, quando tratou de trânsito, o presidente revelou-se um verdadeiro anarcolibertário, disposto a apagar qualquer traço de autoritarismo da lei.


Bolsonaro não está só. Gostamos de nos imaginar como seres coerentes que agem segundo princípios, mas não é o que se vê na prática. Até os blocos ideológicos, que deveriam guiar-se por ideias unificadoras, parecem ser incapazes de fazê-lo.

São bandeiras caras à esquerda, por exemplo, a liberação do aborto e das drogas e a condenação à pena de morte e ao porte de armas. Já a direita sustenta exatamente o contrário. Conciliar ambos os conjuntos de posições com uma narrativa linear exige ginástica mental. Se é o princípio da sacralidade da vida que prepondera, deveríamos ser contra os quatro pontos. Já a defesa intransigente da autonomia individual recomendaria a aprovação de todos.

O que torna Bolsonaro um caso único é que ele não parece obedecer nem a princípios, nem a alinhamentos históricos e nem ao oportunismo. Suas posições podem ser descritas como a resultante do caos.

Quando a natureza se revolta

Em 2005, o geógrafo e historiador Jared Diamond escreveu "Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso". Há muitos anos, tive a oportunidade de conhecê-lo em Port Moresby, capital da Papua-Nova Guiné. Na época, ele passava ao menos metade do ano no arquipélago que sempre o fascinou tanto. A obra de 2005 é um estudo sobre como as sociedades entram em colapso político e econômico, transformando-se quase repentinamente de grandes civilizações em pequenas aldeias esparsas — às vezes nem isso. Do estado americano de Montana à civilização maia, de Ruanda à China, da Austrália ao Camboja e o esplendor de Angkor, que visitei em duas ocasiões, Diamond tece enredo eloquente e avassalador sobre como o desprezo em relação à natureza pode levar à ruína. O ponto de partida é a Ilha de Páscoa, caso que o autor afirma ser “o exemplo mais claro de uma sociedade que se autodestruiu ao explorar à exaustão seus recursos naturais”. Ao contrário de outros casos estudados, não houve na Ilha de Páscoa interferência de conflitos ou mudanças climáticas repentinas que pudessem explicar o colapso. Como indagara um dos alunos de Diamond, “o que deveria estar passando pela cabeça do nativo que cortou a última árvore da ilha?”.

O autor tenta dar uma resposta a essa pergunta no fim do livro, quando levanta algumas teses. Talvez muitas civilizações tenham falhado em antever o impacto das consequências futuras de seus atos. Talvez a lentidão com que os impactos negativos se acumularam ao longo de muitos anos tenha permitido sensação de normalidade, de que, apesar de tudo, haveria adaptação política, econômica e institucional às mudanças provenientes das ações adversas sobre o meio ambiente. Talvez o poder político desproporcional daqueles que não estavam sendo diretamente afetados pelas mudanças tenha servido como respaldo para promover espécie de mau comportamento racionalmente justificado por aqueles que usavam ou tinham o poder de administrar os recursos ambientais.


Dado o avanço da pesquisa sobre mudanças climáticas e destruição ambiental hoje — ao contrário do passado de várias civilizações estudadas por Diamond —, os motivos irracionais são mais convincentes do que os potencialmente racionais.

Escrevo tudo isso para dizer algo sobre os retrocessos do governo atual. Trata-se de governo muito esquisito, mesmo sem entrar no (de)mérito de suas idiossincrasias. De um lado, tenta promover mudanças econômicas ambiciosas e urgentes, ainda que ajustes nas propostas de reformas sejam necessários. Confesso que aguento o debate sobre o que deve ser alterado na proposta de reforma da Previdência, mas já não suporto a repetição do óbvio: o Brasil tem de fazê-la de alguma forma, e, não, ela não haverá de fazer “chover investimentos” no país. O ministro da Economia está cumprindo seu papel ao tentar destilar otimismo, mas ele bem sabe que a situação está complicada e que os investidores externos têm muito com o que se preocupar no momento atual antes de pensar em deslocar recursos abundantes para o Brasil. A esquisitice do governo está em, de um lado, ter gente competente trabalhando nos temas econômicos e, de outro, ter gente absolutamente desqualificada para tratar de outros temas — educação e meio ambiente, por exemplo.

Leio que em maio deste ano o desmatamento da Amazônia alcançou o maior nível desde que o atual sistema de monitoramento foi instituído. Leio as preocupações de que o governo Bolsonaro tenha dado passe livre para que atividades ilegais levassem à perda de 739 quilômetros quadrados de floresta durante o último mês. Esse número é quase 100% maior do que o observado em maio de 2016. Durante a campanha de 2018, Bolsonaro prometera acabar com o sistema de multas ambientais do Ibama, que, dizia, atrapalhava empresários e produtores brasileiros. Em abril, Bolsonaro assinou decreto que desautoriza a atuação independente dos fiscais responsáveis pelas multas ambientais, essencialmente tornando o trabalho do Ibama irrelevante. E, é claro, há a cereja enrugada do bolo: a ação de improbidade administrativa devido à alegação de manipulação de mapas de manejo ambiental do Rio Tietê pelo atual ministro do meio ambiente quando era secretário dessa pasta no governo de São Paulo durante a gestão de Geraldo Alckmin.

A natureza haverá de se revoltar ante tamanhos maus- tratos e descaso. O que estará passando pela cabeça daquele que vier a derrubar as últimas árvores da Amazônia?

Monica de Bolle

Que tempos!

O nosso tempo é de intimidades escancaradas e de obras publicitadas
Miguel Torga

A seguir: Mais protestos

No Reino Unido, mês passado, um cidadão protestou contra a saída de seu país da União Europeia atirando um milk-shake —de banana com caramelo, apurou-se depois— em Nigel Farage, líder do partido do brexit. Outros políticos britânicos têm sido atingidos com milk-shakes, sem distinção de sabor. O resultado é sempre constrangedor —a vítima tem o paletó, a camisa e o rosto lambuzados de sorvete, leite e xarope, o que a obriga a ir lavar-se. A não ser, claro, que se lamba.

Cada um protesta como pode. Como a maioria dos políticos não se ofende ao ter a mãe xingada, os ativistas lhes atiram coisas. O francês Nicolas Sarkozy levou uma torta no rosto em 1997, na Bélgica, e ainda nem era presidente. Seu sucessor, François Hollande, em 2012, sofreu um ataque com farinha jogada por uma mulher. Em 2009, em Bagdá, o presidente americano, George Bush, foi alvejado com dois sapatos atirados por um iraquiano. E, em 2010, José Serra, candidato à Presidência pelo PSDB, no Rio, levou uma bolinha de papel na calva. Pela violência do ato, conduziram-no a um hospital.

Não se deve confundir um protesto com um atentado. O atentado é um protesto radical, principalmente quando resulta em morte, como aconteceu com os americanos Abraham Lincoln, John Kennedy e Martin Luther King. Quando falha, vira comédia, como as tentativas da CIA de matar Fidel Castro, com um charuto envenenado, uma bomba dentro da bota e uma bola de beisebol explosiva.

O presidente Bolsonaro, que já foi alvo de um atentado, gosta de protestos. Outro dia promoveu um, a seu próprio favor. Mas, como não para de chamar o país para a briga, tudo indica que atrairá cada vez mais protestos —contra ele.

No Cazaquistão, há pouco, um jovem foi preso ao protestar com um cartaz em branco. Se fizerem isto contra Bolsonaro, ninguém sentirá falta dos dizeres. Todos saberão o que o cartaz quer dizer.
Ruy Castro

Pensamento do Dia


Supremo errou feio ao liberar venda de subsidiária de estatal sem lei e licitação

Parece que o “pacto” que o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Tóffoli, sem poder e sem amparo legal, em nome do Judiciário, vai assinar com os presidentes dos dois outros poderes, ainda que impróprio e por todos censurado, parece que o “pacto” já começou a dar certo, mesmo que os termos e as regras do tal acordo ainda não tenham sido divulgadas. A constatação decorre do julgamento, pelo plenário do STF, da questão sobre a possibilidade da venda de subsidiárias de empresas públicas, de economia mista…das chamadas estatais, enfim.

Após três sessões inteiras, demoradas e cansativas, a Corte decidiu que para vender o controle acionário de subsidiárias não é preciso autorização legislativa, nem licitação, mas apenas competitividade. Basta o presidente da República querer, portanto. O STF concedeu uma espécie da outorga ao presidente da República do poder que Luis XIV dava a si próprio: “L’État C’Est Moi” (o Estado sou eu).


Para o STF, somente a venda das ações da chamada empresa-mãe é que precisa autorização legislativa e licitação. Ao final da terceira e última sessão, ocorrida nesta quinta-feira, o ministro Dias Tóffoli, que a presidiu, chegou a alinhavar como ficará a Ementa, que é o resumo do julgamento:

“A alienação do controle acionário de empresa pública e sociedade de economia mista exige autorização legislativa e licitação. A exigência de autorização legislativa, todavia, não se aplica na alienação do controle de suas subsidiárias e controladas”.

Em outras palavras, e focando no caso concreto que estava em causa: para vender a Petrobras é preciso de lei que autorize a venda. Para vender suas subsidiárias e controladas, não. Nem licitação precisa.

Mas não é isso que se aprende nos bancos das faculdades e nem o que prevalece para a Ciência do Direito, desde os seus primórdios e até os dias atuais e, quiçá, para todo e sempre.

Se é preciso lei que autorize a criação de empresa estatais e de suas subsidiárias — e assim diz a Constituição Federal —, também é preciso existir lei prévia que autorize tanto a venda da empresa quanto a de suas subsidiárias e controladas, visto que em todas elas (empresa-mãe e empresas-filhas) o controle acionário é sempre estatal e o que é estatal só ao povo pertence e só o povo pode autorizar sua venda e até mesmo sua extinção. E quem representa o povo é o Congresso Nacional.

Além disso, todos os senhores ministros, por mais eruditos e eloquentes que sejam, nenhum deles fez referência à máxima que o Direito Brasileiro herdou dos Romanos, sintetizada nesta sábia frase: “Accesio cedit principali”. Ou seja, o acessório sempre segue o destino do principal.

Ora, ora, se o principal (Petrobras) precisou de lei autorizativa para a sua criação e também precisa de lei para a sua venda ou extinção, suas subsidiárias e controladas, que lhe são acessórias, seguem o mesmo destino: também precisam de lei prévia autorizativa. Não apenas precisam de lei prévia bem como precisam, também, de licitação. Mas os ministros para evitar falar em licitação, falaram e decidiram que precisa haver “competitividade”. E competitividade não se dá por meio de licitação? Ou se dá por meio de “porrada”, para saber quem é o mais forte?

Não se pode medir “competitividade” a não ser com a abertura de um certame, no mínimo de um leilão, para saber quem paga mais. É, caríssimo colega doutor João Amaury Belem, agora entendo porque o ilustre advogado, o mais notável na defesa dos proprietários de imóveis em matéria de tributação dos IPTUs em todo o país, sempre me diz, de viva voz e por e-mail que está decepcionado com a Justiça brasileira, com a magistratura, com as decisões judiciais. Dou-lhe toda razão, doutor Belem. Eu também estou. E muito.

O Governo brasileiro e sua 'agenda da morte'

O presidente Bolsonaro, em seus seis meses de Governo, apresentou um projeto de lei quase a cada dia. A maioria deles está relacionada a leis que evocam mais a morte do que a vida e que pretende responder às promessas feitas a seus seguidores mais radicais de extrema direita durante a campanha eleitoral. O primeiro foi a possibilidade de que todos os cidadãos possam estar armados para se defenderem contra a violência que assola o país. Uma espécie de incitação a exercer a justiça por conta própria, como na antiga lei da selva. Junto a ela, uma maior liberdade à polícia para matar.

E, no entanto, no Brasil, um dos países com as maiores taxas de homicídio do mundo, das 65.602 mortes violentas em 2017, 72% foram causadas por armas de fogo. Dessas mortes, 75% foram de jovens negros. Segundo as pesquisas dos institutos internacionais especializados em violência do mundo, os países mais desarmados e com os melhores índices de educação têm o menor número de homicídios.


Aqui o Governo parece apostar, ao contrário, na panaceia de armar os cidadãos e criar na já maltratada educação, que figura entre as piores avaliadas do mundo, um clima de caça às bruxas, com perseguição a professores e incitação aos alunos a denunciá-los se tentarem falar-lhes sobre política ou sexo, enquanto reduz o orçamento da educação. O espírito de liberdade e de criatividade no ensino, que é o coração da aprendizagem que forja os jovens para a vida e forma-os como cidadãos responsáveis, deu lugar a uma cultura de castração intelectual que os empobrece e atemoriza.

Da gente comum aos intelectuais e políticos mais livres, começa a ser denunciado, no entanto, um clima de morte cultural, que está se instalando em todas as esferas da vida cidadã, enquanto a última pesquisa do IBOPE revela que 70% dos brasileiros é contra esse projeto que permite que os brasileiros se armem. Uma leitora deste jornal, Heloisa Carlogin, em um comentário à notícia segundo a qual em uma teleconferência com jornalistas brasileiros reunidos em Madri o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, uma espécie de primeiro-ministro, havia defendido que armar os cidadãos é nada menos que “um dos Direitos Humanos”, comentou: “Todas as medidas do Governo são para favorecer a morte”.

Dias atrás, Flávio Dino, governador do Maranhão, professor da Universidade Federal e ex-magistrado, tinha enunciado com maior contundência essa cultura da morte que se tenta implantar no Brasil com esta mensagem nas redes: “Basta da agenda da morte. Mais armas igual a mais mortes. Menos educação igual a mais mortes. Menos direitos para os mais pobres, mais mortes. Lei da selva no trânsito, igual a mais mortes. Essa gente não pensa em VIDAS?”.

E se o primeiro projeto do presidente foi permitir que os cidadãos tivessem até quatro armas cada um e permitir que os menores de idade frequentassem clubes de tiro para aprender a matar, o último apresentado dias atrás também está relacionado com a morte. A nova lei que pretende aprovar e que deu tanta importância a ponto de ter ido pessoalmente ao Congresso para apresentá-la, é a que, praticamente, elimina as regras que regem o trânsito dos automóveis para evitar acidentes e salvar vidas.

O novo projeto que o presidente acaba de apresentar para aprovação do Congresso pretende permitir que os motoristas se sintam livres ao volante de seus carros ou caminhões, sem medo de serem multados ou importunados nas estradas por radares de velocidade fixos ou móveis que decidiu eliminar. Quer, diz ele, pôr fim à “indústria da multa”, liberando os motoristas das responsabilidades vigentes nos países desenvolvidos para evitar acidentes. Até agora, no Brasil, com 20 pontos negativos na carteira de habilitação esta é suspensa. Bolsonaro aumenta para 40 pontos e disse que por ele deixaria em 60. Além disso, libera os motoristas profissionais, como os de caminhões e ônibus, do exame hoje obrigatório, ao renovar a habilitação, para comprovar se consumiram nos últimos meses algum tipo de droga ou substâncias estimulantes, o que produz maiores acidentes. E anuncia reduzir ao máximo as exigências para obter a carteira de habilitação.

Toda essa permissividade com os motoristas em um país que é o quarto do mundo em número de acidentes de trânsito, atrás de China, Índia e Nigéria, de acordo com o estudo Global Status Report on Road Safety, da ONU, realizado em 183 países. O aumento do número de vítimas fatais no trânsito mundial é, no entanto, inversamente proporcional aos índices de educação e desenvolvimento econômico. Entre os países com maior número de mortes no trânsito não figura, por exemplo, nenhum dos países com os maiores índices de qualidade de vida e de educação escolar, como Dinamarca, Suécia, Coreia do Sul, Japão, Singapura e Austrália.

O número anual de mortes no trânsito hoje no Brasil é de 48.349, o que equivale a 132 vítimas por dia, uma a cada dez minutos. Será que ainda parece pouco para o Governo que deseja aliviar a responsabilidade dos motoristas? E se fosse pouco, além essa liberalidade nas regras de trânsito, Bolsonaro também liberou os adultos da obrigação de pagar multa por deixar usar uma cadeirinha especial para crianças com menos de sete anos, uma regra que reduziu em 60% o número de vítimas fatais infantis. Essa decisão levou a deputada Christiane Yared, do PL, a denunciar publicamente esse projeto do Governo que levará a um aumento do número de vítimas no trânsito. Mãe de um dos jovens mortos em 2009, atropelados pelo carro do então deputado estadual Fernando Ribas Carli, que dirigia bêbado, a 170 por hora e com a habilitação vencida, a deputada ironizou com dolorido sarcasmo: “Não sei o valor de uma cadeirinha, mas sei quanto custa um caixão. Eu sei por que paguei o caixão do meu filho”.

Alérgico a qualquer proibição nas normas de trânsito, o presidente Bolsonaro transforma assim o automóvel em outra arma da qual se sente orgulhoso. Paixão pelas armas à qual pretende converter todo o país, crianças e adultos, homens e mulheres, sob a vã ilusão de fazer do Brasil um país mais seguro. Cabe perguntar, como o governador do Maranhão: “Essa gente não pensa em VIDAS?”.

Perspectivas desoladoras para o desemprego no Brasil

O economista Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV IBRE), divulgou nesta semana prognósticos desoladores: com um crescimento econômico anual projetado de menos de 2%, só em 2033 o desemprego no Brasil retrocederá novamente para abaixo dos 10%.

No momento, 12,5% da população economicamente ativa está sem trabalho, depois de um mínimo de 6,2% em 2013. Contudo, na época o governo pagou caro por esse nível de ocupação, com um déficit estatal alto – muito mais gastos do que arrecadação – e preços elevados de energia e transporte, por exemplo. A economia do país sofre até hoje as consequências dessa "política de emprego".

Hoje são 13,2 milhões de desempregados, e os números são ainda mais desoladores, se considerados também os que estão subempregados ou desistiram de procurar trabalho, com o total de afetados chegando a 28,4 milhões.

Em comparação: com 512 milhões de habitantes, ou seja, cerca de duas vezes e meia a população do Brasil, a União Europeia tem 16 milhões de desempregados, além de redes de assistência social ausentes no Brasil. E isso apesar de alguns Estados do bloco europeu também apresentarem taxa alta de desemprego.

Por mais sombrios que soem os prognósticos de Duque, é preciso notar que eles se baseiam em estimativas conjunturais otimistas. Um crescimento médio do PIB de cerca de 2% ao ano é bem superior ao que o Brasil tem apresentado historicamente. Desde 1980 o crescimento per capita tem estado bem abaixo da média da economia mundial, limitando-se a cerca de 1% ao ano.

O país ainda não tomou consciência da bomba prestes a explodir em seu mercado de trabalho. Pois o desemprego ainda deve crescer, quando, devido à digitalização da sociedade brasileira, ainda mais cidadãos perderem seus empregos. A recessão e o mercado fechado, com pouca concorrência, proporcionou às empresas nacionais uma pausa para respirar, em termos de modernização e automatização.

Há mais de duas décadas a produtividade das empresas brasileiras está estagnada. Porém os planos de abertura do mercado as forçam agora a modernizar suas unidades – do contrário, não terão chance contra os produtos importados, e muito menos poderão competir na exportação: a palavra-chave é "indústria 4.0". Nesse processo de reestruturação, os brasileiros perderão postos de trabalho em massa, acompanhando a reviravolta estrutural que se realiza em todo o mundo.

A grande diferença é que a formação profissional dos brasileiros é especialmente deficiente. Um exemplo: a firma Atento, que opera redes de call centers e telemarketing e se apresenta como maior empregadora do país, recentemente anunciou 1.200 vagas na bolsa de empregos de São Paulo. Apresentaram-se 600 interessados, e apenas sete vagas foram preenchidas. A rede de supermercados Pão de Açúcar também ofereceu 2 mil empregos: 700 pessoas pareciam ser adequadas para vagas, mas somente 32 postos foram ocupados até agora.

Segundo Ricardo Patah, presidente da União Geral do Trabalhadores (UGT), o motivo para tantas vagas abertas em meio ao alto desemprego é a falta de candidatos que dominem as operações aritméticas básicas, saibam se expressar e possuam conhecimentos mínimos de informática que lhes permitam trabalhar no caixa ou operar um PC com monitor.

O abismo entre as exigências dos empresários e a qualificação existente fica cada vez maior: dos 13,4 milhões de desempregados no primeiro trimestre de 2019, 635 mil eram considerados difíceis de colocar no mercado – mais do que o dobro do que em 2014, antes da recessão.

Fabio Bentes, economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), calcula que dentro de dez anos 1,4 milhão de brasileiros não terão qualquer chance de conseguir emprego por falta de qualificação, mesmo que o país volte a crescer economicamente. Cada vez mais universitários ou jovens com ensino médio completo assumem funções simples, de caixa ou num call center, os quais, a rigor, são empregos típicos de baixa qualificação no Brasil.

Ainda assim, há um lampejo de esperança no mercado de trabalho brasileiro: pela primeira vez em quatro anos, no primeiro semestre de 2019 aumentou o número dos empregados fixos.
Deutsche Welle

Paisagem brasileira

Casario, Pedro Nascimento

Mais da metade das crianças argentinas são pobres

Um em cada dois menores de idade na Argentina é pobre. Um em cada dez passa fome, num país que exporta alimentos para 400 milhões de pessoas. Os dados de 2018 do último relatório do Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina (UCA) são devastadores para o Governo de Mauricio Macri, que pediu para ser julgado por sua capacidade para reduzir a pobreza. Segundo esse estudo, os 51,7% de pobreza infantil registrados no ano passado — 6,1 milhões de crianças e adolescentes — representam a pior cifra da década, um aumento de quase oito pontos percentuais em apenas um ano, e quase 12 pontos a mais que o melhor resultado, em 2011. A crise econômica, e especialmente a brutal alta do preço dos alimentos — 51,2%, acima de uma inflação geral de 47,6% no ano passado — agravou a situação de muitos lares que viram sua renda diminuir ao perderem pequenos trabalhos informais, conhecidos na Argentina como changas.

Criança argentina recolhe copos no lixão
"A atual situação de crise golpeia a infância mais uma vez. O conhecimento deve ser transferido aos agentes que desenham as políticas públicas. Estas pontes são urgentes", advertiu nesta quinta-feira a pesquisadora Ianina Tuñón ao apresentar o documento intitulado Infâncias – Progressos e retrocessos em chave de desigualdade. "Neste contexto, grande parte das infâncias são as principais vítimas deste fracasso político, um fracasso que os dirigentes devem assumir", destacou o diretor do Observatório, Agustín Salvia.

O relatório aponta um aumento da insegurança alimentar nos últimos doze meses: em 2018, os lares onde vivem 29,1% dos menores na Argentina passaram a ter menos alimentos disponíveis por causa de problemas econômicos. E 13% dessas crianças e adolescentes enfrentaram insegurança alimentar severa, ou seja, passaram fome. A falta de recursos para comprar comida fez disparar a procura por refeitórios populares, inclusive entre famílias que não tinham necessitado essa ajuda na última década.

Os investigadores reconhecem o contribuição dos subsídios sociais, em especial a renda universal por filho, como um atenuante importante frente às privações mais urgentes da população vulnerável. Ainda assim, são insuficientes. Desde que o Barômetro da Dívida Social da Infância começou a ser elaborado, em 2010, a pobreza infantil nunca esteve abaixo de 40%, o que revela um grande núcleo estrutural que nenhum governo soube enfrentar.

Entre 2007 e 2015, o Observatório se transformou na fonte mais confiável de medição de pobreza devido à manipulação e eliminação dos dados oficiais pelo kirchnerismo. Macri restituiu as estatísticas, que registraram 46,5% de pobreza infantil em 2018, mas contemplam só crianças de até 14 anos, enquanto a UCA estende sua abrangência até os 17, razão pela qual não são comparáveis.

No relatório recém-apresentado, leva-se em conta também a pobreza multidimensional, refletida na privação de direitos básicos como alimentação, saúde, habitação, educação, socialização e informação. Quatro em cada 10 menores na Argentina residem em moradias com saneamento deficiente, e dois em cada dez dormem numa cama ou colchão compartilhados. Um em cada cinco não foi ao médico em 2018, e dois em cada cinco não foram ao dentista. Não há livros infanto-juvenis na casa de 41% desse universo, e 21% não têm festa de aniversário.

Outro dado preocupante é o crescimento do trabalho infantil. Entre 2017 e 2018 subiu de 12% para 15,5% o percentual de menores de 5 a 17 anos que trabalham. Segundo Tuñón, a crise alterou o padrão dos últimos anos, com um retrocesso do trabalho infantil nas classes baixas e um aumento nas médias: "Quando os adultos não têm trabalho, as crianças também não têm. Diante da falta de trabalho informal e bicos, nos setores mais pobres o trabalho infantil baixou. A classe média, por outro lado, sai a defender seus recursos com sua própria fonte, ou seja, sua família, em lugar de contratar empregados", disse a pesquisadora a jornalistas.

A continuidade da crise neste 2019 desenha um horizonte sombrio. Macri há bastante tempo substituiu a ambiciosa meta de erradicação da pobreza pela de simples redução. Mas nem isto parece ser possível.

Sempre que tiver dúvidas

Sempre que tiveres dúvidas, ou quando o teu eu te pesar em excesso, experimenta o seguinte recurso: lembra-te do rosto do homem mais pobre e mais desamparado que alguma vez tenhas visto e pergunta-te se o passo que pretendes dar lhe vai ser de alguma utilidade. Poderá ganhar alguma coisa com isso? Fará com que recupere o controle da sua vida e do seu destino? Por outras palavras, conduzirá à autonomia espiritual e física dos milhões de pessoas que morrem de fome? Verás, então, como as tuas dúvidas e o teu eu se desvanecem
Mohandas Gandhi

Um ambiente sem trânsito

O delírio é como o ar, está em todas as partes. Ou, mais exatamente, é como a água: toma a forma do recipiente e pode ter leito e rumo, como num rio, ou dispersar-se como no chuveiro. A característica do delírio é misturar a dimensão das coisas, sem distinguir o pequeno do grande e sem noção de urgência. Fantasia prioridades e, assim, engana-se a si próprio, como hoje entre nós, no Brasil.

O presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, comporta-se e atua, agora, como inspetor-geral de trânsito, e não como chefe do Poder Executivo, sobre quem pesam responsabilidades urgentes. Sua grande preocupação tem sido o tráfego. Primeiro, o das balas, que quer incrementar, levando o País a um torneio diário em que revólveres, pistolas e fuzis disputam a primazia de saber quem é mais certeiro na pontaria e mata mais. Agora, o tráfego dos automóveis, que, na vida moderna, se transformou numa espécie de poder paralelo e influi ou manda na vida em sociedade.


Era de esperar que quem recebeu votação exuberante e inegável apoio popular (e tem seguidores que lhe dão até o apelido de “mito”) tivesse um plano salvacionista que nos tirasse do impasse gerado pela politicalha. Em vez disso, o presidente da República mostra-se mais interessado em comandar miudezas. Bolsonaro veio do chamado “baixo clero” da Câmara dos Deputados, preocupado só com o insignificante, e segue dando a impressão de que só sabe da pequena política de “dar a impressão”.

No Palácio do Planalto, já ao início, rebelou-se contra o radar nas estradas, como se a alta velocidade não exigisse controles. Ou como se os acidentes de trânsito no Brasil não matassem entre 35 mil e 45 mil pessoas por ano, ao longo da última década, ferindo mais de 2 milhões.

Neste quadro, agora sugere medidas para facilitar a balbúrdia que faz do trânsito um violento exibicionismo de velocidade e bravatas. Quer facilitar as facilidades (dito assim, num pleonasmo esdrúxulo) e ser benevolente com os tais “pontos” que punem o mau motorista. E, sem qualquer sentido, quer abolir o que já é sinônimo de zelo familiar – a “cadeirinha” nos carros, que provadamente evita que as crianças tenham uma antecipada cadeira no céu...

A seguir nesta marcha, o presidente apelará ao ministro das Relações Exteriores e ao da Educação, mandando que descubram a possível ingerência malévola do marxismo cultural nos cintos de segurança dos automóveis. E, sem piedade, irá abolir essa nefasta chaga vermelha. Talvez até mande queimar os cintos existentes em imensas fogueiras, como aquelas em que os nazistas incineravam livros.

Tudo é possível quando se perde a dimensão da realidade. Todas as hipóteses passam a viáveis – até as inviáveis – quando as ideias fixas tornam-se impermeáveis e nos comandam.

Em plena semana do Dia Mundial do Meio Ambiente, a 5 de junho, o presidente desconheceu, de fato, a gravidade do momento em que vive a humanidade (não só o Brasil) em razão do aquecimento global. Dias atrás, em reunião com ministros de Economia de diferentes governos da Europa, África e América Latina, o papa Francisco alertou sobre a acelerada degradação do planeta e exigiu (sim, “exigiu”) que respeitassem, de fato, o Acordo Climático de Paris. O Brasil nem sequer se fez representar por nosso embaixador no Vaticano.

Mesmo com ternura, o papa foi incisivo: “Em nosso tempo, lucros e perdas monetárias são mais valorizados do que vidas e mortes e o patrimônio líquido das empresas tem precedência sobre o valor infinito da humanidade”, disse Francisco, frisando que o aquecimento global “leva o mundo ao desastre”. Lembrou que os investimentos em energia limpa – como vento e sol – diminuíram pelo segundo ano consecutivo no mundo, embora os cientistas alertem para os perigos dos combustíveis como carvão e petróleo: “Continuamos a percorrer estradas antigas, presos entre nossa má contabilidade e a corrupção de interesses. Seguimos a contar como lucro aquilo que ameaça nossa sobrevivência”, disse o papa.

Dias antes, em fins de maio, na reunião mundial da organização R20 sobre mudanças climáticas, o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, já advertira sobre “a destruição do planeta pelos gases de efeito estufa gerados pelo carvão e petróleo”. Os membros da R20, organizados pelo ex-governador da Califórnia Arnold Schwarzenegger, reuniram especialistas governamentais e cientistas de diferentes áreas e tomaram uma decisão drástica que resume a grande tragédia atual: rebaixaram de 30 para 12 anos o prazo máximo para substituir o carvão e o petróleo por energias limpas e, assim, salvar o planeta.

O diagnóstico gerou um alerta do secretário-geral da ONU: “Financiar a poluição é crime. É preciso terminar com os subsídios dos governos ao carvão e petróleo. É urgente deixar de financiar a destruição do mundo”, lembrou Guterres.

Entre nós, porém, o fundamental não faz eco entre os governantes e os políticos nem por eles é assimilado ou percebido. Mais grave, ainda, é constatar que este silêncio ou esta mudez passa à população e nos faz cegos diante da grande ameaça.

As miudezas (algumas até importantes, mas pequenas diante da hecatombe do planeta) continuam a ocupar nosso dia a dia. Já não observamos o essencial e, assim, o engano se transforma em elemento perturbador e vira crime. Sim, pois sem o engano o crime seria quase um jogo, como o dos gladiadores no Coliseu de Roma, na antiguidade – brutal e desigual, mas com um perdedor condenado de antemão.

Agora, nosso descaso ou displicência nos transforma de perdedores em vítimas. Mentimos a nós mesmos e – sem radar e com armas para todos – construímos um ambiente sem trânsito para o futuro.
Flávio Tavares

Meu Brasil estrangeiro

Assim que acordo, ainda na cama, leio os jornais. Começo pelo GLOBO e outros títulos da imprensa brasileira. Talvez não seja uma boa escolha, porque, quando passo para a imprensa europeia, quase todas as notícias me parecem terrivelmente enfadonhas. Faço um esforço enorme para me manter informado sobre a atualidade política portuguesa, através do diário “Público” — mas acabo sempre por adormecer de novo. É como tentar assistir a um filme de Manoel de Oliveira depois de ver Tarantino.

As notícias do Brasil trazem sempre muita ação, sangue, fúria, lágrimas, episódios cômicos, e, nos últimos meses, uma forte dose de "nonsense", no melhor estilo kafkiano, que fascina qualquer observador. É certo que, de tão intrincadas e absurdas, tais notícias exigem um alto grau de conhecimento e de atenção. A maioria dos estrangeiros não está preparada para compreender o Brasil. A maioria dos brasileiros também não.


“O mecanismo”, a série dirigida por José Padilha, agora na segunda temporada, deveria ser precedida por um curso básico sobre a História recente do Brasil. Ou talvez mesmo por um curso superior. O enredo é tão complexo que o próprio diretor não o compreendeu. Digo isto baseado nas recentes entrevistas de Padilha, falando sobre Sérgio Moro, que ele via como um herói e agora acha um vilão. Para um espectador estrangeiro é muito difícil acompanhar as voltas e reviravoltas do processo, tentando distinguir os bons dos maus. Aparentemente, são todos maus (e todos brancos também. Fica-se com a suspeita de que se tirassem os brancos do Brasil o país melhoraria muito).

A maior virtude de Bolsonaro é que, por comparação com ele, todos os grandes vilões globais parecem melhores: Donald Trump é (quase) Barack Obama, um modelo de bom senso, cultura e inteligência; Vladimir Putin soa como um democrata. Até o rude presidente filipino, Rodrigo Duterte, quando colocado ao lado de Jair, ganha certo polimento (dizem-me que fala bem a língua materna).

De novo em Lisboa, encontro brasileiros por toda a parte. Há um grupo cada vez maior de exilados, e há aqueles que gostariam de se exilar mas estão apenas de férias, tentando assimilar a vertiginosa incoerência destes dias. Há ainda os bolsonaristas. São muitos, entre os envergonhados e os assumidos. A estes últimos tiro o chapéu pela coragem. Porque é preciso enorme coragem para defender Bolsonaro num país que é um oásis de paz e prosperidade, governado por um partido socialista, com o apoio de comunistas e da esquerda alternativa, e onde a ultradireita não tem a menor relevância.

Todos estes brasileiros precisam enfrentar, a cada novo encontro, no trabalho, na rua, num jantar de amigos, a pergunta inevitável: “O que aconteceu ao Brasil?”.

É claro, ninguém tem uma resposta. Mas é mais fácil para os exilados, que podem sempre cair num choro aflito — uma maneira desesperada de assumir a perplexidade e naufragar nesse grande mistério que é o Brasil. Ou então partir para o contra-ataque, como um grande amigo, radicado em Lisboa há poucos meses, que sempre reage da mesma maneira diante da fatídica questão: “Pelo menos não morreremos de tédio!”.
Não, de tédio não.