sábado, 8 de março de 2025
'Direita criou discurso capaz de achar um culpado para tudo'
No recém-lançado livro "Desiguais e Divididos: Uma interpretação do Brasil polarizado", o sociólogo Sérgio Costa, professor da Universidade Livre de Berlim, explica as fraturas sociais do país neste século 21 a partir da compreensão do aumento da classe média — sobretudo depois dos dois primeiros mandatos presidenciais do petista Luiz Inácio Lula da Silva, de 2003 a 2010 — e da necessidade de entender esse grupo como internamente desigual.
Costa apresenta então um conceito que permeia o livro: a situação interseccional, uma perspectiva multidimensional da desigualdade social, que não classifica os cidadãos apenas pela sua classe, mas os considera no contexto de outros marcadores, como raça e gênero. "Não é possível compreender o papel da classe média hoje no Brasil se centrarmos só na análise de classe. É preciso combinar com análise de raça, de gênero, regional", diz o sociólogo, em entrevista à DW.
Para o especialista, a direita soube dominar melhor as ferramentas de comunicação contemporâneas, sobretudo as linguagens das redes sociais, para adentrar nos círculos outrora imunes aos discursos políticos, como as esferas familiares e das reuniões de condomínio. Ao mesmo tempo, a realidade tem sido habilmente interpretada por grupos de modo e atribuir uma causa única a todos os problemas.
"Os problemas de segurança, que eram e são reais, os problemas de atendimento hospitalar, a qualidade em declínio da educação, tudo isso foi atribuído a governos de esquerda. E muito efetivamente esse tipo de discurso encontrou muitos adeptos na sociedade", explica Costa.
O que é classe média, afinal?
O conceito de classe média, para a sociologia, é muito difícil de operar. A classe média pode ser a autoidentificação, uma posição na estrutura social ou simplesmente uma ideologia de progresso, a chamada classe média emergente, um fator de propulsão do consumo, do capitalismo. É um termo polissêmico, difícil de definir.
Eu diria que a classe média pode ser definida combinando essas diferentes classificações. Seguramente, uma posição na estrutura social: quem está entre os grupos intermediários de renda. Mas também com as pessoas se veem, e classe média, do ponto de vista da autoidentificação, é uma categoria muito prestigiada: com exceção dos muitos ricos e dos muitos pobres, a população em geral se autodefine como classe média. Isso torna a classe média um grupo muito heterogêneo, que pode ser tanto propulsor de mudanças democráticas como a que hoje alimenta a direita e a extrema direita em muitas partes do mundo.
Hoje classe média é algo "de direita"?
Não necessariamente um sujeito político de direita. É um sujeito político muito volátil tanto por sua heterogeneidade como por sua posição na estrutura social. Ou seja: é quem pode perder ou ganhar com mudanças econômicas e políticas muito rapidamente, portanto ela pode reagir mais à direita e mais à esquerda dependendo do rumo das transformações sofridas.
No Brasil do começo dos anos 2000, a classe média teve um papel fundamental em criar o consenso [da necessidade] de um país com menos pobreza, um pouco mais justo, que promovesse alguma forma de distribuição de renda, de combate ao racismo, de igualdade de gênero. Houve mudanças significativas na sociedade e há setores de classe média que se rebelaram contra esses progressos.
E por que houve essa rebelião?
A questão que se coloca é: esses setores se rebelaram porque são classe média ou porque são classe média branca, classe média masculina. É importante introduzir aqui a dimensão interseccional da desigualdade, algo fundamental para entender a desigualdade da classe média. Não é possível compreender o papel da classe média hoje no Brasil se centrarmos só na análise de classe. É preciso combinar com análise de raça, de gênero, regional… Só assim conseguimos explicar como setores da chamada classe média emergente efetivamente tiveram melhora de vida nos primeiros anos deste século e como, depois, essa mesma classe média se rebela contra governos que proporcionaram essa melhoria de vida.
É a classe média emergente ou são os homens brancos dessa classe média emergente, os heterossexuais dessa classe média emergente, etc. etc. etc.? Introduzir a dimensão interseccional é fundamental.
No livro você comenta que a polarização na sociedade brasileira tomou conta de festas de família e reuniões de condomínio, ambientes outrora neutros ao debate político. De onde veio essa energia? Por que ela soa mais dominada pela direita do que pela esquerda?
É uma questão intrigante: por que a direita logrou penetrar no que a gente chama de espaços comunicativos primários, as redes de família e de vizinhança, contaminando e efetivamente politizando essas esferas? Eu diria que isso não é completamente novo. Mas o que estamos vendo hoje é a direita e a extrema direita com menos esforço, dada sua enorme capilaridade e penetração nas redes virtuais, conseguindo de alguma maneira penetrar os espaços com seus conteúdos e suas interpretações do que está acontecendo.
A esquerda não tem conseguido disputar a hegemonia cultural e política nos mesmos termos, pois perdeu muito sua capacidade de comunicação com a base. Por outro lado, nesse nível de redes de vizinhança, as igrejas pentecostais e neopentecostais, não todas elas, têm papel político fundamental na medida em que esses setores não têm escrúpulos em fazer política dentro das igrejas e, portanto, conseguem um acesso muito direto à população, inclusive a que sofre com mais força, com mais violência, as angústias como carestia, segurança. É um conjunto de fatores que dá vantagens à direita e à extrema direita nessas lutas pelas mentes e corações, nessas lutas por hegemonia.
Mas, como você bem mostra no seu trabalho, essa mesma população perde direitos e benefícios com plataformas de governos de direita…
É verdade que os governos [de Michel] Temer e [de Jair] Bolsonaro penalizaram duramente parte de quem depois foi eleitor de Bolsonaro, não só em 2018 [quando ele foi eleito] como em 2022 [quando ele perdeu para o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva], ou seja, os mais pobres, a população negra, as mulheres…
Ainda assim, parte dessa população votou na direita, na extrema direita. Como explicar isso? Trata-se da formiga votando no inseticida? É uma boa imagem, mas o quadro é mais complexo. No fundo, a política não é uma ciência exata. Tanto importam as experiências concretas da vida como a maneira como essas experiências de vida são traduzidas e significadas pela população.
O que a direita e a extrema direita conseguiram produzir foi efetivamente um discurso político plástico, muito maleável, que traduziu muitas das angústias da população, atribuindo uma causa: a causa de todos os males são "os governos de esquerda, corruptos, sem moral". Portanto, os problemas de segurança, que eram e são reais, os problemas de atendimento hospitalar, a qualidade em declínio da educação, tudo isso foi atribuído a governos de esquerda. E muito efetivamente esse tipo de discurso encontrou muitos adeptos na sociedade.
A direita conseguiu produzir um discurso plástico capaz de encontrar um culpado para todas as angústias que a população estava sofrendo e isso levou à canalização de votos [em 2018] para um candidato que tinha claramente um programa de governo que ia contra os interesses de grande parte da população que votou nele. A interpretação das angústias reais teve seu poder de mobilização naquele momento, e segue tendo de alguma forma. Isso levou efetivamente a eleição de governos, inclusive deputados e senadores, que claramente tinham propostas que não correspondiam aos interesses dessa população que votou neles. A percepção, a maneira como são traduzidas as angústias são tão importantes quanto às experiências reais.
Pobres ficaram ainda mais pobres, e isto você mostra em seu livro. Bolsonaro não foi reeleito, mas as eleições de 2022 mostram um bolsonarismo ainda muito forte: Lula ganhou por margem apertada e a direita levou mais cadeiras no Senado, nos poderes legislativos e nos governos estaduais. Como explicar isso, mesmo com as consequências sofridas no bolso dos eleitores?
A política não é baseada apenas em fatores econômicos. Se tomarmos os indicadores econômicos, mesmo em termos de emprego, diríamos que o governo atual está indo bem, ainda que sua popularidade esteja muito em baixa. Portanto, há formas de interpretação da realidade que efetivamente pesam tanto quanto à própria realidade. É isso que vivemos antes da eleição de Bolsonaro. É isso que vivemos hoje.
Há repertórios de interpretação das insatisfações populares que são muito difundidos, sobretudo nas redes sociais, e muito incorporados na maneira de pensar pelo conjunto da população. Há uma espécie de descolamento da realidade propiciado pela difusão de interpretações convincentes para angústias verdadeiras. São interpretações convincentes, mas não objetivas. E a política não se faz apenas com dados objetivos. É sempre um exercício de escolhas e interpretações.
Costa apresenta então um conceito que permeia o livro: a situação interseccional, uma perspectiva multidimensional da desigualdade social, que não classifica os cidadãos apenas pela sua classe, mas os considera no contexto de outros marcadores, como raça e gênero. "Não é possível compreender o papel da classe média hoje no Brasil se centrarmos só na análise de classe. É preciso combinar com análise de raça, de gênero, regional", diz o sociólogo, em entrevista à DW.
Para o especialista, a direita soube dominar melhor as ferramentas de comunicação contemporâneas, sobretudo as linguagens das redes sociais, para adentrar nos círculos outrora imunes aos discursos políticos, como as esferas familiares e das reuniões de condomínio. Ao mesmo tempo, a realidade tem sido habilmente interpretada por grupos de modo e atribuir uma causa única a todos os problemas.
"Os problemas de segurança, que eram e são reais, os problemas de atendimento hospitalar, a qualidade em declínio da educação, tudo isso foi atribuído a governos de esquerda. E muito efetivamente esse tipo de discurso encontrou muitos adeptos na sociedade", explica Costa.
O que é classe média, afinal?
O conceito de classe média, para a sociologia, é muito difícil de operar. A classe média pode ser a autoidentificação, uma posição na estrutura social ou simplesmente uma ideologia de progresso, a chamada classe média emergente, um fator de propulsão do consumo, do capitalismo. É um termo polissêmico, difícil de definir.
Eu diria que a classe média pode ser definida combinando essas diferentes classificações. Seguramente, uma posição na estrutura social: quem está entre os grupos intermediários de renda. Mas também com as pessoas se veem, e classe média, do ponto de vista da autoidentificação, é uma categoria muito prestigiada: com exceção dos muitos ricos e dos muitos pobres, a população em geral se autodefine como classe média. Isso torna a classe média um grupo muito heterogêneo, que pode ser tanto propulsor de mudanças democráticas como a que hoje alimenta a direita e a extrema direita em muitas partes do mundo.
Hoje classe média é algo "de direita"?
Não necessariamente um sujeito político de direita. É um sujeito político muito volátil tanto por sua heterogeneidade como por sua posição na estrutura social. Ou seja: é quem pode perder ou ganhar com mudanças econômicas e políticas muito rapidamente, portanto ela pode reagir mais à direita e mais à esquerda dependendo do rumo das transformações sofridas.
No Brasil do começo dos anos 2000, a classe média teve um papel fundamental em criar o consenso [da necessidade] de um país com menos pobreza, um pouco mais justo, que promovesse alguma forma de distribuição de renda, de combate ao racismo, de igualdade de gênero. Houve mudanças significativas na sociedade e há setores de classe média que se rebelaram contra esses progressos.
E por que houve essa rebelião?
A questão que se coloca é: esses setores se rebelaram porque são classe média ou porque são classe média branca, classe média masculina. É importante introduzir aqui a dimensão interseccional da desigualdade, algo fundamental para entender a desigualdade da classe média. Não é possível compreender o papel da classe média hoje no Brasil se centrarmos só na análise de classe. É preciso combinar com análise de raça, de gênero, regional… Só assim conseguimos explicar como setores da chamada classe média emergente efetivamente tiveram melhora de vida nos primeiros anos deste século e como, depois, essa mesma classe média se rebela contra governos que proporcionaram essa melhoria de vida.
É a classe média emergente ou são os homens brancos dessa classe média emergente, os heterossexuais dessa classe média emergente, etc. etc. etc.? Introduzir a dimensão interseccional é fundamental.
No livro você comenta que a polarização na sociedade brasileira tomou conta de festas de família e reuniões de condomínio, ambientes outrora neutros ao debate político. De onde veio essa energia? Por que ela soa mais dominada pela direita do que pela esquerda?
É uma questão intrigante: por que a direita logrou penetrar no que a gente chama de espaços comunicativos primários, as redes de família e de vizinhança, contaminando e efetivamente politizando essas esferas? Eu diria que isso não é completamente novo. Mas o que estamos vendo hoje é a direita e a extrema direita com menos esforço, dada sua enorme capilaridade e penetração nas redes virtuais, conseguindo de alguma maneira penetrar os espaços com seus conteúdos e suas interpretações do que está acontecendo.
A esquerda não tem conseguido disputar a hegemonia cultural e política nos mesmos termos, pois perdeu muito sua capacidade de comunicação com a base. Por outro lado, nesse nível de redes de vizinhança, as igrejas pentecostais e neopentecostais, não todas elas, têm papel político fundamental na medida em que esses setores não têm escrúpulos em fazer política dentro das igrejas e, portanto, conseguem um acesso muito direto à população, inclusive a que sofre com mais força, com mais violência, as angústias como carestia, segurança. É um conjunto de fatores que dá vantagens à direita e à extrema direita nessas lutas pelas mentes e corações, nessas lutas por hegemonia.
Mas, como você bem mostra no seu trabalho, essa mesma população perde direitos e benefícios com plataformas de governos de direita…
É verdade que os governos [de Michel] Temer e [de Jair] Bolsonaro penalizaram duramente parte de quem depois foi eleitor de Bolsonaro, não só em 2018 [quando ele foi eleito] como em 2022 [quando ele perdeu para o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva], ou seja, os mais pobres, a população negra, as mulheres…
Ainda assim, parte dessa população votou na direita, na extrema direita. Como explicar isso? Trata-se da formiga votando no inseticida? É uma boa imagem, mas o quadro é mais complexo. No fundo, a política não é uma ciência exata. Tanto importam as experiências concretas da vida como a maneira como essas experiências de vida são traduzidas e significadas pela população.
O que a direita e a extrema direita conseguiram produzir foi efetivamente um discurso político plástico, muito maleável, que traduziu muitas das angústias da população, atribuindo uma causa: a causa de todos os males são "os governos de esquerda, corruptos, sem moral". Portanto, os problemas de segurança, que eram e são reais, os problemas de atendimento hospitalar, a qualidade em declínio da educação, tudo isso foi atribuído a governos de esquerda. E muito efetivamente esse tipo de discurso encontrou muitos adeptos na sociedade.
A direita conseguiu produzir um discurso plástico capaz de encontrar um culpado para todas as angústias que a população estava sofrendo e isso levou à canalização de votos [em 2018] para um candidato que tinha claramente um programa de governo que ia contra os interesses de grande parte da população que votou nele. A interpretação das angústias reais teve seu poder de mobilização naquele momento, e segue tendo de alguma forma. Isso levou efetivamente a eleição de governos, inclusive deputados e senadores, que claramente tinham propostas que não correspondiam aos interesses dessa população que votou neles. A percepção, a maneira como são traduzidas as angústias são tão importantes quanto às experiências reais.
Pobres ficaram ainda mais pobres, e isto você mostra em seu livro. Bolsonaro não foi reeleito, mas as eleições de 2022 mostram um bolsonarismo ainda muito forte: Lula ganhou por margem apertada e a direita levou mais cadeiras no Senado, nos poderes legislativos e nos governos estaduais. Como explicar isso, mesmo com as consequências sofridas no bolso dos eleitores?
A política não é baseada apenas em fatores econômicos. Se tomarmos os indicadores econômicos, mesmo em termos de emprego, diríamos que o governo atual está indo bem, ainda que sua popularidade esteja muito em baixa. Portanto, há formas de interpretação da realidade que efetivamente pesam tanto quanto à própria realidade. É isso que vivemos antes da eleição de Bolsonaro. É isso que vivemos hoje.
Há repertórios de interpretação das insatisfações populares que são muito difundidos, sobretudo nas redes sociais, e muito incorporados na maneira de pensar pelo conjunto da população. Há uma espécie de descolamento da realidade propiciado pela difusão de interpretações convincentes para angústias verdadeiras. São interpretações convincentes, mas não objetivas. E a política não se faz apenas com dados objetivos. É sempre um exercício de escolhas e interpretações.
Terror 'invisível'
Os governos ocidentais reservam a classificação de terrorista para os atos de violência indiscriminada realizados por ativistas que não agem enquadrados por uma organização estatal e se negam a reconhecer a existência do terrorismo de Estado. Aproveitam-se do fato de que o terrorismo puro não pretende se esconder – ao contrário, se esforça ao máximo para que a sociedade saiba de sua existência –, enquanto o terrorismo de Estado faz todo o possível para se tornar “invisível”, porque é tanto mais eficaz quanto mais despercebido passa.
José Saramago
O valor do lugar
Esquecemo-nos do lugar onde nascemos ou vivemos, deixámos de pensar, porque tudo nos chega a casa com facilidade e, supostamente, a baixíssimo custo, que é o maior problema. Damos como adquirido e certo que há a fruta que hoje nos apetece, a um preço insignificante, num supermercado sempre próximo, saboreamos uvas durante todo o ano.
Deixámos de ter respostas, porque não nos questionamos, aceitamos que pensem e decidam por nós. O clique fácil, acessível, intuitivo, como que a fazer parte do nosso corpo, anestesiou-nos e adormeceu-nos. Parece um enorme paradoxo, mas deixámos de ser livres. À partida, está tudo decidido.
Alguns, poucos, temos acesso a tudo aquilo de que necessitamos à distância de uma tecla e nada nos importa quanto custou, quem regou e colheu aquelas maçãs ou fez os sapatos, muito menos onde. Tudo é acessível e fácil, barato, quase gratuito, entra-nos pela casa. E o maior paradoxo é estarmos mais longe do essencial, na verdade, mais longe de nós próprios, da nossa família e dos nossos amigos, do lugar onde vivemos.
O lugar onde vivemos deixou de ter importância, a sua alma e a sua identidade há muito que se foram e nem damos por isso, e quando esbarramos nalguma fotografia ou história fóssil, isso já não nos toca e pouco nos diz. Aceitamos tranquilamente porque está tudo pensado para uma vida confortável, sem carências nem perguntas, para os que nascemos nesta geografia, uma enorme minoria na Terra. Se está calor, ligamos o ar condicionado, se faz frio, tocamos num botão que faz uma chama parecida com a do madeiro de outrora. Acreditamos que é possível, e aceitável, voar de Lisboa para Londres por 30 euros. Desde há umas décadas que assim tem sido, a “milagrosa solução” está na mão do clique. O resto, a tecnologia, aparentemente, resolve.
Crescer. Crescem a oferta, a procura e tudo à volta; como se pode crescer sempre? E, então, para onde vamos, onde nos leva o incontornável crescimento a que estamos obrigados? Enquanto tivermos limões, mesmo que seja da África do Sul e não do Algarve, isso não nos importa? Assistimos ou decidimos? Será que podemos assistir passivamente? Será que a Terra nos deixa assistir como se nada tivéssemos a ver com o tema?
A proposta aponta para um lugar, para um sítio onde é possível ter outro modo de vida. Outro modo de vida totalmente diferente, sobretudo verdadeiro, quando comparado com o mundo do clique, do low cost, sem rosto e muito menos alma. Um modo de vida onde os pilares essenciais a uma existência digna e feliz são possíveis. Um lugar com o qual nos identificamos totalmente, que sentimos fazer parte de nós, a nossa terra, que sentimos, respiramos, tocamos e cheiramos. Se for o “nosso lugar”, a terra onde nascemos e crescemos, tanto melhor. O solo, a água e a paisagem onde nascemos. O terroir do nosso corpo, da nossa alma, onde podemos ser mais felizes porque é aqui, na terra que nos sentiu nascer, que melhor nos sentimos. Aqui, neste lugar, há alimento, abrigo e segurança, os três pilares essenciais para o viver feliz. Aqui temos nome e os outros, os vizinhos, conhecem-nos. Não necessitamos de password, integramos esta realidade, esta verdade e é aqui onde melhor podemos estar.
Por muita desmaterialização, sempre ilusória, que nos apregoem, os recursos essenciais – solo, água e ar – continuam a ser locais. Só vivendo o local podemos saber os seus limites, os seus recursos, o seu clima, os seus patrimónios. E só com estes, com todos os seus patrimónios, poderemos aspirar a um modo de vida possível e feliz onde todos caibam e possam dispor dos recursos necessários a uma vida feliz e digna, onde vamos recordar muita coisa essencial que parecemos ter esquecido; as estações do ano sintetizam quase tudo o que é essencial para a vida e a sustentabilidade local. Lugar, aquele território onde a alma suspira de alegria e os olhos riem.
Deixámos de ter respostas, porque não nos questionamos, aceitamos que pensem e decidam por nós. O clique fácil, acessível, intuitivo, como que a fazer parte do nosso corpo, anestesiou-nos e adormeceu-nos. Parece um enorme paradoxo, mas deixámos de ser livres. À partida, está tudo decidido.
Alguns, poucos, temos acesso a tudo aquilo de que necessitamos à distância de uma tecla e nada nos importa quanto custou, quem regou e colheu aquelas maçãs ou fez os sapatos, muito menos onde. Tudo é acessível e fácil, barato, quase gratuito, entra-nos pela casa. E o maior paradoxo é estarmos mais longe do essencial, na verdade, mais longe de nós próprios, da nossa família e dos nossos amigos, do lugar onde vivemos.
O lugar onde vivemos deixou de ter importância, a sua alma e a sua identidade há muito que se foram e nem damos por isso, e quando esbarramos nalguma fotografia ou história fóssil, isso já não nos toca e pouco nos diz. Aceitamos tranquilamente porque está tudo pensado para uma vida confortável, sem carências nem perguntas, para os que nascemos nesta geografia, uma enorme minoria na Terra. Se está calor, ligamos o ar condicionado, se faz frio, tocamos num botão que faz uma chama parecida com a do madeiro de outrora. Acreditamos que é possível, e aceitável, voar de Lisboa para Londres por 30 euros. Desde há umas décadas que assim tem sido, a “milagrosa solução” está na mão do clique. O resto, a tecnologia, aparentemente, resolve.
Crescer. Crescem a oferta, a procura e tudo à volta; como se pode crescer sempre? E, então, para onde vamos, onde nos leva o incontornável crescimento a que estamos obrigados? Enquanto tivermos limões, mesmo que seja da África do Sul e não do Algarve, isso não nos importa? Assistimos ou decidimos? Será que podemos assistir passivamente? Será que a Terra nos deixa assistir como se nada tivéssemos a ver com o tema?
A proposta aponta para um lugar, para um sítio onde é possível ter outro modo de vida. Outro modo de vida totalmente diferente, sobretudo verdadeiro, quando comparado com o mundo do clique, do low cost, sem rosto e muito menos alma. Um modo de vida onde os pilares essenciais a uma existência digna e feliz são possíveis. Um lugar com o qual nos identificamos totalmente, que sentimos fazer parte de nós, a nossa terra, que sentimos, respiramos, tocamos e cheiramos. Se for o “nosso lugar”, a terra onde nascemos e crescemos, tanto melhor. O solo, a água e a paisagem onde nascemos. O terroir do nosso corpo, da nossa alma, onde podemos ser mais felizes porque é aqui, na terra que nos sentiu nascer, que melhor nos sentimos. Aqui, neste lugar, há alimento, abrigo e segurança, os três pilares essenciais para o viver feliz. Aqui temos nome e os outros, os vizinhos, conhecem-nos. Não necessitamos de password, integramos esta realidade, esta verdade e é aqui onde melhor podemos estar.
Por muita desmaterialização, sempre ilusória, que nos apregoem, os recursos essenciais – solo, água e ar – continuam a ser locais. Só vivendo o local podemos saber os seus limites, os seus recursos, o seu clima, os seus patrimónios. E só com estes, com todos os seus patrimónios, poderemos aspirar a um modo de vida possível e feliz onde todos caibam e possam dispor dos recursos necessários a uma vida feliz e digna, onde vamos recordar muita coisa essencial que parecemos ter esquecido; as estações do ano sintetizam quase tudo o que é essencial para a vida e a sustentabilidade local. Lugar, aquele território onde a alma suspira de alegria e os olhos riem.
A importância de ainda estar aqui
O Oscar de melhor filme internacional para “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, não é apenas o reconhecimento do excepcional talento e da competência do diretor e dos atores do filme e de todos que a ele, em diferentes campos, se dedicaram. A premiação se situa num conjunto de reconhecimentos pela concessão de vários outros prêmios de cinema, que ressaltam a enorme relevância da obra e o excepcional talento de Fernanda Torres no papel principal.
“Ainda Estou Aqui” tem dimensões ocultas que tocam em outras cordas da sensibilidade cultural das populações esclarecidas no mundo. A reação altamente positiva ao filme tem outras motivações além do apreço pela obra-prima da cinematografia brasileira. Inspirado num livro biográfico do filho da heroína do filme, Eunice Paiva, é desdobramento de uma narrativa testemunhal que pedia o complemento de uma modalidade de expressão que alargasse o alcance do texto original. São obras de criatividades diferentes que se completam, o livro de Marcelo Rubens Paiva e o filme de Walter Salles.
O filme chega não apenas aos olhos dos espectadores, mas chega também à alma das multidões que no mundo inteiro estão sendo questionadas no seu direito a uma consciência verdadeira da situação politicamente anômala em que a sociedade contemporânea vem se perdendo.
Durante entrevista a um portal de direita, Bolsonaro criticou o filme. Criticou Rubens Paiva, preso pela ditadura, torturado e morto, o corpo sumido, obra de criminoso covarde que se oculta no cadáver de sua vítima, mesmo que sejam funcionários do Estado. Alude a Lamarca para justificar o crime contra Paiva. Mente.
Bolsonaro fabula, coloca num mundo imaginário todos os que são, por ele e sua ignorância política, vitimados e estigmatizados. Seu saber tosco é constituído de preconceitos contra os diferentes que perfilham valores democráticos. E confessa: “Eu não tenho tempo de ver filme, até ler livro é quase impossível pra mim”.
Sobre a disputa pelo Oscar, subestimou o filme: “O brasileiro ganha em qualquer lugar”. Ou seja, tem tanto mérito como qualquer um.
Esta edição do Oscar se situa num momento de reações crescentes contra a cultura e a erudição que vêm de um mundo que está ficando burro com a ascensão política, direitista e autoritária, na Itália, na Alemanha, nos EUA e na conspiração golpista no Brasil.
Nas premiações houve a valorização do filme independente e, consequentemente, da ampla liberdade de criação. “No Other Land”, documentário palestino-israelense, foi premiado e o discurso dos diretores muito aplaudido pelo público. Uma fala direta à mediocridade de Trump e de Netanyahu, a propósito da questão de Gaza.
Adrien Brody ganhou o prêmio de melhor ator em “O Brutalista”. Ele também ressaltou a importância do cinema independente. Zoe Saldaña, de descendência dominicana, foi dura ao mencionar sua origem em crítica a Trump e sua política de hostilidade aos imigrantes e latinos.
É nessa perspectiva que o filme brasileiro tem um redimensionamento situacional e político, que repercute como explícita crítica à situação no Brasil. Enquanto um dos Bolsonaros bajula Trump e conspira contra o Brasil, ao tratar o presidente americano como juiz da situação brasileira e do mundo e cúmplice da conspiração bolsonarista, o que Trump não nega.
Enquanto isso, o filme brasileiro de alta qualidade cinematográfica, baseado em fatos reais, relativos à ditadura a que Bolsonaro serviu, personifica e espera restaurar, é aplaudido em vários países do mundo pela qualidade fílmica, literária e histórica. Se o beija-pé dos Bolsonaros em Trump indica uma conspiração contra a pátria, o acolhimento internacional de “Ainda Estou Aqui”, por parte de gente culta, indica uma ação de difusão de consciência crítica contra a consciência bufa e a governação rastaquera.
Como se viu no Carnaval, o Brasil dividido pelo bolsonarismo e pelas ideias reacionárias do astrólogo Olavo de Carvalho, de repente, encontrou um motivo racional para o reencontro contra as fake news e contra a manipulação mentirosa da consciência social.
“Ainda Estou Aqui” ilumina a escuridão ideológica em que foi mergulhado o brasileiro alienado pelo direitismo antipatriótico. O filme é a mediação que expõe as irracionalidades da manipulação e o enlouquecimento de multidões, como na intentona de 8 de janeiro de 2023, nas ações terroristas inspiradas por Bolsonaro e seus seguidores: a do caminhão-bomba preparado para explodir no aeroporto, a do homem bomba que se explodiu no pátio de acesso ao STF, e a do homem que, nos últimos dias, tentou ingressar no STF para um atentado. Sem contar a agressão a Marcelo Rubens Paiva num desfile carnavalesco em São Paulo.
“Ainda Estou Aqui” tem dimensões ocultas que tocam em outras cordas da sensibilidade cultural das populações esclarecidas no mundo. A reação altamente positiva ao filme tem outras motivações além do apreço pela obra-prima da cinematografia brasileira. Inspirado num livro biográfico do filho da heroína do filme, Eunice Paiva, é desdobramento de uma narrativa testemunhal que pedia o complemento de uma modalidade de expressão que alargasse o alcance do texto original. São obras de criatividades diferentes que se completam, o livro de Marcelo Rubens Paiva e o filme de Walter Salles.
O filme chega não apenas aos olhos dos espectadores, mas chega também à alma das multidões que no mundo inteiro estão sendo questionadas no seu direito a uma consciência verdadeira da situação politicamente anômala em que a sociedade contemporânea vem se perdendo.
Durante entrevista a um portal de direita, Bolsonaro criticou o filme. Criticou Rubens Paiva, preso pela ditadura, torturado e morto, o corpo sumido, obra de criminoso covarde que se oculta no cadáver de sua vítima, mesmo que sejam funcionários do Estado. Alude a Lamarca para justificar o crime contra Paiva. Mente.
Bolsonaro fabula, coloca num mundo imaginário todos os que são, por ele e sua ignorância política, vitimados e estigmatizados. Seu saber tosco é constituído de preconceitos contra os diferentes que perfilham valores democráticos. E confessa: “Eu não tenho tempo de ver filme, até ler livro é quase impossível pra mim”.
Sobre a disputa pelo Oscar, subestimou o filme: “O brasileiro ganha em qualquer lugar”. Ou seja, tem tanto mérito como qualquer um.
Esta edição do Oscar se situa num momento de reações crescentes contra a cultura e a erudição que vêm de um mundo que está ficando burro com a ascensão política, direitista e autoritária, na Itália, na Alemanha, nos EUA e na conspiração golpista no Brasil.
Nas premiações houve a valorização do filme independente e, consequentemente, da ampla liberdade de criação. “No Other Land”, documentário palestino-israelense, foi premiado e o discurso dos diretores muito aplaudido pelo público. Uma fala direta à mediocridade de Trump e de Netanyahu, a propósito da questão de Gaza.
Adrien Brody ganhou o prêmio de melhor ator em “O Brutalista”. Ele também ressaltou a importância do cinema independente. Zoe Saldaña, de descendência dominicana, foi dura ao mencionar sua origem em crítica a Trump e sua política de hostilidade aos imigrantes e latinos.
É nessa perspectiva que o filme brasileiro tem um redimensionamento situacional e político, que repercute como explícita crítica à situação no Brasil. Enquanto um dos Bolsonaros bajula Trump e conspira contra o Brasil, ao tratar o presidente americano como juiz da situação brasileira e do mundo e cúmplice da conspiração bolsonarista, o que Trump não nega.
Enquanto isso, o filme brasileiro de alta qualidade cinematográfica, baseado em fatos reais, relativos à ditadura a que Bolsonaro serviu, personifica e espera restaurar, é aplaudido em vários países do mundo pela qualidade fílmica, literária e histórica. Se o beija-pé dos Bolsonaros em Trump indica uma conspiração contra a pátria, o acolhimento internacional de “Ainda Estou Aqui”, por parte de gente culta, indica uma ação de difusão de consciência crítica contra a consciência bufa e a governação rastaquera.
Como se viu no Carnaval, o Brasil dividido pelo bolsonarismo e pelas ideias reacionárias do astrólogo Olavo de Carvalho, de repente, encontrou um motivo racional para o reencontro contra as fake news e contra a manipulação mentirosa da consciência social.
“Ainda Estou Aqui” ilumina a escuridão ideológica em que foi mergulhado o brasileiro alienado pelo direitismo antipatriótico. O filme é a mediação que expõe as irracionalidades da manipulação e o enlouquecimento de multidões, como na intentona de 8 de janeiro de 2023, nas ações terroristas inspiradas por Bolsonaro e seus seguidores: a do caminhão-bomba preparado para explodir no aeroporto, a do homem bomba que se explodiu no pátio de acesso ao STF, e a do homem que, nos últimos dias, tentou ingressar no STF para um atentado. Sem contar a agressão a Marcelo Rubens Paiva num desfile carnavalesco em São Paulo.
Trump, Gaza e a política do espetáculo
Max Weber, em sua teoria sobre os tipos de dominação, descreveu a autoridade carismática como aquela sustentada na devoção quase religiosa a um líder. Essa forma de poder se fortalece em tempos de crise, quando um político se apresenta como um Messias, a única figura capaz de restaurar a ordem e guiar seu povo rumo à redenção. Donald Trump encarna esse modelo com perfeição: ele não se vende como um político tradicional, e sim como um salvador, alguém que os Estados Unidos — e, agora, o mundo — não podem dispensar.
Como qualquer líder carismático que se alimenta do caos, Trump prospera na tragédia. A guerra no Oriente Médio, com suas cenas de horror e destruição, tornou-se para ele mais do que um tema geopolítico; virou um trampolim para reafirmar sua imagem. Seu papel na pressão para que o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu aceitasse um acordo de cessar-fogo em troca de reféns foi relevante. Mas seu verdadeiro objetivo não é a paz — é a autopromoção, como fez ao expulsar recentemente o presidente da Ucrânia, Volodimyr Zelensky, da Casa Branca.
Enquanto o mundo ainda sente o impacto brutal dos ataques de 7 de outubro e das atrocidades cometidas pelo Hamas, incluindo o assassinato da família Bibas, celebrado por terroristas, Trump não está interessado em justiça, reparação ou soluções reais. Da mesma forma, ignora deliberadamente as violações de direitos humanos cometidas pelo governo de Netanyahu.
Desde o início da ofensiva israelense, Gaza se tornou um campo de morte. Com bombardeios sistemáticos a áreas civis, ataques a hospitais e bloqueio do fornecimento de água, eletricidade e ajuda humanitária, Israel tem sido amplamente acusado de crimes de guerra. A destruição da infraestrutura essencial não visa apenas o Hamas — ela empurra milhões de palestinos para uma crise humanitária sem precedentes. Mesmo diante de ordens da Corte Internacional de Justiça para permitir ajuda à população civil, o governo israelense segue sua campanha, resultando em mais de 46 mil mortos, segundo autoridades locais, incluindo milhares de crianças.
Mas Trump não condena esses abusos — ele os instrumentaliza. O sofrimento real de palestinos e israelenses não importa para ele. O que importa são os slogans e como a tragédia pode ser convertida em capital político.
Foi assim que surgiu seu vídeo altamente produzido por Inteligência Artificial generativa, publicado na Truth Social, promovendo uma visão fantasiosa: uma “Riviera em Gaza”. A cena é quase surreal. Uma trilha sonora épica embala imagens de praias paradisíacas, enquanto um coro canta “Trump vai te libertar”. No centro da encenação, o bilionário Elon Musk distribui notas de dólares, como um magnata benevolente, pronto para erguer um paraíso capitalista sobre os escombros da guerra.
Mas por trás do espetáculo midiático, há algo muito mais sombrio. Trump sugeriu abertamente que os palestinos deveriam deixar Gaza, uma posição que, segundo o Artigo 2 da Convenção sobre Genocídio de 1948, configura limpeza étnica. Expulsar mais de dois milhões de pessoas de suas casas não apenas viola o direito internacional, mas cria um desastre humanitário de proporções catastróficas. Para onde iriam esses refugiados? Quais seriam as implicações políticas e econômicas para os países vizinhos, já sobrecarregados com décadas de deslocamento forçado? Essas questões não interessam a Trump. Seu discurso não trata de reconstrução nem de paz — trata de marketing político.
A guerra já deixou um saldo devastador. Em Gaza, 1,8 milhão de pessoas passam fome e quase toda a população foi deslocada. Enquanto isso, 250 reféns israelenses foram sequestrados pelo Hamas, muitos submetidos à tortura — por vezes televisionada e celebrada. Enquanto Netanyahu avança com sua ofensiva indiscriminada e violações do direito internacional, Trump usa a tragédia como uma ferramenta de campanha. Ele não está preocupado com os mortos, mas com como pode transformar a guerra em um trampolim para seu próprio retorno ao poder.
Trump governa por meio da atenção que consegue atrair. Ele não precisa estar certo — ele só precisa ser o assunto. Seu modus operandi segue a lógica da “sociedade do espetáculo”, descrita por Guy Debord: uma realidade onde imagens, emoções e narrativas substituem os fatos concretos. Seu vídeo sobre Gaza é um exemplo perfeito. Um projeto absurdo, mas que gera manchetes, distrai da complexidade do conflito e, acima de tudo, mantém seu nome no centro da conversa.
E essa é a verdadeira estratégia. Criar polêmicas e jogar declarações inflamadas ao vento, sabendo que qualquer reação — crítica ou aplauso — apenas reforça sua presença no debate. Ele já fez isso antes, ao transformar crises internas em armas contra a imprensa, o judiciário e seus opositores.
E, agora, usa o Oriente Médio para se consolidar como um líder global, alguém que, na mente de seus seguidores, poderia resolver conflitos internacionais como se fossem episódios de um reality show.
Como Weber descreveu, a dominação carismática mina as instituições democráticas porque substitui o compromisso com a lei pela lealdade cega ao líder. Trump segue essa cartilha com precisão cirúrgica: desacredita a mídia, ridiculariza seus adversários, menospreza instituições e se coloca como o único capaz de salvar não apenas os Estados Unidos, mas o mundo. O problema é que essa ilusão de grandeza não se mede em votos ou likes — mede-se em vidas humanas.
Como qualquer líder carismático que se alimenta do caos, Trump prospera na tragédia. A guerra no Oriente Médio, com suas cenas de horror e destruição, tornou-se para ele mais do que um tema geopolítico; virou um trampolim para reafirmar sua imagem. Seu papel na pressão para que o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu aceitasse um acordo de cessar-fogo em troca de reféns foi relevante. Mas seu verdadeiro objetivo não é a paz — é a autopromoção, como fez ao expulsar recentemente o presidente da Ucrânia, Volodimyr Zelensky, da Casa Branca.
Enquanto o mundo ainda sente o impacto brutal dos ataques de 7 de outubro e das atrocidades cometidas pelo Hamas, incluindo o assassinato da família Bibas, celebrado por terroristas, Trump não está interessado em justiça, reparação ou soluções reais. Da mesma forma, ignora deliberadamente as violações de direitos humanos cometidas pelo governo de Netanyahu.
Desde o início da ofensiva israelense, Gaza se tornou um campo de morte. Com bombardeios sistemáticos a áreas civis, ataques a hospitais e bloqueio do fornecimento de água, eletricidade e ajuda humanitária, Israel tem sido amplamente acusado de crimes de guerra. A destruição da infraestrutura essencial não visa apenas o Hamas — ela empurra milhões de palestinos para uma crise humanitária sem precedentes. Mesmo diante de ordens da Corte Internacional de Justiça para permitir ajuda à população civil, o governo israelense segue sua campanha, resultando em mais de 46 mil mortos, segundo autoridades locais, incluindo milhares de crianças.
Mas Trump não condena esses abusos — ele os instrumentaliza. O sofrimento real de palestinos e israelenses não importa para ele. O que importa são os slogans e como a tragédia pode ser convertida em capital político.
Foi assim que surgiu seu vídeo altamente produzido por Inteligência Artificial generativa, publicado na Truth Social, promovendo uma visão fantasiosa: uma “Riviera em Gaza”. A cena é quase surreal. Uma trilha sonora épica embala imagens de praias paradisíacas, enquanto um coro canta “Trump vai te libertar”. No centro da encenação, o bilionário Elon Musk distribui notas de dólares, como um magnata benevolente, pronto para erguer um paraíso capitalista sobre os escombros da guerra.
Mas por trás do espetáculo midiático, há algo muito mais sombrio. Trump sugeriu abertamente que os palestinos deveriam deixar Gaza, uma posição que, segundo o Artigo 2 da Convenção sobre Genocídio de 1948, configura limpeza étnica. Expulsar mais de dois milhões de pessoas de suas casas não apenas viola o direito internacional, mas cria um desastre humanitário de proporções catastróficas. Para onde iriam esses refugiados? Quais seriam as implicações políticas e econômicas para os países vizinhos, já sobrecarregados com décadas de deslocamento forçado? Essas questões não interessam a Trump. Seu discurso não trata de reconstrução nem de paz — trata de marketing político.
A guerra já deixou um saldo devastador. Em Gaza, 1,8 milhão de pessoas passam fome e quase toda a população foi deslocada. Enquanto isso, 250 reféns israelenses foram sequestrados pelo Hamas, muitos submetidos à tortura — por vezes televisionada e celebrada. Enquanto Netanyahu avança com sua ofensiva indiscriminada e violações do direito internacional, Trump usa a tragédia como uma ferramenta de campanha. Ele não está preocupado com os mortos, mas com como pode transformar a guerra em um trampolim para seu próprio retorno ao poder.
Trump governa por meio da atenção que consegue atrair. Ele não precisa estar certo — ele só precisa ser o assunto. Seu modus operandi segue a lógica da “sociedade do espetáculo”, descrita por Guy Debord: uma realidade onde imagens, emoções e narrativas substituem os fatos concretos. Seu vídeo sobre Gaza é um exemplo perfeito. Um projeto absurdo, mas que gera manchetes, distrai da complexidade do conflito e, acima de tudo, mantém seu nome no centro da conversa.
E essa é a verdadeira estratégia. Criar polêmicas e jogar declarações inflamadas ao vento, sabendo que qualquer reação — crítica ou aplauso — apenas reforça sua presença no debate. Ele já fez isso antes, ao transformar crises internas em armas contra a imprensa, o judiciário e seus opositores.
E, agora, usa o Oriente Médio para se consolidar como um líder global, alguém que, na mente de seus seguidores, poderia resolver conflitos internacionais como se fossem episódios de um reality show.
Como Weber descreveu, a dominação carismática mina as instituições democráticas porque substitui o compromisso com a lei pela lealdade cega ao líder. Trump segue essa cartilha com precisão cirúrgica: desacredita a mídia, ridiculariza seus adversários, menospreza instituições e se coloca como o único capaz de salvar não apenas os Estados Unidos, mas o mundo. O problema é que essa ilusão de grandeza não se mede em votos ou likes — mede-se em vidas humanas.
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