segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Brasil direito


Sapato de Cinderela

É do filósofo Isaiah Berlin, citado pelo historiador Alberto Aggio num instigante artigo sobre o populismo na América Latina (Um lugar no mundo, Fundação Astrojildo Pereira/Fundazione Instituto Gramsci), a comparação do conceito de populismo com o sapato da Cinderela no conto de fadas popularizado pelo francês Charles Perrault, a partir de 1697. Segundo Berlin, existe um sapato — a palavra populismo — para o qual há um pé em algum lugar. “Existem diversos tipos de pés que podem calçá-lo, mas esses pés não nos devem enganar porque quase se ajustam à medida. Na busca, o príncipe sempre vagueia errante com o sapato; e, em algum lugar, estamos seguros, espera um pé denominado populismo puro”. Aggio recorre à citação para questionar o uso abusivo e vulgar do conceito explicativo nas análises sobre a América Latina.


Num cenário de crise do liberalismo das repúblicas oligárquicas e de emergência das camadas populares na América Latina, em meados do século passado, porém, qualquer que fosse, o populismo buscava a construção de uma sociedade industrial moderna, politicamente orientada pelo Estado, com incorporação das massas pela via do reconhecimento dos seus direitos sociais. No Brasil, resultou num Estado de bem-estar social limitado, a partir de um programa nacionalista e estatizante, com uma legislação trabalhista que garantia direitos e, ao mesmo tempo, tutelava os trabalhadores. Esse modelo se tornou tão robusto que foi batizado de Era Vargas, pois atravessou inúmeras crises econômicas e políticas, inclusive com mudanças de regime político (1945, 1964, 1985), ao longo de nove décadas; somente agora, no governo Bolsonaro, está sendo desmantelado.

Por aqui, os sociólogos Francisco Weffort e Octavio Ianni, no final da década de 1980, experimentaram o sapato de Cinderela. Influenciados pela teoria da dependência, associaram o populismo ao processo de industrialização substitutiva de importações e às particularidades do desenvolvimento do capitalismo na América Latina. As plataformas aglutinadoras e catalisadoras da chamada “coalizão populista” seriam o nacionalismo desenvolvimentista e a política social de massas que os governos deveriam colocar em prática.

O populismo é visto como fenômeno de massas urbano, expressão e consequência do declínio do poder das oligarquias, a partir do início da década de 1930. A crítica ao populismo está na gênese da formação do PT, cujo próprio nome já revela a intenção original de construir uma organização que representasse a classe trabalhadora para si e não a sua manipulação por um “Estado de compromisso”. Não é preciso muita tinta para explicar que o resultado prático, 40 anos depois, com a passagem do PT pelo poder, não foi bem esse: o partido foi capturado pelo transformismo e abduzido pelo patrimonialismo.



Na América Latina, a revanche do populismo bolivarianista parte da ideia de que a relação entre governantes e governados deve dar lugar à democracia direta e participativa, no bojo da crise da democracia representativa e dos seus partidos tradicionais. Entretanto, a roda da história dá mais uma volta, e o subcontinente é convulsionado por um novo ciclo político, no qual o Estado liberal oligárquico outra vez entra em confronto com as massas, tendo por pano de fundo a recidiva do populismo (Chile, Argentina, Colômbia), ou o contrário, o “Estado de compromisso” (Venezuela, Bolívia, Nicarágua) é que entra em colapso, com o fracasso do “bolivarianismo”.

Voltando à analogia de Isaiah Berlin, todos os populismos são derivações e variações, “em algum lugar se esconde, furtivo, o populismo verdadeiro, perfeito”. Pode ser que seja aqui no Brasil. “O populismo dos dias que correm é visivelmente uma força regressiva no político. Nele predominam o autoritarismo, a intolerância e o antipluralismo. Onde é possível, afronta direitos humanos, suprime liberdades, reprime opositores, persegue juízes e jornalistas”, adverte Aggio, com a ressalva de que nos lugares onde a ordem constitucional é mais legitimada, como aqui no Brasil, a resistência é maior a esse tipo de movimento, que “nem deveria ser qualificado de populista”.

Insidioso, o populismo pode ser calçado com o pé esquerdo ou o pé direito, porém, por uma ironia da história, agora não ressurge num ambiente de industrialização e ampliação dos direitos sociais que lhe dariam legitimidade e sustentação política. Pelo contrário, ocorre num momento em que a integração da América Latina às cadeias mundiais de produção resulta em desindustrialização, redução de mercado interno e ampliação das desigualdades sociais e regionais, com desemprego em massa. Ou seja, por falta de uma estratégia robusta de desenvolvimento sustentável, não tem a menor chance de dar certo. No nosso caso, se o projeto ultraliberal do atual governo fracassar, ou Bolsonaro enveredar pelo caminho de um certo “populismo destro”, corremos risco de um efeito Orloff: o Brasil pode ser a Argentina amanhã.

Tolerância não é respeito

Chegamos em um lugar tão deprimente que nós estamos nos contentando com o fato de sermos tolerados, não respeitados
Emicida

Para frente ou para trás?

Tudo embolado: o julgamento da restrição aos dados da Receita e do Coaf, a reviravolta na prisão em segunda instância, o pacote anticrime empacado. E é por isso que o presidente do Sindifisco, advogado e engenheiro mecatrônico Kleber Cabral, adverte, dentro e fora do País, para os graves efeitos dessa investida não mais apenas contra a Lava Jato, mas contra todos os avanços no combate à corrupção e à lavagem de dinheiro.

“Essa é a percepção generalizada e qualquer decisão que restrinja o trabalho da Receita e o compartilhamento de dados de órgãos de controle tem impacto inclusive no desenvolvimento. Se o Brasil for carimbado como ‘não cooperativo’ no combate a ilícitos, isso será um forte obstáculo aos investimentos internacionais”, diz ele.

O Sindifisco, Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais, já entrou com representações em quatro órgãos internacionais para denunciar e tentar brecar os avanços contra os órgãos de controle, Receita, Polícia Federal e UIF (Unidade de Inteligência Financeira, ex-Coaf). E esses ataques não se limitam a apenas um Poder.


Além dos julgamentos do Judiciário sobre segunda instância e compartilhamento de dados, há também decisões do Executivo e do Legislativo atravancando todo um processo que havia jogado luzes positivas sobre o Brasil, criando uma expectativa do fim da impunidade e uma onda de confiança nos brasileiros. Com tudo isso em risco, a decisão do Congresso sobre segunda instância também se torna crucial. A ver.

Não apenas os recuos no combate à corrupção, porém, preocupam, incomodam, irritam. Um professor universitário xingado de “macaco” e esfaqueado na rua por ser negro em plena semana da Consciência Negra? Um deputado federal vandalizando uma exposição contra o racismo? Um outro falando em “negrinhos bandidinhos”?

Depois da ditadura, destampou-se no Brasil a panela de pressão política e o vapor da democracia trouxe ao ambiente os grupos, interesses e confrontos tão reprimidos em duas décadas. A unidade de esquerda, centro e parte da direita para recuperar a normalidade perdida foi aos poucos cedendo terreno às divergências e nuances próprias das democracias.

Agora, o fim da era PT com a sucessão de mensalão e petrolão destampou uma nova panela de pressão: o que há de pior na pior direita, o discurso assassino das armas, a falsa religiosidade que rouba dos pobres e infelizes, a crueldade contra negros e a comunidade LGBT, a posição retrógrada sobre gênero disfarçada como defesa da família. Os recuos no combate à corrupção e essa barafunda vieram acompanhados de retrocessos em Meio Ambiente, Cultura, Direitos Humanos, pesquisa, educação, política externa. E não se fala aqui do governo, ou não apenas do governo, mas de toda uma classe média que saiu do armário para se assumir armamentista, racista, homofóbica... cruel.

Em meio à balbúrdia, sobressai-se o Ministério da Economia de Paulo Guedes. Ele e Rodrigo Maia trazem racionalidade a um ambiente de preocupante irracionalidade, mas eles podem muito, não podem tudo. A economia tem enorme peso na política e os índices inegavelmente favoráveis escamoteiam os demais problemas, mas a economia também depende da política, da percepção, dos ventos e da sociedade, tanto quanto a sociedade depende da economia.

O Brasil é um país imenso, amistoso, cheio de potencialidades, que tem tudo para se desenvolver e incluir os milhões de miseráveis que sobrevivem por aí não se sabe como. Mas, para isso, é preciso andar para frente, não para trás. Avançar na economia, no combate à corrupção, na igualdade de oportunidades, no respeito às diferenças, na dignidade de todos, não importa o sexo, a cor, a religião, o saldo bancário. Aliás, princípios básicos de humanidade.

Não confundir ódio com liberdade de expressão

Desde que o prefeito de Kassel, Walter Lübcke, foi assassinado, em junho, a Alemanha discute sobre ódio e violência de extrema direita – mais uma vez. Em todas as partes do país registram-se ameaças a políticos municipais, estaduais e federais. Imitadores e extremistas encorajados enviam ameaças de morte, desencadeando insegurança coletiva.

Esta afeta, por exemplo, quem assume o cargo honorário de prefeito em pequenas comunidades. E por isso fica cada vez mais difícil encontrar voluntários dispostos a arcar com responsabilidades no interesse da coletividade, quando indivíduos ou uma minoria barulhenta erguem cenários de pressão e ameaça contra processos políticos estabelecidos.

As consequências podem ser fatais para a cultura democrática: quem, fora os empedernidos ideológicos, vai querer se disponibilizar para funções e mandatos políticos, se o preço é o medo e o desprezo? Não é preciso apenas melhor proteção estatal contra intimidações e violência, mas também reconhecimento pelo engajamento honorário – por toda a sociedade, também para além das linhas partidárias.

"Onde há incitação, mais tarde também vai haver chutes!"
A verdade também é que, durante anos, a política alemã deixou o ódio crescer e multiplicar-se. Quando os disparos dos nazistas atingiam migrantes, sem teto ou esquerdistas, o Estado não reagiu. Quando neonazistas matavam punks, estrangeiros e homossexuais, muitos se calaram: eles não eram punks, estrangeiros, nem homossexuais.

Desde 1990, pelo menos 198 vidas humanas terminaram nas mãos de agressores ultradireitistas, computa a Fundação Amadeu António. Entre as vítimas estava um único político em exercício.

Só agora governo o Polícia Federal reagem ao velho perigo da extrema direita. Para que as medidas atinjam de fato os odiadores (haters) e radicais, os estados precisam se empenhar no fortalecimento da polícia e da Justiça, os responsáveis pela persecução penal e pela proteção de todos perante o ódio e a violência.

Desde que a internet tornou tão fácil assediar, ofender e ameaçar de morte outros cidadãos, a todo momento revelam-se os abismos humanos de nossa sociedade. Na rede, os odiadores sequer precisam olhar nos olhos os objetos de suas agressões.

No entanto quem vivenciou como integrantes da populista de direita Alternativa para a Alemanha (AfD) ou do movimento anti-islâmico Pegida insultam e atacam jornalistas, policiais e manifestantes contrários, durante as passeatas, chega a uma conclusão: não são apenas comentários superficiais, lançados levianamente a partir do anonimato. O ódio jaz muito mais fundo.

Do ponto de vista jurídico, o ódio pode ser uma opinião. A liberdade de expressão é um bem precioso e, ao mesmo tempo, ambivalente: ele protege do Estado também manifestações de desprezo e agressão – contanto que elas não entrem em choque com as leis vigentes. São igualmente protegidas as réplicas corajosas, a objeção e a crítica ao antissemitismo, racismo, sexismo e outras ideologias e práticas da desigualdade.

No momento discute-se animadamente na Alemanha se se trata de uma restrição à liberdade de expressão quando, com parte de uma da politização e sensibilização da sociedade, discriminações e aviltamentos até então não rebatidos encontram resistência.

A AfD, por exemplo, viola sistematicamente a dignidade humana, sendo muitas vezes confrontada criticamente por isso. Os que infringem a Lei Fundamental invocam um fictício fim da liberdade de expressão, acomodando-se, assim, no papel da vítima.

Na realidade, porém, a gama de opiniões na Alemanha está se ampliando. Vozes antes ignoradas, não escutadas e silenciadas não se deixam mais reprimir. Numa sociedade cada vez mais diversificada, as vozes e histórias das mulheres, minorias e oprimidos conquistam seu espaço público.

Por exemplo, sob o hashtag #Baseballschlägerjahre ("anos de surras com taco de beisebol"), o jornalista Christian Bangel deu uma voz a todos os que foram agredidos por nazistas nos últimos anos, não só no Leste Alemão. Eu também sou um deles: para nós, ódio, violência, medo e repressão não são nada novo.

A consequência lógica é todas as vozes dos emancipados, proscritos e discriminados se levantarem a capa da ignorância e da indiferença, desafiando, por fim, a prepotência dos que, através de sua dominância cultural, durante décadas mantiveram a existência dos oprimidos fora do consciente público.

Cada vez mais indivíduos na Alemanha compreendem que as investidas da direita têm como alvo o consenso fundamental democrático. Cada comentário de ódio contra refugiados, mulheres ou judeus é uma afronta à Lei Fundamental. A esfera existencial liberal de todos os democratas, quer cidadãos, quer políticos, é atacada pelo ódio.

Por isso, de forma conjunta e transpartidária, a maioria deve se engajar por verdadeira solidariedade e o reconhecimento do "Outro". A história nos ensinou que, de outro modo, em algum momento pode não haver mais ninguém capaz de interferir, quando o ódio se espalha cada vez mais.
Matthias Quent, sociólogo diretor do Instituto para Democracia e Sociedade Civil, em Jena, e autor de "Deutschland rechts außen. Wie die Rechten nach der Macht greifen und wie wir sie stoppen können" ("Alemanha na extrema direita. Como os ultradireitistas tentam tomar o poder e como podemos detê-los")