quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Bolsonaro ameaça repetir aqui o que Trump fez no seu país

O presidente Jair Bolsonaro adiantou-se ao anúncio do fracasso do golpe tentado por seu ídolo Donald Trump para confirmar indiretamente o que muitos acham que ele fará caso seja derrotado nas eleições do ano que vem.

Sim, ele está disposto a recusar nesse caso o resultado das eleições e a proclamar que elas foram roubadas. Exatamente como fez Trump, novamente citado por ele como seu grande amigo só por tê-lo encontrado menos de meia dúzia de vezes.

Como de hábito, ao cumprimentar uma cada vez mais rarefeita plateia de devotos às portas do Palácio da Alvorada, Bolsonaro não apenas disse que a eleição do democrata Joe Biden foi fraudada como também a que ele disputou aqui há dois anos.

“O pessoal tem que analisar o que aconteceu nas eleições americanas agora. Basicamente, qual foi o problema, a causa dessa crise toda? Falta de confiança no voto. Lá o pessoal votou e potencializaram o voto pelos correios por causa da tal da pandemia e houve gente que votou três, quatros vezes. Mortos votaram. Foi uma festa lá. Ninguém pode negar isso daí.”

Não lhe pediram provas da fraude aqui e nos Estados Unidos, mas ele voltou a repetir que elas existem, embora nem mesmo Trump tenha apresentado as suas até hoje. Não fosse a fraude, segundo Bolsonaro, ele teria sido eleito no primeiro turno.

O presidente do Brasil foi o último chefe de Estado do mundo a parabenizar Biden pela vitória que agora chama de fraudulenta. Seu filho Eduardo, o Zero Três, visitou, esta semana, a Casa Branca acompanhado da mulher e da filha recém-nascida.

Eduardo já morou nos Estados Unidos, já tentou ser embaixador em Washington, é lobista de empresas americanas fabricantes de armas e, ultimamente, depois de sucessivas visitas a Las Vegas, aposta na legalização dos jogos de azar no Brasil.

O que o Brasil ganhou com a falsa amizade entre os Bolsonaro e a família Trump? Nada. O que poderá perder depois da chegada de Biden à Casa Branca? A ver.

Imagem do Brasil

 


O Bolsonaro de sempre

No segundo dia útil do ano, o presidente Jair Bolsonaro deixou claro que não se pode alimentar nenhuma esperança em relação a seu comportamento. Ele continuará exercendo o mesmo papel paradoxal que assumiu ao longo dos dois primeiros anos de mandato: o de governante que, em vez de construir, destrói – e ainda se faz de vítima. “O Brasil está quebrado, chefe. Eu não consigo fazer nada”, disse Jair Bolsonaro, na terça-feira passada, a um apoiador na saída do Palácio da Alvorada, como desculpa pelo fato de não ter cumprido a promessa de alterar a tabela do Imposto de Renda.

Destaca-se, em primeiro lugar, que a fala desastrada não foi simples deslize verbal. Ela está em total consonância com o modo pelo qual Jair Bolsonaro vem se referindo, desde a posse, ao seu governo e à sua incapacidade de governar. No primeiro semestre de 2019, por exemplo, o presidente da República divulgou um texto em que afirmava ser o País “ingovernável” e “disfuncional”.

Diversas vezes, Jair Bolsonaro admitiu sua falta de eficácia no Congresso. “Realmente eu não consigo aprovar o que eu quero lá”, disse, por exemplo, em fevereiro do ano passado. É no mínimo excêntrico que um presidente da República proclame, desde a aurora de seu mandato, sua ineficiência e inaptidão para o cargo. Fica evidente o intento de se apresentar como vítima, como alguém que deseja a todo custo se esquivar de sua responsabilidade.

Mas o problema não é apenas que o presidente Bolsonaro seja incapaz de cumprir suas promessas – o que, não raro, é um benefício ao País. O grave é que Jair Bolsonaro, além de não construir, faz questão de destruir o que está de pé. Tal ímpeto demolidor ficou evidente, por exemplo, na declaração de terça-feira.



O País luta contra uma grave pandemia. Não se sabe quando haverá vacina para os brasileiros. O desemprego alcança taxas alarmantes. A economia tenta a duras penas se aprumar. E o presidente da República vem dizer que o Brasil está quebrado? Haja irresponsabilidade. Haja insensibilidade.

A quem se apressou a dizer que a fala de Jair Bolsonaro não causou nenhum prejuízo – teria sido apenas uma metáfora, perfeitamente entendida por quem tinha de entender –, o retorno antecipado das férias de Paulo Guedes pode ajudar a mostrar que as coisas são um pouco mais complexas. O ministro da Economia foi convocado às pressas para uma reunião ministerial, ocorrida ontem no Palácio do Planalto, precisamente para tratar dos desdobramentos da declaração presidencial.

Além disso, não cabe atestar agora, de imediato, a tal ausência de danos para o País, e sim nas próximas negociações da dívida pública. Certamente, os negociadores do governo não ficaram felizes com o presidente da República declarando que o Brasil está quebrado. Nas próximas rodadas, o trabalho desses profissionais será mais difícil. Ao menos, terão de explicar por que o governo continua tendo condições de arcar com seus compromissos mesmo tendo à frente do Executivo quem não arca com a responsabilidade de suas falas.

Se o presidente Jair Bolsonaro está mesmo convencido de que o Brasil está quebrado e de que ele não pode fazer nada, é imperioso – para o bem do País e dos brasileiros – que renuncie o quanto antes. Não há lugar para um presidente da República assim amuado, a fazer-se de vítima na porta do Palácio da Alvorada perante seus apoiadores.

Sempre, mas especialmente na atual situação, com a pandemia e a crise social e econômica a assolar as famílias brasileiras, o que o País precisa é de um presidente da República brioso, que assuma valentemente suas responsabilidades. Entre elas, a de cuidar do que fala.

O Brasil tem muitos desafios a serem enfrentados e muitas reformas a serem feitas. O caminho é longo e não há tempo a perder. Se o presidente Jair Bolsonaro vê que em nada pode contribuir, não basta que ele admita em voz alta sua irrelevância. É tempo de ele encontrar uma ocupação mais afeita às suas aptidões. A Presidência da República exige responsabilidade de quem a exerce, uma vez que seus atos e suas falas têm consequências.

Laranjal de sem vergonha


A imprensa sem vergonha. Essa imprensa co... ca... sem vergonha. A imprensa fez uma onda terrível aí. Pra imprensa bom tava, Dilma ... gastando três bilhões por ano pra eles
Jair Bolsonaro

Cai gasto com pessoal civil; sobe com militares

Um fato pouco comum merece ser registrado. De janeiro a novembro do ano passado, a despesa da União com os seus servidores civis ativos foi 0,5% menor do que aquela registrada no mesmo período de 2019, em termos nominais, de acordo com dados do Tesouro Nacional. Em compensação, o gasto com os militares ativos aumentou 12%, na mesma comparação.

A expectativa na área técnica é que esse quadro tenha se mantido no período janeiro a dezembro. Os técnicos trabalham com a previsão de que a despesa da União com pessoal ativo e inativo, civil e militar, tenha caído em 2020, em termos reais (descontada a inflação), na comparação com 2019.

O efetivo controle do gasto com pessoal civil no ano passado decorreu da lei complementar 173, que proibiu a concessão de qualquer vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados de estatais. A LC 173 proibiu também criar cargo, emprego ou função, alterar estrutura de carreira e instituir ou majorar auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza.

No caso dos militares, no entanto, a situação foi diferente. O aumento das despesas no ano passado refletiu, principalmente, o impacto orçamentário decorrente da lei 13.954/2019, que reestruturou o Sistema de Proteção Social dos militares das Forças Armadas.



Na época em que o projeto de lei que trata do assunto foi encaminhado ao Congresso, o governo informou que a reestruturação traria uma economia de R$ 10,5 bilhões em dez anos, com um ganho fiscal de R$ 97,3 bilhões e com elevação das despesas em R$ 86,6 bilhões.

Não foram apenas os militares que tiveram aumentos em 2020. A União foi obrigada, por emendas constitucionais aprovadas pelo Congresso, a incorporar no seu quadro de pessoal os servidores civis e militares dos extintos territórios de Rondônia, Roraima e Amapá. Houve também a anualização do aumento remuneratório concedido aos docentes do Ministério da Educação.

As proibições previstas na LC 173 valem até 31 de dezembro de 2021. Por isso, o governo continuará mantendo controle sobre a despesa com o pessoal ativo civil durante todo este ano. Para eles, não haverá reajuste ou qualquer outro tipo de vantagem. Os militares, no entanto, continuarão tendo aumento, em decorrência da lei 13.954/2019.

Haverá também elevação da despesa com pessoal decorrente da medida provisória 971/2020, que aumentou a remuneração da polícia Militar, do Corpo de Bombeiros Militar e da Polícia Civil do Distrito e dos extintos territórios. Mesmo com todos esses aumentos, a expectativa da área técnica é de que a despesa da União com pessoal civil e militar, ativo e inativo, continue sob controle neste ano.

Outro gasto da União que surpreendeu favoravelmente em 2020 foi com benefícios previdenciários. O Orçamento do ano passado previa uma despesa de R$ 677,69 bilhões, mas ela deve ter ficado ao menos R$ 8 bilhões menor, de acordo com estimativa de técnicos ouvidos pelo Valor

Ainda não é possível saber as razões para a forte queda do gasto previdenciário em 2020. Evidentemente, a despesa caiu em decorrência das mudanças nas regras de acesso aos benefícios, previstas na reforma da Previdência. Mas, o próprio governo projetou uma economia muito pequena nos primeiros anos da reforma. Ela irá crescer ao longo dos próximos anos.

A despesa previdenciária pode ter caído também por conta da não concessão de benefícios em função da pandemia da covid 19, que provocou, no ano passado, a suspensão do atendimento presencial nos postos do INSS. O estoque de pedido de benefícios não analisados, que já era alto no fim de 2019, deve ter aumentado durante o ano passado por causa da crise sanitária.

Para este ano, o governo terá que reprogramar as despesas com benefícios previdenciários que constam da proposta orçamentária, enviada ao Congresso Nacional no fim de agosto. A principal razão é que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que é utilizado para corrigir o salário mínimo e todos os benefícios previdenciários e assistenciais, ficou muito acima do imaginado.

A proposta orçamentária foi elaborada com a previsão de um INPC de 2,09% em 2020, mas o governo agora estima que o índice ficou em 5,22% - mais do que o dobro do previsto inicialmente. Isto significa que o acréscimo da despesa, em relação a este ano, também será o dobro da projetada.

Um fato surpreendente foi o aumento exponencial do chamado “empoçamento” das dotações orçamentárias no ano passado. O “empoçamento” ocorre quando o Tesouro Nacional libera o dinheiro para um determinado ministério ou órgão público e ele não consegue gastar. O dinheiro fica parado, pois o governo, na maioria dos casos, não tem liberdade para usar os recursos para pagar outras despesas.

De janeiro a novembro, o “empoçamento” estava em R$ 34,8 bilhões. Para se ter uma ideia do que isso significa, em 2019 o “empoçamento” foi de R$ 17,4 bilhões. O forte aumento decorreu, principamente, da sobra de recursos destinados ao pagamento de benefícios do Bolsa Família, de acordo com fontes ouvidas pelo Valor. As pessoas optaram pelo auxílio emergencial, em vez do Bolsa Família. E a sobra de recursos ficou parada, com o governo não podendo usá-la em outras despesas.

Autoridade perdida

Entre um país que está quebrado (Bolsonaro, na terça) ou que está uma maravilha (Bolsonaro, na quarta) há uma enorme diferença. Ela é igual ao tamanho da perda de credibilidade de quem faz essas afirmações de forma tão inconsequente. Um presidente que se gaba num dia de ter poder para quase tudo, e no outro declara que não pode nada.

Por achar que para governar bastava ser engraçadinho com a claque à qual se dirige na porta do Alvorada – além de animador de auditórios virtuais –, Bolsonaro arriscou a credibilidade e perdeu a autoridade. Do ponto de vista formal (do relacionamento entre os poderes, por exemplo), a autoridade do presidente já vinha sendo encurtada desde o primeiro dia de mandato pela incapacidade dele de liderar e se articular frente ao Legislativo e ao Judiciário.



Em outras palavras, a caneta do presidente tem menos tinta hoje do que há dois anos. Mas a autoridade política, subjetiva, se deteriorou mais rápido ainda com a pandemia. Uma coisa é ser falastrão diante de desafios da política, como os de levar adiante reformas estruturantes, desatar os nós da economia, derrubar o governo da Venezuela, peitar os críticos internacionais das políticas ambientais, prometer maravilhas e por aí vai.

Outra coisa completamente diferente é ser falastrão diante de uma crise sanitária sem precedentes na memória de qualquer geração atual, em escala planetária. Cabe não confundir autoridade com popularidade, embora em ocasiões uma coisa tenha influência sobre a outra. A autoridade de Bolsonaro que foi embora é preciosa: é aquela atribuída a quem se confia ser capaz de ajudar a resolver uma crise aguda de vida ou morte para milhares de pessoas.

Ao tratar assuntos (pandemia), pessoas (adversários políticos), instituições (chefes de outros poderes), eventos externos (eleições em outros países) com declarado desprezo ou desrespeito, pelos fatos e pela ciência, o presidente brasileiro em boa parte incentivou a atmosfera atual, na qual a ele se dá pouco respeito. De novo, estamos diante de um fator político difícil de quantificar, mas palpável: a ridicularização do personagem político, como acontece hoje com Bolsonaro, é um indício claro de perda de autoridade.

Dela ele precisará bastante se for capaz – há uma aparente unanimidade no mundo político de que ele não será – de proceder às difíceis escolhas que tem pela frente para, por exemplo, equilibrar as contas públicas ao mesmo tempo garantindo uma renda mínima e uma alta taxa de investimentos. Bolsonaro vacilou diante de qualquer decisão abrangente até aqui, uma característica detectada pelo apurado olfato das feras do Centrão, em que está depositada no momento o que existe de autoridade política do presidente.

Não se pode criticar políticos, como Bolsonaro, que confundem índices de popularidade com autoridade. De fato, é difícil governar sem uma ou sem outra, em qualquer lugar. São fatores reais no mundo da política. Da mesma maneira, não se pode condená-los simplesmente pelo comportamento tão normal assumido por eles, que é aderir ao curto prazo deixando a visão de longo alcance para um eterno “depois”.

Bolsonaro sacrificou autoridade em busca de popularidade efêmera e volátil. Corre o gravíssimo risco de acabar ficando sem as duas.

Pensamento do Dia

 


Um ponto azul

Observe o ponto uma vez mais. É aqui. É a nossa casa. Somos nós. Nele vivem ou viveram todas as pessoas que ama, todas as pessoas que conhece, todas as pessoas de que ouviu falar, todos os seres humanos que alguma vez existiram. A conjunção da nossa alegria e do nosso sofrimento, milhares de religiões confiantes, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e recolectores, todos os heróis e cobardes, todos os criadores e destruidores da civilização, todos os reis e camponeses, todos os jovens casais apaixonados, todas as mães e pais, crianças esperançadas, inventores e exploradores, todos os professores de moral, todos os políticos corruptos, todas as "superestrelas", todos os "líderes supremos", todos os santos e pecadores da história da nossa espécie viveram lá – numa partícula de poeira suspensa num raio solar. A Terra é um palco muito diminuto na vasta arena cósmica. Pensemos nos rios de sangue vertidos por todos aqueles generais e imperadores para que, em glória e triunfo, pudessem ser momentaneamente os senhores de uma fracção de um ponto.


Pensemos nas crueldades intermináveis infligidas aos habitantes de um dos cantos do pixel pelos dificilmente discerníveis habitantes de outro canto, na frequência dos seus desentendimentos, na ânsia de se matarem uns aos outros, no fervor dos seus ódios. A nossa posição, a nossa auto-importância imaginada, a ilusão de que ocupamos um lugar privilegiado no universo são desafiadas por este pequeno ponto de luz clara. O nosso planeta é uma partícula solitária numa imensa escuridão cósmica envolvente. Na nossa obscuridade, em toda esta vastidão, não há nenhum indício que venha a surgir alguma ajuda do exterior para nos salvar de nós próprios.
Carl Sagan, "O Ponto Azul-Claro"

O grande recomeço

Se 2020 foi o ano da destruição de vidas e de empregos pela pandemia, 2021 pode ser o ano do grande recomeço da humanidade. A última vez que vivemos momento semelhante foi após a Segunda Guerra Mundial, quando o mundo teve de ser reconstruído e foi gerada uma nova ordem civilizatória, com o fortalecimento do multilateralismo e o avanço da democracia. Naquele momento da História economias tiveram de ser reconstruídas e em novas bases, propiciando, assim, um desenvolvimento da ciência e da produção de riquezas em escala nunca vista.


A rigor, os desafios do pós pandemia tem muito a ver com os daquela época. O coronavírus provocou uma queda do PIB mundial de 3%, desorganizou economias poderosas como a dos Estados Unidos e da União Europeia, jogou milhões e milhões de pessoas no desemprego – só nos EUA um em cada quatro trabalhadores tiveram de recorrer ao seguro desemprego. Segundo a ONU, 235 milhões de pessoas necessitarão de ajuda humanitária em 2021. Não basta apenas recomeçar. É preciso recomeçar em novas bases, por meio de um modelo baseado na cooperação para gerar um mundo justo e sustentável, social e ambientalmente.

Não por coincidência o tema da edição de 2021 do Fórum Econômico Mundial – a ser realizada no verão europeu – terá como tema ”The Great Reset” (O Grande Recomeço). Davos preconiza que o capitalismo seja reinicializado, com uma profunda transformação em todos os setores, “desde petróleo e gás, até tecnologia”. Com a pandemia ainda longe de terminar, seus impactos se dão em todas as áreas, na saúde, na educação, na dívida pública, no bem estar das pessoas.

O mundo está diante de dois caminhos. O primeiro adotado por alguns países (e lamentavelmente o Brasil faz parte desse time) de usar a Covid-19 como pretexto para “passar a boiada” e enfraquecer conquistas importantes, como as ambientais. Nesse modelo, estabelece-se a lei da selva, por meio de um darwinismo social, que levará ao aumento da desigualdade entre países e regiões e entre pobres e ricos.

Basta citar que até nos Estados Unidos a desigualdade aumentou com a pandemia. A face mais perversa do avanço da desigualdade será entre povos e países com acesso à vacina contra o coronavirus e os sem acesso.

A outra alternativa é enxergar nos desafios colocados uma oportunidade para criar uma sociedade sustentável e socialmente mais justa, por meio da oferta de serviços públicos de qualidade, particularmente nas áreas de saúde, educação e segurança.

Como na Depressão dos anos 30 e na reconstrução pós Segunda Guerra, o Estado deve ter papel ativo na retomada das atividades econômicas e na oferta de serviços públicos. A União Europeia já criou um fundo de 750 bilhões de euros para investir na recuperação da economia dos países do bloco. Joe Biden anunciou que irá pelo mesmo caminho, injetando recursos públicos na economia americana. Japão e China também vão na mesma direção.

O mundo ingressa em 2021 com esperanças renovadas. Com a posse de Biden, os Estados Unidos deixaram de lado o isolacionismo, a polarização e o negacionismo e marcham para assumir o seu papel na cabeceira da mesa, de liderar o mundo pela força de seu exemplo. Foi assim no pós guerra, com o Plano Marshall. O retorno ao Acordo Climático de Paris, a retomada do acordo nuclear com o Irã e das relações com Cuba nos colocarão diante de um mundo mais cooperativo, com o fortalecimento do multilateralismo.

No apagar das luzes de 2020, a humanidade alcançou feito extraordinário. A fabulosa mobilização da ciência em uma escala jamais imaginada levou à resposta mais eficiente à pandemia, com a descoberta de várias vacinas eficazes. O desafio agora é a vacinação em massa, já iniciada na Inglaterra e nos Estados Unidos, de forma que se estenda a todos os povos e classes. Só assim se evitará o aumento da desigualdade.

Iniciamos 2021 em condições de estabelecer um “Novo Acordo”, como preconiza o Fórum Econômico Mundial. A escolha do termo por Davos não foi por acaso. Ele remete ao “New Deal” de Franklin Delano Roosevelt, quando os Estados Unidos superou a depressão dos anos 30 e se transformou na maior liderança mundial.

Qual será o papel do Brasil no “Novo Acordo” e qual será seu assento na mesa?

As expectativas são desanimadoras. O negacionismo, o isolacionismo, o rotundo fracasso da estratégia de Bolsonaro no enfrentamento da pandemia, a antipolítica ambiental, os atritos com a China, a União Europeia e com os Estados Unidos, nos condenarão a sequer ter lugar à mesa do concerto das nações. Tudo isso, ao lado da crise econômica, fará do Brasil uma nação em declínio, que perde relevância inclusive na América Latina, região da qual já foi líder.

Não é possível ter ilusões quanto a um governo cujo ministro do Exterior vê o Grande Recomeço como uma imensa conspiração do globalismo. Vejam a pérola de Ernesto Araújo, publicada em redes sociais:


“A pandemia não pode ser pretexto para o controle social totalitário violando, inclusive, os princípios das Nações Unidas. As liberdades fundamentais não podem ser vítimas da Covid. Liberdade não é ideologia. Nada de Great Reset”.

Sem comentários.
Hubert Alquéres

IDH: A culpa é nossa

O atual Presidente da República é o menos dotado de inteligência, capacidade gerencial, empatia social, espírito de tolerância e gosto pelo diálogo entre todos os que foram eleitos ao longo dos 130 anos de República; isto não justifica jogar sobre ele a responsabilidade pela queda da classificação do Brasil na escala do IDH. Ignorar a responsabilidade dos governos anteriores é uma forma de negacionismo, mentira que impede conhecer a realidade e aprender com os erros.

O IDH de cada país foi definido por dados de 2019, mas resultantes de anos e até décadas de descasos anteriores. A culpa, portanto, é dos governos precedentes ao longo de toda a República, especialmente nos 33 anos da nova democracia, dos quais 26 por governos progressistas, 13 dos quais de esquerda. A piora na renda per capita entre o IDH anterior e o atual não ocorreu por causa de 2019, mas devido a recessão iniciada em 2014. Os efeitos do período Bolsonaro serão vistos no futuro, e tudo indica que teremos quedas ainda maiores. Mas esta queda foi culpa nossa, não dele. Até porque nosso IDH melhorou ligeiramente, outros cinco países melhoraram mais e nos superaram.



Nisto está nossa falta: melhoramos ficando para trás, sobretudo em educação. Depois de quase 50 anos de medidas paliativas, avançamos piorando ao ampliar três brechas: avançamos, mas os outros países avançaram mais; a educação dos pobres melhorou, mas a dos ricos mais; estudamos mais, entretanto, o que ensinamos aumentou menos do que o que o mundo moderno exige.

Tudo indica que os países vizinhos, inclusive mais pobres, erradicarão o analfabetismo de adultos antes do Brasil. Os que se preocupam com a educação investem em escolas privadas para resolver o problema de seus filhos, não do país. Não têm educação de qualidade como propósito nacional, apenas para seus filhos, ignoram a educação de todos que é utilizada para calcular o IDH. Não vemos a necessidade de executarmos uma estratégia nacional consistente a longo prazo, para termos educação de qualidade para todos, sem o que o IDH não sobe em relação aos outros países.

A resistência à essa estratégia decorre, em primeiro lugar, de que não e gostarmos de longo prazo, preferimos as ilusões dos pequenos passos – Fundef, Fundeb I e II, Piso Salarial do Professor, Merenda, Livro Didático, PNE-I e II, IDEB, ENEM. Tudo certo e tudo insuficiente. Em segundo lugar, porque educação com a máxima qualidade pelos padrões internacionais não é um sonho brasileiro, ainda menos a crença de que a escola deve ter a mesma qualidade independente da renda e do endereço da família. Preferimos nos comparar pelo padrão FIFA do que pelo padrão PISA ou IDH. Nestas condições, dificilmente vamos ter uma estratégia de longo prazo para o governo federal adotar a educação de base nas cidades pobres. o apego municipalista prefere sacrificar as crianças das cidades pobres a entregar as escolas municipais ao governo federal.

Por isto, daqui a dois anos teremos novas surpresas tristes com o PISA e com o IDH e jogaremos a culpa no governo do momento, esquecendo os erros de todos nós no passado e relegando a tragédia no futuro.

Por que chegamos a Jair Bolsonaro?

Temos que tentar pensar por nós mesmos e nos perguntar numa atitude filosofante, vale dizer, que busca causas mais profundas que aquelas meramente analíticas das ciências: "Por que o Brasil chegou a este sinistro personagem histórico que contradiz qualquer racionalidade ética e política?”





Há um sem número de excelentes análises do anti-fenômeno Jair Messias Bolsonaro, predominando as de ordem sociológica, histórica e econômica. Creio que devemos cavar mais a fundo para captar a irrupção deste Negativo em nossa história.

A reflexão ocidental, devido aos limites culturais de nosso arraigado individualismo, quase não desenvolveu categorias analíticas para analisar totalidades históricas. A de Hegel, em sua Filosofia da História, vem eivada de preconceitos, inclusive sobre o Brasil, e dispõe de poucas categorias aproveitáveis. Arnold Toynbee, em seus 10 volumes sobre a história mundial, trabalha com um esquema fecundo mas limitado: desafio e resposta (challenge and response) com o inconveniente de não conferir relevância aos conflitos de todo tipo, inerentes à história. A Escola francesa dos Annales, em suas variações (Lefebvre, Braudel, Le Goff) incluiu várias ciências mas não nos ofereceu uma leitura da história como totalidade. Não deixam de ser inspiradoras as categorias desenvolvidas por Ortega y Gasset no seu famoso estudo sobre Esquemas das crises y otros ensaios.

Temos que tentar pensar por nós mesmos e nos perguntar numa atitude filosofante, vale dizer, que busca causas mais profundas que aquelas meramente analíticas das ciências: por que o Brasil chegou a este sinistro personagem histórico que contradiz qualquer racionalidade ética e política?

De antemão devemos dizer que todo existente não é fortuito, pois é fruto de um preexistente, de larga duração, que cabe à razão desentranhar. Ademais há que pensá-lo sempre dialeticamente: junto ao negativo e sombrio acompanham sempre como acólitos as dimensões positivas e portadoras de alguma luz. Não nos é concedido ter apenas luz ou trevas. Todas as realidades são crepusculares, mesclando luz e sombras. Mas o nosso foco nesta reflexão se concentra nas sombras.

Vou lançar mão de algumas categorias: a das sombras recalcadas, a teoria do caos destrutivo e generativo, a compreensão ampliada do karma no diálogo entre Toynbee e do filósofo japonês Daisaku Ikeda e os princípios do thánatos e do eros, associados à condition humaine de seres sapiens e simultaneamente demens.

A consciência brasileira é dominada por quatro sombras que nunca até o presente foram reconhecidas e integradas. Entendo a categoria “sombra” no sentido psicanalítico da escola de C.G. Jung e discípulos, tornada categoria amplamente aceita pelas demais escolas. Sombra seriam os conteúdos nefastos que uma cultura com seu consciente/inconsciente coletivo se recusa a assimilar e assim os recalca e se esforça por afastá-los da consciência coletiva. Tal repressão impede um processo de individuação nacional coerente e sustentado.

A primeira comparece à sombra do genocídio indígena. Segundo Darcy Ribeiro haveria uma população de cerca 5-6 milhões de indígenas de centenas de línguas, fato único na história mundial. Eles foram praticamente dizimados. Restaram os 900 mil atuais. Lembremos o massacre de Mem de Sá em 31 de maio de 1580, que liquidou com os Tupiniquim da Capitania de Ilhéus. Por um quilômetro e meio ao longo da praia numa distância de alguns metros uns de outros, jaziam centenas de corpos de indígenas assassinados, relatados como glória ao rei de Portugal.

Pior ainda foi a guerra declarada oficialmente por D. João VI em 13 de maio de 1808, que dizimou os Botocudos (Krenak) no vale do Rio Doce, por acharem que eram incivilizáveis e incatequisáveis. Essa guerra oficial manchará para sempre a memória nacional. Ailton Krenak, cujos antepassados sobreviveram, nos lembra essa vergonhosa guerra oficial de um imperador impiedoso, tido por bom.

O atual governo, de uma ignorância supina em antropologia, considera os povos indígenas originários como sub-humanos que devem ser forçados a entrar nos nossos códigos culturais para serem humanos e civilizados. O descuido que mostrou por suas terras invadidas e pelo abandono face à Covid-19 beira um genocídio, passível de ser levado ao Tribunal Internacional Penal por crimes contra a humanidade.

A segunda sombra é nosso passado colonial. Não ocorreu uma descoberta do Brasil mas uma pura e simples invasão, destruindo o Idílio inicial pacífico descrito por Pero Vaz de Caminha. Deu-se um encontrão profundamente desigual de civilizações. Logo se iniciou o processo de ocupação e violência em função das riquezas aqui existentes. Todo processo colonialista é violento. Implica invadir terras, submeter os povos, obrigá-los a falar a língua do invasor, incorporar suas formas de organização social e a completa submissão desumanizadora dos dominados. Desse processo de submetimento surgiu o complexo do vira-lata, achar que é bom só o que vem de fora ou de cima, de abaixar sempre a cabeça e abandonar qualquer veleidade de autonomia e de projeto próprio.

A mentalidade de boa parte dos estratos dirigentes se consideram ainda de certa forma coloniais, por mimetizarem os estilos de vida e assumirem os valores de seus patrões que foram variando ao longo de nossa história. Hoje se constituiu uma expressão humilhante para toda a nação, o fato do atual chefe de Estado fazer uma viagem especial aos USA, saudar a bandeira norte-americana e prestar um rito explícito de vassalagem ao presidente Donald Trump, extravagante, egocentrado e tido por notáveis analistas estadunidenses como o mais estúpido da história política.

A terceira sombra, a mais perversa de todas, foi a da escravidão. O jornalista e historiador Laurentino Gomes em seus dois volumes sobre A Escravidão (2019/2020) nos narra o inferno desse processo de inumanidade. O Brasil foi campeão do escravagismo. Só ele importou, a partir de 1538, cerca de 4,9 milhões de africanos que foram escravizados aqui. Das 36 mil viagens transatlânticas, 14.910 destinavam-se aos portos brasileiros.

Estas pessoas escravizadas eram tratadas como mercadorias, chamadas “peças”. A primeira coisa que o comprador fazia para “trazê-las bem domesticadas e disciplinadas” era castigá-las, “haja açoites, haja correntes e grilhões”. A história da escravidão foi escrita pela mão branca, apresentando-a como branda, quando, na verdade, foi crudelíssima e vem prolongada hoje contra a população negra, mulata (54,4% da população) e pobre, como o tem mostrado irrefutavelmente Jessé Souza em A Elite do Atraso: da escravidão a Bolsonaro (2020). Feita a abolição em 1888 não se lhes fez aos escravos nenhuma compensação, foram largados ao deus-dará e compõem hoje a maioria das favelas. Nunca se lhes reconheceu a mínima humanidade. A classe dominante, transferindo o ódio aos escravos, se acostumou a humilhá-los, a ofendê-los até perderem o senso de sua dignidade.

Essa sombra pesa enormemente na consciência coletiva e é a mais recalcada, na afirmação mentirosa de que aqui não há racismo nem discriminação. No atual governo isso foi desmascarado pela violência sistemática contra esta população estimulada pelo próprio chefe de Estado que tem conduzido uma política necrófila. Esta sombra por sua desumanidade evocou pessoas sensíveis como o poeta Castro Alves. Ressoarão para sempre seus versos em Vozes d’África:

“Ó Deus, onde estás que não respondes? Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes/ Embuçado nos céus? Há dois mil anos te mandei meu grito/ Que embalde, desde então, corre o infinito… /Onde estás, Senhor Deus”

Esse grito continua hoje tão lancinante como outrora.

Jessé Souza, em sua obra já referida, mostrou de forma convincente como a classe dominante, para impedir qualquer avanço das maiorias marginalizadas, projetou sobre elas toda a carga de negatividades que acumulou face aos escravos a essa “massa damnata” com requintes de exclusão, discriminação e verdadeiro ódio que nos espanta e nos revela níveis inacreditáveis de desumanização.

A quarta sombra é a constituição de um Brasil só para poucos. Raymundo Faoro (Os donos do poder) e o historiador e acadêmico José Honório Rodrigues (Conciliação e reforma no Brasil, 1982) nos têm narrado a violência com que o povo foi tratado para estabelecer uma ordem, fruto da conciliação entre as classes opulentas sempre com a exclusão intencionada do povo.

Escreve José Honório Rodrigues: “A maioria dominante foi sempre alienada, antiprogressista, antinacional e não contemporânea. A liderança nunca se reconciliou com o povo; negou-lhe seus direitos, arrasou sua vida e tão logo a viu crescer ela lhe negou pouco a pouco sua aprovação, conspirou para colocá-la de novo na periferia, no lugar que julga que lhe pertence” (Conciliação e reforma no Brasil, 1982, p.16). Não foi o que exatamente a maioria dominante e seus aliados fizeram com Dilma Rousseff primeiro e depois com Lula? Mudam as estratégias mas nunca seus propósitos de um Brasil só para eles.

Nunca houve um projeto nacional que incluísse a todos. Projetou-se um Brasil para poucos. Os outros que se lasquem. Assim surgiu não uma nação, mas como mostrou detalhadamente Luiz Gonzaga de Souza Lima, num livro que seguramente será um clássico, A Refundação do Brasil: rumo a uma civilização biocentrada (2011), foi fundada a Grande Empresa Brasil, desde os inícios internacionalizada em função de atender aos mercados mundiais ontem e até os tempos atuais. Assim temos um Brasil profundamente cindido entre poucos ricos e as grandes maiorias pobres, um dos países mais desiguais do mundo, o que significa um país violento e cheio de injustiças sociais. Machado de Assis já havia observado que há dois Brasis, o oficial (este de poucos) e o real (das grandes maiorias excluídas).

Uma sociedade montada numa bifurcação, sobre uma injustiça social perversa nunca criará uma coesão interna que lhe permitirá um salto rumo a formas mais civilizadas de convivência. Aqui imperou sempre um capitalismo selvagem que nunca conseguiu ser civilizado. E quando os filhos e filhas da pobreza conseguiram acumular uma força de base suficiente para chegarem ao poder central e atenderem demandas básicas das populações humilhadas e ofendidas, logo os descendentes da Casa Grande e a nova burguesia nacional se organizaram para impossibilitar este tipo de governo de inclusão social. Deram-lhe um golpe vergonhoso, parlamentar, mediático e jurídico para desta forma garantirem os níveis de acumulação considerados dos mais altos do mundo e manterem os pobres no lugar que lhes cabe, na periferia e na marginalizada de pobre e miserável.

O escritor Luis Fernando Verissimo num twitter de 6 de setembro de 2020 bem resumiu: “O ódio está no DNA da classe dominante brasileira, que historicamente derruba, pelas armas se for preciso, toda ameaça ao seu domínio, seja qual for sua sigla”. É esta classe de abastados que nem elite é, porque esta supõe certo cultivo de humanidade e de cultura, que sustenta o atual governo ultradireitista e fascistoide por não lhes ameaçar a forma abusiva de acumulação; antes, através de seu ministro da Fazenda, discípulo da escola de Viena e Chicago, comparece como o grande demolidor da soberania nacional. O presidente nada sabe e entende o que seja soberania nacional.
O caos destrutivo e generativo

Outra categoria que nos poderá fazer entender melhor nossa atual situação sombria é aquela do caos em sua dupla função destrutiva e construtiva.

Tudo começou com a observação de fenômenos aleatórios como a formação das nuvens e particularmente o que se veio chamar de efeito borboleta (pequenas modificações iniciais, como farfalhar das asas de uma borboleta no Brasil que pode, no fim, provocar uma tempestade em Nova York porque tudo está relacionado com tudo em todos os momentos e circunstâncias, constituindo uma constante cosmológica). Além disso faz-se a constatação da crescente complexidade que está na raiz da emergência de formas de vida cada vez mais altas (cf.J. Gleick Caos: criação de uma nova ciência, 1989). O universo se originou de um tremendo caos inicial, o big bang. A evolução se fez e se faz para colocar ordem neste caos.

O sentido originário é o seguinte: o caos possui uma dimensão destrutiva: põe fim a um certo tipo de ordem que chegou ao seu clímax. Mas por detrás do caos destrutivo se escondem dimensões construtivas de uma nova ordem. E vice-versa, por detrás da ordem se escondem dimensões de caos de tal forma que a realidade é dinâmica e flutuante sempre em busca de um equilíbrio. Ilya Progrine (1917-2003), prêmio Nobel de Química em 1977, estudou particularmente as condições que permitem a emergência da vida. Segundo este grande cientista, sempre que existir um sistema aberto, sempre que houver uma situação de caos (longe do equilíbrio) e vigorar uma não-linearidade dos fatores é a conectividade entre as partes que gera uma nova ordem (cf. Order out of Chaos, 1984). Foi neste contexto que irrompeu a vida como um imperativo cósmico.

Inegavelmente vivemos no Brasil uma situação de completo caos. No contexto do Covid-19 que está dizimando quase 200 mil vidas, temos um presidente totalmente omisso e sem qualquer preocupação com o destino cruel de seu povo, um negacionista com uma estupidez e arrogância, própria de pessoas autoritárias com sinais de insanidade mental.

As autoridades que têm poder como o Congresso Nacional, o MPF, o STF e outras revelam-se omissas, assistindo inertes e irresponsáveis o genocídio que está ocorrendo. Creio que a história será implacável para com as omissões destas autoridades que nada fizeram face a tanto descaso do destino de milhões de famílias que choram seus mortos. O atual presidente cometeu tantos casos de grave irresponsabilidade que mereceria jurídica e eticamente um impeachment ou uma pura simples destituição por um acerto de lideranças apoiadas por multidões nas ruas.

Consola-nos o fato de que há oculto dentro desse caos humanitário uma ordem mais alta e melhor. Quem vai desentranhá-la e fazer superar o caos?

Precisamos constituir uma frente ampla de forças progressistas e opostas às privatizações e da neocolonização do país para desentranhar a nova ordem, abscôndita no caos atual mas que quer nascer. Temos que fazer esse parto mesmo que doloroso. Caso contrário, continuaremos reféns e vítimas daqueles que sempre pensaram corporativamente só em si, de costas e, como agora, contra o povo.

Por fim valho-me de uma categoria, oriunda do Oriente, que relida à luz das novas ciências da Terra e da vida nos podem trazer elementos esclarecedores. Trata-se da categoria do Karma, objeto de um longo diálogo de três dias entre o historiador Arnold Toynbee e o filósofo japonês Daisaku Ikeda (cf. Elige la vida, Emecé, B. Aires, 2005).

O karma é um termo sânscrito originalmente significando força e movimento, concentrado na palavra “ação” que provoca sua correspondente “re-ação”. Este aspecto coletivo parece importante, porque, como já assinalei acima, não dispomos no ocidente de categorias conceptuais que deem conta de um sentido de devir histórico, de toda uma comunidade e de suas instituições nas suas dimensões positivas e negativas.

Cada pessoa é marcada pelas ações que praticou em vida. Essa ação não se restringe à pessoa mas conota todo o seu ambiente. Trata-se de uma espécie de conta-corrente ética cujo saldo está em constante mutação consoante as ações boas ou más feitas, vale dizer, os “débitos e os créditos”. Mesmo depois da morte, a pessoa, na crença budista, carrega esta conta por mais renascimentos que possa ter, até zerar a conta negativa.

O grande historiador e pensador Toynbee dá-lhe outra versão, nos quadros do paradigma ocidental, que me parece esclarecedora e nos ajuda a entender um pouco também a nossa história. A história é feita de redes relacionais dentro das quais está inserida cada pessoa, ligada com as que a precederam e com as presentes. Há um funcionamento kármico na história de um povo e de suas instituições consoante os níveis de bondade e justiça ou de maldade e injustiça que produziram ao largo do tempo.

Este seria uma espécie de campo mórfico que permaneceria impregnando tudo. Não se requer a hipótese dos muitos renascimentos, como na tradição oriental pressupõe, porque a rede de vínculos garante a continuidade do destino de um povo (p.384). As realidades kármicas impregnam as instituições, as paisagens, configuram as pessoas e deixam seus sinais na cultura de um povo. Esta força kármica atua nos processos sócio-históricos, marcando os fatos benéficos ou maléficos. C.G. Jung em sua psicologia arquetípica notara, de alguma forma, tal fato.

Apliquemos esta lei kármica à nossa situação sob a regência nefasta de Bolsonaro. Não será difícil reconhecer que somos portadores de um pesadíssimo karma, em grande escala, derivado do genocídio indígena, da superexploração da força do trabalho escravo, pela colonização predatória, das injustiças perpetradas contra grande parte da população, negra, mestiça e pobre pela burguesia endinheirada e insensível, jogada na periferia, com famílias destruídas e corroídas pela fome e pelas doenças.

Tanto Toynbee quanto Ikeda concordam nisso: “a sociedade moderna (nós incluídos) só pode ser curada de sua carga kármica, através de uma revolução espiritual no coração e na mente (p.159), na linha da justiça compensatória e de políticas sanadoras com instituições justas como vem apregoando insistentemente o Papa Francisco em suas encíclicas sociais e ecológicas, Laudato Si e Fratelli tutti. Sem esta justiça mínima a carga kármica não se desfará.

Mas ela sozinha não é suficiente. Faz-se mister o amor, a solidariedade, a compaixão e uma compaixão universal, especialmente para com as vítimas. É a proposta central e paradigmática da Fratelli tutti. O amor será o motor mais eficaz porque ele, no fundo, “é a última realidade” (p.387). Uma sociedade incapaz de efetivamente amar e de ser menos malvada, jamais desconstruirá uma história tão marcada pelo karma negativo e desumano, realizado, estranhamente, dentro de uma cultura cunhada pelo cristianismo, diuturnamente traído. Eis o desafio que a atual crise sistêmica nos suscita.

Não apregoaram outra coisa os mestres da humanidade, como Jesus, Buda, Isaías, São Francisco, Dalai Lama, Gandhi, Luther King Jr e o Papa Francisco? Só o karma do bem redime a realidade da força kármica do mal. E se o Brasil não fizer essa reversão kármica permanecerá de crise em crise, destruindo seu próprio futuro como o está fazendo, entre mentiras, fake news, ironia e zombaria, o necrófilo e insano presidente deste país.

Estas são expressões bem conhecidas no Ocidente e não se necessita de maiores explanações. Vale lembrar que se trata de princípios e não simplesmente de dimensões acidentais. Princípio é aquilo que faz ser todos os seres ou sem o qual os seres não irrompem na realidade. Assim foi desenvolvido por Sigmund Freud o princípio do thánatos que acompanha o eros que convive em cada ser humano. O thánatos emerge como aquela pulsão que leva à violência, à destruição e, no termo, à morte. Temos a ver com o Negativo na condição humana ao lado do Positivo e do Luminoso que, assim o cremos, irão finalmente triunfar.

É conhecida a troca de cartas entre Freud e Einstein sobre a possibilidade da superação da violência e da guerra, ainda nos idos de 1932. Freud respondeu que é impossível diretamente superar o thánatos somente reforçando o princípio do eros através de laços emocionais e pelo trabalho humanizador da cultura (cf. Obras completas III:3,215). Mas termina com uma frase desoladora: ”esfaimados pensamos no moinho que tão lentamente mói que podemos morrer de fome antes de receber a farinha”.

Ambos os princípios para Freud possuem algo de eterno e deixa em aberto qual princípio escreverá a última página da vida. Mas o princípio do thánatos pode em momentos da história impregnar todo um povo e inundar a consciência de seus líderes produzindo tragédias histórico-sociais.

Estimo que estamos assistindo à emergência terrível do thánatos em estratos importantes da nossa sociedade que ganhou corpo numa figura histórica que exalta a tortura, os ditadores ferozes, distribui armas e se mostra insensível à morte de milhares de seus compatriotas, incapaz de palavras e gestos de solidariedade às milhares de famílias que veem seus entes queridos sendo levados, anônimos, sem os ritos sagrados da despedida e do velório. Nossa sociedade atual possui elementos claros demenciais, em pessoas e em largos estratos da sociedade, afeitos às calúnias, às difamações, inclusive montadas em igrejas que usam e abusam do nome de Deus. Mas tudo isso ganha exemplaridade da figura sinistra e, não raro, ridícula do atual chefe de Estado.

Estes comportamentos mostram igualmente o princípio demens presente junto com o sapiens no ser humano. Vivemos numa civilização mundializada que está sob o domínio do demens. Basta lembrar os 200 milhões de mortos nas guerras dos últimos dois séculos e do princípio de autodestruição já montado com armas nucleares, químicas e biológicas, capazes de pôr fim à vida humana e à nossa civilização, tornadas tais armas ineficazes e ridículas pelo Covid-19.

Esse princípio de demência se mostra claro pelos assassinatos intencionados de negros, pobres e outros com outra opção sexual e um nefasto feminicídio. Tudo isso é chancelado por um presidente com claros sintomas de psicopatia, vergonhosamente tolerado por aquelas autoridades que poderiam e deveriam por crimes de responsabilidade social, denunciá-lo, fazê-lo renunciar ou democraticamente submetê-lo a um impeachment jurídico. Talvez elas mesmas sejam já infectadas pelo vírus do demens, o que explicaria sua leniência e culposa omissão.

O sentido de nossa disquisição possui este significado: tudo o que estava oculto e reprimido em nossa sociedade saiu dos porões onde por séculos se havia ocultado na vã tentativa de negá-lo ou torná-lo aceitável socialmente, até de pintá-lo roseamente, como o fazem vários ministros mentirosos que chegam a ver um ganho na escravidão e no estado colonial. Mas basta um pouco de luz para desfazer esta densa escuridão. Agora se tornou visível e solar. Não há mais como escamoteá-la.

Somos uma sociedade contraditória onde encontramos, ao mesmo tempo, brilhantismo na ciência, na literatura, nas artes plásticas, na música e na riquíssima cultura popular, geralmente feita à revelia de toda a opressão e do mainstream e em tantos outros campos. E ao mesmo tempo, somos uma sociedade que internalizou o opressor, se fez eco da voz dos donos, conservadora e até atrasada quando comparada com países semelhantes ao nosso. Num certo sentido somos cruéis e sem piedade para com nossos compatriotas atingidos pelas maldades perpetradas pelos estratos ultraendinheirados e faltos de qualquer sentido de compaixão para com os milhões caídos na estrada sem nenhum samaritano que se compadeça deles. Passam ao largo sem vê-los e o que é pior, desprezando-os como se não fossem da mesma nação ou da mesma família humana.

Esses ainda se confessam cristãos sem terem nada a ver com a mensagem do Mestre de Nazaré. Os ateus éticos e humanitários estão maia próximos do Deus de Jesus, da ternura dos humildes e defensor dos humilhados e ofendidos, do que estes cristãos meramente culturais que usam o nome de Deus para defender suas nefastas políticas individualistas ou corporativas de um Brasil só para eles. Eles estão longe de Deus por negarem os filhos e filhas de Deus, chamados pelo Juiz supremo de “meus irmãos e irmãs menores” sob os quais ele mesmo se escondia e que serão feitos juízes.

Tem muito de verdade o que escreveu a filósofa Marilena Chaui: “A sociedade brasileira é uma sociedade autoritária, uma sociedade violenta, possui uma economia predatória de recursos humanos e naturais, convivendo com naturalidade com a injustiça, a desigualdade e a ausência de liberdade e com os espantosos índices das várias formas institucionais – formais e informais – de extermínio físico e psíquico e de exclusão social e cultural” (500 anos – Cultura e política no Brasil, n.38, p.32-33). O sonho idílico de Darcy Ribeiro de o Brasil se tornar a Roma tardia e tropical se esvanece nas “vastas sombras”, como diz o Papa Francisco na Fratelli tutti (cap. I). Celso Furtado, entristecido, no final da vida escreveu todo um livro: Brasil: a constrção interrompida (1993).

Todas estas nuvens escuras se condensaram nos últimos anos e ganharam seus sacerdotes e acólitos que as assumem conscientemente, querendo levar o Brasil aos tempos pré-modernos. Se os levassem pelo menos à Idade Média, que tinha suas grandezas desde as majestosas catedrais às grandes sumas teológicas. O Brasil deste projeto retrógrado e irrealizável se tornou uma grotesca farsa e uma irrisão internacional.

O conjunto destas sombras vastas e o domínio do Negático se adensaram na figura do atual chefe de Estado e de seu governo, associado ao seu projeto. Ele é a consequência desta anti-história e sua mais perversa corporificação. Representa o que de pior ocorreu em nossa história e consciente ou inconscientemente tenta dar-lhe o acabamento final. Mas não o conseguirá porque jamais na história os mecanismos de morte e de ódio lograram realizar seu intento, sequer Hitler com todo o seu poderio militar e científico conseguiu lançar ao fundamentos de um Reino de Mil Anos.

Mais vigora um lado positivo desta minha leitura de nossa história. A irrupção destas sombras coletivas nos trouxe claramente o desafio de rejeitar a dependência e concluir a refundação já iniciada há décadas por uma plêiade de políticos patrióticos, por uma gama de intelectuais de primeira grandeza e por dezenas de movimentos sociais de todo tipo. Se não aproveitarmos a presente situação da pandemia que nos colocou a todos na reclusão de um retiro existencial, social e político para pensarmos que Casa Comum queremos construir para habitarmos juntos nela e qual é o lugar do Brasil nessa emergente fase da planetização, seremos condenados a nos tornarmos um país de párias, omitindo-nos na missão de contribuirmos poderosamente na configuração desta Casa Comum, graças à nossa incomensurável riqueza de bens e serviços naturais, necessários para a subsistência da humanidade e da continuidade de nossa civilização.

Os processos históricos não são cegos e sem destino. Eles guardam um Logos secreto que vai conduzindo o rumo das coisas em consonância com o processo da cosmogênese e gera, do meio do caos, ordens superiores com novas possibilidades e horizontes insuspeitados. Qual será nosso lugar, como povo e como nação, no conjunto de todos esses processos? Eles marcam a direção mas quem tem que percorrê-la e construí-la somos todos nós. Não nos é permitido preguiçosamente pisar nas pegadas já feitas. Temos que fazer as nossas pegadas.

Oxalá estejamos atentos ao que a história, apesar do reacionarismo e neofascismo de Bolsonaro e de seus seguidores, nos exigirá. Como outrora dizia Platão: “todas as coisas grandes procedem do caos”. As nossas poderão ter a mesma origem.