segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Paisagem brasileira


Velho Solar Bandeirante aos pés do Pico do Jaraguá,  Innocêncio Borghese


Ambiente de dor, sem nenhuma flor

A exaustão do dia a dia, em que o horror da corrupção público-privada desponta a cada instante, afasta-nos do essencial e faz com que a confusão nos domine e nos iluda. Dias atrás, a informação de que o lucro líquido da Companhia Vale do Rio Doce no terceiro trimestre do ano ultrapassou a cifra de R$ 7 bilhões, quatro vezes maior que o do mesmo período de 2016, foi festejada por todos. Êxito assim, na maior mineradora do País (uma das três grandes do planeta), apontaria para a recuperação interna da indústria e da nossa capacidade exportadora.

O que vale mais, porém: o lucro ou a vida da natureza? Nessa dinheirama orgiástica, onde fica o triste episódio da Samarco?

O mato já começa a tomar conta das ruínas do vilarejo de Bento Rodrigues.

É impossível dissociar o lucro monumental e acelerado de agora da tragédia de 6 de novembro de 2015, provocada pelo desdém da subsidiária da Vale que esterilizou (ou assassinou) o rio que deu nome à empresa e transformou em deserto milhares de hectares em Minas Gerais e no Espírito Santo. Nos últimos 150 anos, na ânsia de sugar as riquezas do planeta, nós, humanos, iniciamos uma devastação que supera tudo o que os acidentes naturais, ou provocados, destruíram ao longo de milhares de séculos. O caso da Samarco (que o farisaísmo chama de “acidente”) foi um desses crimes concretos delineados e arquitetados pela desídia provocada pela cobiça.

Há 22 réus, nenhum deles preso. As multas bilionárias impostas à empresa jamais serão pagas e acabarão prescrevendo ao longo dos intermináveis recursos judiciais, como sempre.

Mas, se os responsáveis fossem presos e as multas pagas, isso por acaso resolveria o dano ecológico e poria fim ao horror? A lama ácida que impermeabiliza o leito do rio e polui o mar desapareceria?

As baleias jubarte estavam junto à foz quando a lama chegou ao oceano e, logicamente, foram atingidas. A contaminação infestou Abrolhos, a 800 quilômetros ao sul, santuário de corais com mais de mil anos, onde bilhões de peixes se refugiam dos predadores.

Quase no mesmo dia do final de outubro em que o programa de televisão Globo Repórter mostrou cenas e depoimentos concretos sobre a tragédia ecológica da Samarco, um parecer da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, tocou noutro horror com impacto direto na saúde e no meio ambiente. Apontou como “inconstitucionais” os benefícios fiscais e isenções de tributos concedidos aos agrotóxicos por um decreto de 2011 da então presidente Dilma Rousseff.

Discriminatório e afrontoso, o decreto concede aos agrotóxicos isenção total do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e reduz em 60% a base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

Assim, pesticidas conhecidos universalmente como daninhos ou perigosos à vida humana, à flora e à fauna foram elevados a um patamar de benefícios em que não estão sequer medicamentos essenciais no combate a doenças (como certos tipos de câncer) provocadas pelo uso ou manejo dos próprios agrotóxicos.

A procuradora concordou com ação em que o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) pediu, há anos, que o Supremo Tribunal declare a inconstitucionalidade do decreto de Dilma. E sublinhou que, “ao fomentar e intensificar o uso de agrotóxicos, o Estado descumpre as tarefas de preservação do meio ambiente e afronta diretamente os princípios constitucionais” relativos à preservação da saúde e da vida.

Desde 2009 o Brasil é o maior consumidor mundial de pesticidas - mais de 1 milhão e 200 mil toneladas anuais, equivalente a 5,23 quilogramas por habitante. O uso intensivo de alguns, como o paraquat (proibido na Europa), são letais e não têm antídotos. O paraquat foi interditado e proibido também aqui, mas pode ser comercializado ainda por três anos mais... A Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou o herbicida glifosato e os inseticidas malationa e diazinona como “agentes causadores de câncer em humanos”, mas aqui são de uso corrente. Usados em pulverizações aéreas, espalham-se pelo vento e infestam lavouras ou fazendas que não os utilizam, além de povoados inteiros.

Governantes e parlamentares recitam loas “em defesa do meio ambiente”, verbalizando uma inverdade distante do que fazem ou propõem. Um projeto de lei de 2012, do então senador Blairo Maggi (atual ministro da Agricultura), já aprovado no Senado, libera o uso indiscriminado de agrotóxicos e faz com que sejam considerados benéficos à agricultura e à vida. Impede de chamá-los de pesticidas ou agrotóxicos e institui a denominação de “fitossanitários”, com o que passariam a ser vistos como fundamentais à sanidade vegetal...

O absurdo vai além e contraria o que a própria ciência adverte há anos. Proíbe-se o desenho da caveira, hoje utilizado nos recipientes dos pesticidas (tal qual nos cigarros) para advertir sobre seu uso contínuo. Para coroar o absurdo, o projeto de lei exclui a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Ibama de classificarem os produtos.

Se a Câmara dos Deputados imitar o Senado e aprovar o projeto de lei de Blairo Maggi, seremos o primeiro país do mundo em que a magia burocrática “corrige” as advertências da ciência e transforma o ruim em bom, como as bruxas dos contos infantis.

Não falta ambiente para isso: a bancada ruralista é bloco coeso que não oculta o que quer. Em outubro, o presidente Temer assinou decreto transformando 60% das multas ambientais ainda não pagas (mais de R$ 4,6 bilhões) em “prestação de serviços”, um difuso jogo de aparências que não toca no bolso do autor do crime. Vivia-se, então, o auge das trocas de favores para que a Câmara impedisse que o Supremo investigasse o presidente da República, num escambo típico da nossa triste política.

Nesse ambiente de lama e dor, poderá surgir alguma flor?

Quatro gotas no oceano de insanidade

Nesta virada de outubro para novembro do ano da graça de 2017, milhões de brasileiros imaginaram que o feriadão de Finados (com a consequente desativação dos três Poderes) lhes permitiria descansar por uma semana dos absurdos que inundam diariamente o noticiário jornalístico. Erraram de novo. A folga foi para o espaço a bordo de maluquices que deixaram desconcertados até os napoleões-de-hospício. Confiram quatro gotas no oceano de insanidade que vive ameaçando engolir o país:

1. Luislinda Valois, chefe da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, produziu um documento com mais de 200 páginas para corrigir o que considera uma gravíssima injustiça pecuniária. Ela acha que merece embolsar tanto o salário de desembargadora aposentada quanto o de vigia dos direitos humanos com status de ministra. Se fosse dispensada de obedecer à lei que manda optar por um dos salários, Luislinda passaria a ganhar mais de R$ 60 mil por mês. Como ganha pouco mais que a metade dessa bolada, a ministra apresentou-se como prova de que, apesar da Lei Áurea, existe pelo menos um caso de trabalho escravo até no primeiro escalão do governo Temer. Luislinda desistiu do pleito diante da gargalhada que só não foi nacional porque todas as entidades defensoras dos direitos dos afrodescendentes preferiram refugiar-se na cara de paisagem.



2. Geddel Vieira Lima, que exerce desde a infância o ofício de delinquente, solicitou ao Supremo Tribunal Federal a identificação do autor da denúncia que levou à descoberta dos mais de R$ 50 milhões guardados num prédio em Salvador. A ideia do inventor do apartamento com vista para o mar de dinheiro roubado só serviu para confirmar que no faroeste à brasileira o vilão é que persegue o mocinho.

3. Sérgio Cabral, recordista mundial de ladroagem em extensão, altura e abrangência, foi previsivelmente salvo por Gilmar Mendes da mudança para um presídio atulhado de criminosos que, perto do saqueador do Rio, parecem coroinhas que só furtam o vinho do padre. Continua hospedado no hotel-presídio que lhe oferece, entre outras mordomias cinco estrelas, até os serviços de um mordomo.

4. Numa discurseira em Belo Horizonte, Lula prometeu trazer de volta ao Brasil a democracia que está por aqui desde 1989, responsabilizou Michel Temer pelo que o orador e sua sucessora fizeram, exigiu um tratamento mais carinhoso para a Petrobras que assaltou e jurou que tanto a alma viva mais pura do país quanto a falecida Marisa Letícia não nasceram para roubar — verbo que conjugaram incessantemente depois da chegada à vida adulta.

Tom Jobim ensinou que o Brasil não é para amadores. Começa a tornar-se demasiadamente esquisito para os mais devotados profissionais.

Um lugar perigoso

Ciro Gomes decretou que as eleições de 2018 serão uma brincadeira de meninos. Marina fica fora do jogo por falta de testosterona. Jogo agressivo, coisa de macho. Discursava para empresários, falando grosso. Será que alguém riu? Ou protestou? Ou passou despercebida essa manifestação — Ciro, de novo — de machismo explícito?

Resultado de imagem para mundo perigoso para mulheres

Outro pretendente à Presidência da República, parlamentar, disse à deputada Maria do Rosário que não a estupraria porque ela não merecia. Uma agressão que foi parar no Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro virou réu, mas seus possíveis eleitores aumentaram.

Enquanto o Brasil caminha, célere, de volta à Idade da Pedra, no país de Donald Trump, notório predador, um poderoso produtor de Hollywood, campeão de premiações no Oscar, foi apeado de seu trono cinematográfico quando atrizes famosas denunciaram uma prática bem conhecida das mulheres. Harvey Weinstein cobrava propinas sexuais para deixar que essas atrizes ascendessem ao estrelato. A antessala do sucesso era o quarto de hotel do produtor.

Agora, que elas ousaram falar, abriram-se as comportas de um mar de ressentimentos até então represados, que inundaram a imprensa mundial. As francesas ecoaram o protesto das americanas e publicaram na internet milhares de depoimentos sobre situações vividas de assédio, agressões sexuais e estupros. Passada a fase de catarse virtual, foram para a rua. A jornalista Carol Galand, que convocou a manifestação no asfalto, disse que queria fazer uma coisa diferente de uma zoeira nas redes sociais.

Com esses milhões de cacos de vida, vai-se compondo o puzzle perfeito do que é o achincalhe e a violência sexual que, no mundo inteiro, ameaçam as mulheres moral e fisicamente. Essa denúncia, que viralizou nos Estados Unidos e na França, ganhou as ruas e muda uma situação imemorial e global. Quebrou-se o silencio que garantia a impunidade, acabou o medo.

Por um estranho mecanismo gerado na experiência vivida, as mulheres transformavam as agressões que sofriam em sentimento de culpa. Como se de alguma maneira elas provocassem essas agressões, o que lhes foi tantas vezes repetido, sobretudo nas delegacias quando denunciavam casos de estupro e eram acusadas de provocar com as roupas que usavam o estuprador, transformado em vítima de uma irresistível sedutora.

O mesmo acontecia nos casos de assédio sexual. Essa chantagem que paira sobre as mulheres se revela na atitude de empregadores que despedem não quem assedia e, sim, quem é assediada. Na França das liberdades e dos direitos humanos assim foi em 95% dos casos em que mulheres denunciaram seus chefes. O mito da mulher sedutora que desgraça um homem é tão velho quanto Adão e Eva.

As propinas sexuais cobradas por quem tem autoridade sobre as mulheres são uma forma de prostituí-las. Envenenam e muitas vezes invalidam os projetos profissionais daquelas que dizem não. Levantam suspeitas sobre o sucesso profissional das mulheres. Que preço teriam pago?

Esse clima perverso, de promessas, ou o seu avesso, de ameaças veladas ou não, alimentam uma cumplicidade masculina que começa em piadas e comentários jocosos e termina em conivência com as atitudes mais vis. Essa cumplicidade é constitutiva da relação de poder dos homens sobre as mulheres, um fator de humilhação e intimidação que pode atingir qualquer uma, em qualquer idade ou classe social.
A quebra do silêncio torna irrefutável a gravidade de um escândalo mundial: o assédio e a violência sexual ainda são absolvidos pela cultura, mesmo quando proibidos pela lei.

O Conselho Nacional de Justiça divulgou que em 2016 tramitaram nos tribunais mais de um milhão de processos referentes à violência doméstica contra a mulher. Um processo para cada cem mulheres brasileiras. Ao longo do ano passado tramitaram na Justiça mais de 13 mil casos de feminicídio, o assassinato da mulher por ódio, desprezo ou perda de controle sobre ela. O Anuário de Segurança Pública registrou 45.500 casos de estupro em um ano. Cifras de uma guerra suja e covarde.

Dar um basta nessa aberração é um imperativo civilizatório. A violência contra as mulheres não é um hábito doentio que o tempo e a impunidade transformaram em direito não dito. Não pode ser naturalizada, degrada a todos. É um crime contra a humanidade.

Assédio sexual, violência doméstica, estupro, feminicídio são gradações de uma mesma evidência: na segunda década do século XXI, a dignidade das mulheres ainda é uma abstração negada na vida real. O mundo é um lugar selvagem e perigoso para o sexo feminino.

Rosiska Darcy de Oliveira