sexta-feira, 15 de março de 2019

A idade da ira

Há momentos em que aumenta o fosso entre o especialista, seguro de seus conhecimentos, e o cidadão comum, cuja experiência de vida não corresponde ao que os dados mostram. Essa brecha pode ser perigosa porque os cidadãos acabam acreditando que estão sendo enganados, e não há nada mais devastador para a democracia do que essa desconfiança.


Um editor veterano do Financial Times, David Pilling, acredita que estamos vivendo em uma "era de ira", definida por uma reação popular desfavorável e a rejeição das instituições e ideais que antes eram apreciados, incluindo o próprio liberalismo ocidental. Muitas explicações contraditórias tentam interpretar o que tem causado essa ira popular em países que, a julgar pelas medições convencionais, nunca foram tão ricos. Em todos eles há um elemento comum: as pessoas não veem a realidade de sua vida refletida na narrativa oficial (A Ilusão do Crescimento, Alta Books).

A economia espanhola vem crescendo há vários anos seguidos, e na maioria dos casos acima dos principais países vizinhos (em 2018, cresceu 2,5%, e aguenta, surpreendentemente, em meio à desaceleração mundial). No entanto, a percepção de muitos cidadãos não corresponde de forma alguma a essa situação de crescimento de longo prazo porque eles não se beneficiam dele. Por exemplo: mais de um milhão de famílias que ainda não têm nenhum salário para sobreviver porque nenhum de seus membros está empregado. Alguns anos atrás, em um rompante de sinceridade, o então presidente francês, Nicolas Sarkozy, proferiu uma frase que serve para estes casos: "Uma das razões pelas quais a maioria das pessoas percebe que está pior, embora o Produto Interno Bruto (PIB) esteja crescendo, é porque está realmente pior."

Há analistas que acreditam que uma das razões pelas quais a crise econômica surpreendeu tantos por sua profundidade e duração é que os sistemas de medição falharam e os agentes de mercado e funcionários do governo não se fixaram no conjunto de indicadores apropriados. Em sua avaliação, nem os sistemas de contabilidade privada nem os públicos foram capazes de alertar a tempo, e não avisaram que o bom comportamento prévio da economia mundial poderia estar sendo alcançado à custa do crescimento futuro, e que parte desses resultados eram uma miragem, pois eram lucros baseados em preços inflados por uma bolha.

No livro citado, David Pilling se une às iniciativas que sugerem que o PIB é cada vez mais limitado para refletir o bem-estar de uma sociedade, e seria preciso criar um conjunto simples de medidas que reflitam as principais inquietações da nova economia (entre outras, medições da renda mediana, da pobreza, do esgotamento de recursos, etc). Por exemplo: quando ocorrem grandes mudanças no nível de desigualdade pode ser que o PIB, ou qualquer outro cálculo agregado per capita, não proporcione uma avaliação adequada da situação em que se encontra a maioria da população. Se a desigualdade aumenta muito em relação à expansão média do PIB, essa parcela de pessoas pode estar em uma situação pior, mesmo quando a renda média tiver crescido.

No Reino Unido de Tony Blair e David Cameron foram postos em prática projetos para medir o bem-estar, além do crescimento econômico. Mas definharam. Como também as recomendações da Comissão sobre a Medição do Desempenho Econômico e do Progresso Social, para a qual Sarkozy nomeou Joseph Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi.

Há também o Índice de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que introduz três dimensões fundamentais para o bem-estar: ter uma vida longa e saudável, adquirir conhecimentos e desfrutar de um padrão de vida decente.

Em seu bem-sucedido romance "Ordesa", Manuel Vilas escreve: "Quem dera pudéssemos medir a dor humana com números claros, e não palavras incertas. Quem dera houvesse uma maneira de saber o quanto sofremos e que a dor tivesse matéria e medição”.

Governar não é twittar

A Constituição, em seu artigo 79, estabelece que o vice-presidente da República tem apenas uma função relevante: substituir temporariamente o presidente, se este se encontrar doente ou em viagem, ou suceder-lhe, se o cargo ficar vago. No caso de doença, por exemplo, a função presidencial obviamente deve ser exercida pelo vice enquanto o presidente não estiver restabelecido a ponto de conseguir retornar ao trabalho. Há uma razão comezinha para ser dessa forma: a administração do País e a tomada de decisões do governo não podem depender da plena recuperação da saúde do presidente, que pode demorar dias ou até meses.

É preciso que haja alguém com autoridade constitucionalmente reconhecida no exercício do cargo para deliberar sobre os assuntos do governo e orientar os ministros. Do contrário, haverá indesejável paralisia administrativa - como a que o País assiste agora em razão da prolongada internação do presidente Jair Bolsonaro.

Inexplicavelmente, Bolsonaro reassumiu seu cargo apenas 48 horas depois de uma cirurgia de sete horas de duração, realizada no dia 28 de janeiro, para a reconstituição do intestino, atingido no atentado à faca que sofreu ainda na campanha eleitoral, em setembro do ano passado. Conforme os boletins médicos, a operação foi bem-sucedida, e a equipe que o atendeu estabeleceu inicialmente um prazo de dez dias para a recuperação do presidente, mas mesmo esse prazo se mostrou otimista demais. Jair Bolsonaro continuava internado duas semanas depois da cirurgia, período em que o presidente apresentou quadro de pneumonia e febre.

Nesse meio tempo, em vez de delegar suas funções para o vice-presidente Hamilton Mourão, conforme estabelece a Constituição e manda o bom senso, Bolsonaro julgou que poderia logo retomar a dura rotina presidencial - até mesmo uma espécie de gabinete foi montado no quarto do hospital para que ele pudesse despachar. No dia 31 de janeiro, Bolsonaro chegou a fazer uma videoconferência com um ministro e a telefonar para outros, mas logo teve de interromper esse trabalho por ordens médicas - o presidente não poderia nem sequer falar, que dirá encontrar-se com ministros e tomar decisões de Estado. O repouso deveria ser absoluto.

Está claro que, nessas circunstâncias, o vice Hamilton Mourão deveria ter assumido o cargo, pois há diversas decisões à espera do aval do presidente, como a formatação da reforma da Previdência, para ficar só na mais importante. No entanto, Bolsonaro optou por manter-se no cargo mesmo sem ter condições para isso.

Não se conhecem as razões de tal decisão, mas consta que os filhos de Bolsonaro, cuja opinião é determinante para o presidente, não se dão bem com o vice-presidente. O ruído entre eles ficou ainda mais acentuado quando Hamilton Mourão resolveu dar opiniões sobre temas caros aos Bolsonaros - disse, por exemplo, que era contra a mudança da Embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, uma promessa de campanha. Além disso, Mourão está tentando construir uma boa relação com a imprensa, contra a qual os filhos de Bolsonaro dedicam grande virulência. Em resumo, a relação do entorno do presidente com Mourão é de desconfiança. Num país em que tantos vices assumiram o cargo de presidente por vacância, isso tende a alimentar todo tipo de especulação.

Assim, o governo hoje é exercido por alguém sem condições de saúde para tal, sofrendo influência direta e ampla dos filhos - que não receberam um único voto para presidente nem ocupam cargos de ministros. O exercício da Presidência pelo vice-presidente deve respeitar o que diz a Constituição, e não o que ditam os filhos do presidente. Não se trata de uma questão familiar, mas institucional.

Bolsonaro precisa o quanto antes se dar conta de que não está mais em campanha, quando todos os problemas do País podiam ser “resolvidos” por meio de slogans digitados em redes sociais, sob orientação dos filhos. Governar é muito diferente de tuitar: demanda presença, articulação, lucidez - isto é, tudo o que Bolsonaro, convalescente e a reboque dos filhos e dos aliados mais radicais, ainda não conseguiu oferecer ao País.

Imagem do Dia


Paulo Guedes está conduzindo União, estados e municípios para um abismo

Aos poucos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, vai revelando sua incompetência para tirar o Brasil do buraco negro cavado por Lula da Silva e Dilma Rousseff e que Michel Temer e Henrique Meirelles não tiveram coragem de tentar preencher. Como czar da economia, Meirelles teve dois anos para achar uma solução, mas não ousou enfrentar os banqueiros e criou um paliativo, que só teria efeitos ao final de 20 anos, vejam a desfaçatez dessa gente. Até lá, duas décadas depois, Inês estará morta – diria o D. Pedro português – e o próprio Meirelles também já poderá ter feito sua passagem.

A crise necessita de solução hoje, aqui e agora, mas o dr. Guedes não quer fazer cirurgia, prefere remendar com esparadrapo. Primeiro, anunciou o fabuloso total de R$ 1,1 trilhão de economia na Previdência em dez anos, embora até lá Inês possa morrer de novo. Depois, o superministro começou a cair na real e viu que a reforma da Previdência não resolverá o problema. Passou então a criar novas alternativas.

Primeiro, Guedes anunciou que a União iria bancar/avalizar novos empréstimos aos governos estaduais, a serem obtidos junto a bancos estrangeiros, como Citibank, JPMorgan, BNP Paribas, Santander etc. A única exigência é de que os Estados deverão entregar um plano de contenção de despesas em quatro anos — coincidindo com o mandato do atual governador.

Nesse Plano B, a União autorizaria o governador a tomar emprestado o equivalente a cerca de 40% desse total a ser economizada. Ou seja, a solução mágica de Guedes é aumentar a dívida pública bruta, que já passou de todos os limites.

Mas o cobertor é curto e deixou de fora os municípios. O ministro então apresentou o Plano C, que é a desvinculação das receitas estaduais e municipais, cujos governos deixariam de cumprir as obrigações de gastar determinados percentuais em educação e saúde, por exemplo.

Governadores e prefeitos adoraram a ideia de desvinculação dos respectivos Orçamentos, que é chamada de “DRU geral”, numa referência à Desvinculação de Receitas da União. Segundo a jornalista Denise Rothenburg, do Correio Braziliense, quem mais gostou dessa proposta foram os prefeitos.

O governo pretende que a data da apresentação da emenda coincida com a nova Marcha dos Prefeitos a Brasília, de forma a unir forças pela aprovação da proposta, que na prática significará cortes nas verbas e deterioração nos serviços de saúde, educação e segurança. Mas quem se importa?

Note-se que Guedes não está solucionando nada. Como o presidente Bolsonaro confessa não entender de economia, o ministro tem liberdade total e aproveita para defender o mercado financeiro, está pouco ligando para os interesses nacionais.

Para enfrentar a crise, na verdade os cortes nos gastos dos governos estaduais e prefeituras teriam de incluir os três poderes, eliminando todas as gorduras nos níveis federal, estadual e municipal. Os seja, como não se pode mexer nos altos salários (direitos adquiridos), vamos primeiro deletar os penduricalhos e as mordomias.

Ontem, mostramos aqui na TI que há altíssimos salários dos empregados no Conselho Nacional de Justiça, acima do teto constitucional. Tem até “assistente” ganhando mais de R$ 25 mil.

Além disso, por que os juízes têm direito a carro com motorista e combustível liberado? Citem somente um motivo. E por que altos funcionários dos três Poderes têm direito a auxílio-refeição? É claro que esse benefício deveria ser concedido apenas a quem ganha muito pouco no serviço público.

Liberdade bem medida

A liberdade de manifestação de pensamento não se reveste de caráter absoluto
Celso de Mello, ministro do STF

Para ir se acostumando

Na boa teoria política, a democracia como “autogoverno do povo” não passa de um mito, mesmo nas revoluções clássicas (Revolução Inglesa, Revolução Francesa, Independência dos Estados Unidos e Revolução Russa). O protagonismo popular somente é absoluto no momento do voto, embora nunca antes a participação da sociedade no processo político tenha sido tão ampliada como agora, por causa das redes sociais. Ocorre que a internet também é um instrumento de manipulação da opinião pública e um terreno de disputa no mundo da comunicação, no qual a verdade muitas vezes é a primeira vítima, como no caso da tuitada de Bolsonaro contra a repórter Constança Rezende, do Estadão. Não vamos nem falar de robôs e fake news.

Quem governa — no sentido de tomar as decisões que se impõem a todos — é sempre uma minoria ou alguns grupos minoritários em concorrência entre si. As minorias organizadas e resolutas acabam controlando o poder e suas decisões. É por isso que o jurista italiano Norberto Bobbio recomendava o estudo de como essas “minorias emergem, governam e caem”. Segundo ele, as classes políticas se dividem entre as que “se impõem” e as que “se propõem”. O poder conferido a uma minoria dirigente nas eleições não é irrevogável, mas concedido sempre a título provisório. O perigo de deixar o poder subir à cabeça é perder essa perspectiva de transitoriedade, até porque mandatos são o recurso mais escasso de um governo, um tesouro cuja medida é o tempo, ou seja, que se esvai a cada dia.


A relação entre “se impor” e “se propor” é binária, mas somente nos regimes autoritários a primeira predomina sobre a segunda; na democracia, existe alternância de poder, como agora, e direito ao dissenso, ou seja, liberdade para a crítica e a oposição política aberta. por isso, o “já ir se acostumando” tem mão dupla. O governo precisa desmobilizar suas tropas de assalto e tratar com mais competência da ocupação do poder, porque as demandas da sociedade são materiais (saúde, educação, segurança, transporte, moradia, emprego). Uma visão salvacionista ou messiânica de natureza ideológica se esgota no cotidiano da vida real, ainda que se reproduza no mundo virtual. A oposição também precisa fazer uma avaliação mais profunda sobre a mudança de correlação de forças na sociedade que determinou sua derrota, o anacronismo de suas propostas econômicas e políticas em relação à realidade e a necessidade de repensar a própria atuação, antes de sonhar com a desestabilização do governo. Foi derrotada na sociedade, tem um longo caminho a percorrer até as próximas eleições.

No mundo real, porém, o governo Bolsonaro enfrenta dois problemas que não têm nada a ver com a oposição: uma disputa intestina entre as “tropas de assalto”, que venceram as eleições, e as “tropas de ocupação”, os quadros com competência técnica para fazer o governo funcionar; e a incapacidade, até agora, de organizar uma base de apoio robusta no Congresso para aprovar as propostas disruptivas do governo, a começar pela reforma da Previdência. É aí que entra em campo o que Bobbio chamava de “subgoverno”, as agências governamentais que exercem funções essenciais de Estado — arrecadar, normatizar e coagir — e funcionam no piloto automático, quanto maior for a bateção de cabeça entre os novos ocupantes do poder. Essas agências não somente operam os mecanismos que dão sustentação orgânica ao Estado como se relacionam com outros atores da elite dirigente, no Congresso e no Judiciário, a partir dos seus próprios interesses, que muitas vezes são contrários aos da sociedade. Ainda mais no Brasil, cujo Estado é anterior à formação da Nação e teve seu controle dividido entre as oligarquias políticas, os estamentos estatais e as corporações profissionais. Geralmente, é o choque entre essas minorias que leva ao fracasso os governos.

Barroso escancarou o estrago da decisão do STF

O Supremo Tribunal Federal deu uma paulada na Lava Jato. Desceu o porrete ao decidir, por 6 votos a 5, que os processos devem ser enviados à Justiça Eleitoral quando crimes como corrupção e lavagem de dinheiro estiverem associados à prática de caixa dois. Luís Roberto Barroso, um dos ministros que ficaram vencidos no julgamento, dimensionou o tamanho do estrago. "É difícil de entender. E é difícil de explicar para a sociedade por que estamos mudando uma coisa que está funcionando bem para o país."

Além de ocupar um assento no plenário do Supremo, Barroso é vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Foi ostentando essa condição que o ministro declarou: "As estatísticas de condenação criminal pela Justiça Eleitoral são pífias." Segundo ele, o ramo eleitoral do Judiciário não está aparelhado para julgar causas criminais. "Nós vamos transferir para essa estrutura inexistente a competência para enfrentar a criminalidade institucionalizada no Brasil, quando esteja associada a delitos eleitorais. Penso que não seja uma transformação para melhor."


Num instante em que a Lava Jato passa a ladroagem no bisturi, o Supremo decidiu receitar um colírio para os larápios
Luís Roberto Barroso, ministro do TF


Barroso não desmerece o braço eleitoral do Judiciário. Ele apenas reconhece que a Justiça Eleitoral não é a mais equipada para enfrentar a criminalidade comum. O ministro recorreu a uma analogia médica para explicar o seu ponto de vista: "Afirmar que um grande oftalmologista não é o profissional indicado para fazer uma cirurgia de fígado não significa desmerecer a grandeza do oftalmologista. Significa, ao contrário, assegurar que ele continuará a cumprir bem a missão para a qual está preparado."

O que Barroso declarou, com outras palavras, foi mais ou menos o seguinte: "Num instante em que a Lava Jato passa a ladroagem no bisturi, o Supremo decidiu receitar um colírio para os larápios." Ao resumir o que está por vir, o ministro apresentou os resultados da Lava Jato como uma pintura que marca uma espécie de renascimento na restauração dos costumes no país. Na sequência, referiu-se à decisão que prevaleceria no Supremo como se falasse de um borrão.

Primeiro a pintura: "Pela primeira vez na história do Brasil nós vínhamos obtendo resultados concretos, efetivos contra a corrupção. O movimento contra a corrupção começa aos poucos a produzir o principal papel do direito penal, que é o de funcionar na prevenção geral — as pessoas não delinquirem pelo temor de que vão ser efetivamente punidas."

Mais pintura: "As ações do Ministério Público Federal perante a Justiça Federal levaram à condenação inúmeros saqueadores do Estado brasileiro. Um modelo de competência da Justiça Federal que tem dado certo, tem sido replicado. E vem ampliando com sucesso a repressão à criminalidade institucionalizada no Brasil."

Agora, o borrão produzido nesta quinta-feira: "Aí, então, uma das coisas que estão dando certo no Brasil, neste momento em que tanta coisa anda errado, nesse momento em que tem uma coisa que está dando certo, vem o Supremo e muda. E passa para uma justiça (eleitoral) que não tem expertise no tratamento de questões penais. E menos ainda no enfrentamento criminal da corrupção.&quot

Túnel do Brasil


Memórias da milícia

Se a longa história da palavra tivesse a duração de uma partida de futebol, só aos 43 minutos do segundo tempo "milícia" ganharia o sentido que inunda o noticiário policial e se infiltra no político.

Ao desembarcar no português do século 14, tinha a acepção que herdara do latim "militia": campanha de guerra, serviço militar. Logo surgiria uma distinção entre miliciano e militar, uma rusga no seio da família do patriarca latino "miles" (soldado).

A distinção era semântica e de classe. Formada por cidadãos informalmente armados, não por profissionais, às vezes nem dinheiro para comprar garruchas a milícia tinha. Ficava bem abaixo dos militares na pirâmide social.

Consta que o sentido de força auxiliar de segurança surgiu no século 17 no francês "milice": "tropa de cidadãos recrutados nas comunidades para reforçar o exército regular". Recrutados por quem?


Pelo Estado, claro. As milícias tiveram na Revolução Francesa e nas guerras de independência do Novo Mundo um viés libertário, mas o Estado sempre deu um jeito de se apropriar de seu ardor.

Preservada em formol, aquela rebeldia original sustenta o direito às armas consagrado na Segunda Emenda à Constituição americana --relíquia do tempo do mosquetão na era do AR-15.

Findos os tumultos de outrora, a história tendeu ao estabelecimento de Estados nacionais garantidores de ordem interna. É verdade que às vezes se dá o oposto, mas desde então, na maioria das ocasiões, o cidadão ocidental médio tem feito escolhas políticas que acredita capazes de lhe garantir paz para tocar a vida sem precisar matar uma mosca.

Assim, domesticadas no século 19 como guardas nacionais e forças auxiliares, as milícias tiveram em diversos países uma carreira oficial, ainda que subalterna. No caso brasileiro, o papel de polícia constava entre suas funções --na manutenção da "ordem pública" e na captura de escravos fugidos, por exemplo.

Quando, em 1918, o sociólogo Max Weber definiu o Estado como o detentor do monopólio da violência, as milícias já vinham sendo descartadas como elementos de política de segurança em todo o mundo.

Transmutaram-se em burocráticas forças policiais, do lado civil, ou foram extintas, do lado militar. Se a Segunda Emenda preserva o espírito miliciano setecentista, seu colega brasileiro do século 19 mora no título do clássico "Memórias de um Sargento de Milícias" (1854), de Manuel Antônio de Almeida.

Órfã do Estado, a milícia voltou no século 20 a velhas zonas de voluntarismo e ilegalidade. Às vezes em sentido figurado, passou a designar grupos de militantes de causas variadas.

Essa é a história geral. A milícia brasileira do século 21 é diferente, específica. Diz o dicionário "Houaiss": "grupo armado de pessoas, geralmente com formação militar, paramilitar ou policial, que atua à margem da lei em algumas comunidades carentes, pretensamente para combater o crime".

O dicionário informa ainda que a acepção surgiu em torno de 2007 (há registro dela dois anos antes em reportagem de "O Globo") e que se trata de um uso carioca (hoje nacionalizado).

Como a diferença faz fronteira com a semelhança, as milícias de hoje ecoam as de antigamente na função de polícia, na opressão aos descendentes daqueles mesmos escravos e no apoio discreto --ou nem tanto-- recebido de um Estado degradado que acha boa ideia abrir franquias daquilo que, como ensinou Weber, é sua própria razão de ser.

Ato falho



Onde o Estado brasileiro está, dificilmente as coisas dão certo
Presidente Jair Bolsonaro

Caso Marielle, uma investigação radioativa para os Bolsonaro

Um dos acusados de ter participado diretamente da execução de Marielle Franco foi preso nesta terça-feira ao sair de sua casa na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, que fica no mesmo complexo de alto padrão onde Jair Bolsonaro possui residência. Até o momento, nas palavras das promotoras à frente do caso, trata-se de uma coincidência. Assim como é irrelevante até agora, disse uma das integrantes do Ministério Público do Rio, o fato de que um dos filhos do presidente tenha namorado a filha do vizinho policial reformado —que as autoridades acusam de ter atirado com precisão na cabeça da vereadora em março de 2018.

Os detalhes do cruzamento de personagens mostram, pelo menos, como a elite do Rio compartilha ambientes, sabendo ou fazendo vista grossa, com atividades suspeitas. Os dados também são, por óbvio, irresistíveis para os críticos do presidente da República, que replicaram uma foto do mandatário com o apontado como coautor material do crime e puseram fogo na repercussão do caso nas redes sociais. Esse jogo de conclusões apressadas e muita batalha política os Bolsonaro conhecem como ninguém.

Essa pode permanecer apenas como a faceta mais anedótica da investigação, mas há, no entanto, motivos mais profundos pelos quais o caso Marielle se tornou radioativo para os Bolsonaro. Um deles é de ordem política e de responsabilidade exclusiva do presidente e de sua família. Quando Marielle e seu motorista Anderson Gomes foram assassinados, há um ano, Bolsonaro foi o único presidenciável a não comentar ou condenar a execução, um crime que cruzou a linha vermelha da violência política no Brasil antes mesmo do atentando contra o agora o presidente. Um dos filhos do mandatário também criticou duramente quem levantava suspeitas sobre policiais. Não foi exatamente uma surpresa. Em 2011, o então deputado estadual Flávio Bolsonaro achou oportuno frisar, por exemplo, que a juíza Patrícia Lourival Acioli, executada após viver anos como jurada de morte por grupos de extermínio, gostava de "humilhar policiais".

Se o histórico de defender, a priori, PMs acusados de assassinatos e discursos no mínimo complacentes com as milícias jogam a repercussão do caso no colo do Governo e da família presidencial, falta ainda o desdobrar da parte mais delicada da investigação: rastrear os possíveis mandantes. As promotoras Simone Sibílio e Letícia Emile Petriz deixaram claro nesta terça que segue em curso, e sob sigilo, a parte da investigação que apura o papel na execução do Escritório do Crime, um sofisticado grupo de extermínio ligado a milícias e contraventores. Um dos apontados como integrante do grupo, Adriano Nóbrega, que está foragido desde janeiro, tinha duas parentes lotadas no gabinete de Flávio Bolsonaro até o segundo semestre de 2018. Tanto ele quanto Ronald Pereira, outro acusado de participação no Escritório do Crime, foram homenageados na Assembleia Legislativa do Rio à petição do primogênito de Bolsonaro. "Espero que realmente a apuração tenha chegado de fato a esse, se é que foram eles os executores, e o mais importante, quem mandou matar", limitou-se a dizer Bolsonaro, que também afirmou que posa para fotos com "milhares" de policiais.

Nas declarações das promotoras, e em reportagens elucidativas como a da revista Piauí, fica evidente como tudo caminha em um campo minado em um Estado do Rio infiltrado pelo crime organizado. O retrato é bastante gráfico: ex-governadores atrás das grades, um terço da Assembleia Legislativa também, uma segurança pública em colapso que passou por um ano de intervenção militar com resultados fracos. Nesta terça, as promotoras fizeram questão de dizer que os acusados presos confessaram que foram avisados da operação. A reportagem da Piauí narra também como Sibílio e Petriz tentaram evitar ao máximo o vazamento da operação que tentaria prender a cúpula do Escritório do Crime em janeiro, mas sem êxito total: Nóbrega escapou. Há incômodo claro entre Polícia Civil e Promotoria, enquanto também é desconcertante saber que foi apenas meses depois da investigação começada que a unidade responsável pelo crime organizado no MP, o Gaeco, finalmente entrou no caso. A investigação é alvo ainda da apuração paralela e tardia da Polícia Federal. Merece discussão os motivos pelos quais a procuradora-geral Raquel Dodge não buscou ativamente, ao contrário do que sinalizou no início, a federalização do caso, o que de resto também não foi defendido pela cúpula do PSOL. Agora, resta à PF tentar buscar dentro das corporações quem tem interesse em bloquear a apuração. É pertinente outra pergunta: terá independência para fazê-lo?

A vereadora do PSOL, com seu rosto estampado em murais, se inscreveu de maneira trágica e decisiva no imaginário político brasileiro (a potência e as implicações disso, inclusive para algum incômodo da esquerda tradicional, fica para outra hora). Do ponto de vista da investigação, é agora que começa a parte mais delicada. Tudo remete a um país corroído por dentro e não é exagero dizer que o desfecho que formos capaz de dar ao caso Marielle será determinante para o futuro.

Fraternidade e política

A cada ano, desde que na década de 60 o arcebispo d. Hélder Câmara lançou a Campanha da Fraternidade, a Igreja Católica apresenta para debate e mobilização da sociedade um tema que exige fraternidade para ser solucionado. A campanha torna mais visíveis problemas tais como pobreza, desigualdade, violência, depredação ambiental. Esses problemas passam a ser encarados não apenas pelo lado social, econômico e político, mas também sob a ótica comportamental da necessária fraternidade.


Neste ano, a campanha trouxe o oportuno tema da relação entre fraternidade e políticas públicas. Poderia ser “fraternidade e política”, para chamar a atenção de que não deveria haver prática política sem sentimento de fraternidade. A opção de uma pessoa pela atividade política só deveria ser justificada por um espírito missionário de fraternidade com o povo, especialmente os pobres, os excluídos, os perseguidos, os que sofrem preconceitos, aqueles que não têm acesso aos bens e serviços necessários a uma vida digna.

O político deveria sofrer junto com o povo e concentrar seus esforços para suprir as necessidades da população. Lamentavelmente, na maioria dos casos, o que se vê é o contrário: sem espírito de fraternidade, as pessoas optam pela atividade política buscando o aproveitamento, a locupletação e o enriquecimento pessoal, sob a forma de mordomias, privilégios e até o roubo de dinheiro público.

Isso é visível naqueles que buscam ser eleitos para cargos políticos, sem compromisso com a fraternidade; também entre eleitores que votam em busca de alguma vantagem pessoal, e não do bem comum. Esse comportamento antifraterno é a motivação da política que, ao longo de anos, tem levado o Brasil a ser um campeão em concentração de renda, em desigualdade, em mortes violentas, inclusive feminicídio e infanticídio, e também em corrupção, esse antônimo conceitual de fraternidade.

Felizmente, nos últimos anos, o brasileiro vem despertando contra a corrupção no comportamento dos políticos e também contra a corrupção dos privilégios. Mas ainda parece distante o despertar para a corrupção nas prioridades que, distantes do espírito fraterno, fazem com que os recursos públicos sejam utilizados para a atuação sem qualquer compromisso fraternal, nem para a corrupção da irresponsabilidade e do desperdício.

A população se indigna ao tomar conhecimento do enriquecimento de políticos e empresários graças ao superfaturamento de obras. Mas ainda não percebe que a opção por essas obras – como no caso do Estádio Nacional Mané Garrincha, em que se gastaram cerca de R$ 2 bilhões, enquanto ao redor dele há mais de 100 mil pessoas sem tratamento de esgoto – é corrupção nas prioridades, provocada por falta de fraternidade no orçamento para os gastos públicos.

Essa campanha coloca a dimensão da fraternidade no nosso imaginário, mostrando que a política precisa de comportamento fraterno, com os olhos nas necessidades dos que precisam.