segunda-feira, 8 de junho de 2020

O mensageiro da morte

O confinamento nos tornou melhores. As pessoas se telefonam. Os mais novos ligam para os mais velhos. Os mais velhos ligam para os ainda mais velhos. Queremos saber como vão. Querem saber como vamos. Quem recebe o telefonema sente-se querido e reconfortado —alguém gosta de nós e quer se certificar de que estamos bem. Trocam-se ideias sobre como tornar o dia a dia menos vazio. E fala-se de amigos que se foram ou que estamos a ponto de perder.

Enquanto trocamos mensagens de vida, Bolsonaro exala o bafio da morte. Seu desprezo pela dor de seus governados é acachapante —morram quantos morrerem, isso não é com ele, é com “o destino”. Nenhum filho, pai ou esposo dos já atingidos mereceu uma palavra sua, exceto “E daí? Não sou coveiro”. Nenhum médico ou enfermeiro, que a cada minuto corre risco de contágio, recebeu um gesto de solidariedade de sua parte.


Curiosamente, só nós perdemos parentes, amigos e pessoas que admiramos, ou que não conhecemos, mas passamos a admirar por seus obituários. É como se a Covid só levasse os bons, os decentes, os que tinham o que dar à vida. Ainda não fiquei sabendo da morte de ninguém próximo de Jair “Porra” Bolsonaro ou Ricardo “Boiada” Salles. Ou das sumidades fardadas que passaram a dar as ordens no Ministério da Saúde e a esconder o número de casos. Ou dos prefeitos que estão mandando as pessoas para a rua, justamente agora que, com uma morte por minuto —por enquanto—, a pandemia se aproxima do seu apogeu.

Logo chegaremos a um milhão de infectados. Eles sofrerão a falta de leitos, de respiradores e de médicos nos hospitais e perceberão como, desde o começo, Bolsonaro trabalhou para matá-los. Muitos desses foram eleitores dele. Mas, de novo, para Bolsonaro, e daí? Eles já votaram em 2018 e o elegeram.

E Bolsonaro espera não precisar mais dos seus votos. Nem dos de mais ninguém.
Ruy Castro

Imagem do Dia


Crônica da barbárie anunciada

“No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às cinco e meia da manhã”. Na primeira linha de Crônica de uma morte anunciada (1981), Gabriel García Márquez conta ao leitor que Santiago Nasar vai morrer. Todo mundo no povoado sabe que ele vai morrer, mas cada um tem suas razões para nada fazer. A morte anunciada do protagonista se cumpre com a ciência generalizada do povoado.

Hoje, somos Santiago Nasar. O fascismo no poder anuncia seu projeto de golpe, que trará repressão e violência estatal. A eugenia fascista no poder anuncia a morte de milhares de brasileiros pobres, negros; dos excluídos de toda sorte, dos frágeis e idosos. Indiferentes ou pensando nos próprios interesses, muitos dos que podem agir fecham os olhos, tal como os habitantes do povoado em que vivia o personagem de Márquez.

A barbárie está anunciada para onde quer que se olhe. Nas notícias de jornais, nos posts de redes sociais, no vídeo ministerial, na contagem crescente de vítimas, nas covas abertas, nas hordas brutalizadas de fascistas tomando os espaços públicos.

Há os que alertam. “Guardadas as devidas proporções, o ‘ovo da serpente’, à semelhança do que ocorreu na República de Weimar parece estar prestes a eclodir no Brasil”. É o decano da mais alta Corte advertindo que “bolsonaristas querem implantar uma desprezível e abjeta ditadura militar”.

Celso de Mello sabe ler a História, e são muitas as semelhanças. Na República de Weimar e aqui, agora, a barbárie chegou ao poder pelo voto, sob uma Constituição democrática e progressista que o eleito sempre disse que queria destruir. Tanto um quanto outro alcançaram o governo anunciando a barbárie.


Em Mein kampf (1925), Hitler escreveu: “temos que ser cruéis. Temos que recuperar a consciência tranquila para sermos cruéis. Que sorte para os ditadores que os homens não pensam”. Bolsonaro, por anos a fio, defendeu a ditadura, a tortura e o assassinato de opositores políticos. Tanto ele quanto Hitler tomaram o controle do Estado em meio a graves crises econômicas e sociais. Ambos têm a seu dispor gente brutalizada, animalizada e movida pelo ódio, além do apoio de uma parte insana da sociedade – que existe em qualquer sociedade, mas que o fascismo faz emergir com força.

E, no entanto, aqui e agora, como lá antes, há os que não veem o perigo e há os que veem, mas preferem seguir seus próprios caminhos mesmo com a serpente rompendo a casca do ovo.

Em meados dos anos 1920, os comunistas alemães negligenciaram o nazismo, pensando que, ao final, tudo aquilo acabaria lhes favorecendo. Stalin e os comunistas alemães elegeram não o nazismo, mas a social-democracia como a grande inimiga. A social-democracia era para eles o social-fascismo ou a parcela moderada do fascismo. Os comunistas alemães aprenderam a lição morrendo nos campos de concentração e, a União Soviética, tendo parte do país destruído e perdendo 20 milhões de vidas.

A lição da História está na síntese do anarquista Buenaventura Durruti, ainda nos anos 1930, antes de se desenrolar toda a barbárie nazifascista: o fascismo se destrói. Com o fascismo não se dialoga, não se concilia, não se admite omissão, não se admite outro cálculo ou estratégia que não seja o aniquilamento. O fascismo se destrói porque o fascismo, se não contido, destrói inevitavelmente. É essa a sua razão de ser. A barbárie é a sua natureza. Quem não destrói o fascismo é destruído. Simples assim.

Mas aqui, no Brasil, continua-se sem entender que o fascismo se destrói. Trata-se de mais um paralelo com os estertores de Weimar, com a agravante de que hoje há uma experiência cujo ensinamento é claro. Bolsonaro cultua a violência. Bolsonaro quer armar suas hordas. Bolsonaro é eugenista. Toma leite para mostrar que o branco é superior. Pouco importa quem vai morrer pelo vírus, se são velhos ou já têm doenças. Menos ônus para a sociedade, alívio para a Previdência. Bolsonaro anuncia que muitos vão morrer, “e daí?”. Bolsonaro tem um projeto e, se puder, irá executá-lo, assim como Hitler executou o seu porque pode.

O erro dos comunistas nos anos 1920 e 30 vai se reproduzindo agora. Eles pensavam que, ao fim e ao cabo, o combate ao fascismo não era impositivo; que poderiam prescindir de alianças, abrir mão de apoio ou não distinguir fascismo de antifascismo; que o tempo proporcionaria a deterioração natural do monstro.

Muitos caminham por veredas semelhantes. “Ninguém me respeita no PT. Eu quero francamente que eles vão à puta que pariu”, disse Ciro Gomes. “Em 2014 a campanha de Dilma inaugurou as fakes news. Não era o gabinete do ódio, mas era uma espécie de comitê do ódio”, disse Marina Silva. “Sinceramente, não tenho condições de assinar determinados documentos com determinadas pessoas”, disse Lula.

Dois ex-presidentes fazem declarações equivocadas ou moles diante do avanço da barbárie bolsonarista. Para Lula, não podemos sair por aí fazendo alianças a torto e a direito com gente que não está preocupada com os direitos dos trabalhadores – o que soa estranho, dito por quem nunca teve problemas com alianças, alguém que fez escolhas bastante discutíveis e trouxe para seu governo quadros de direita que jamais tiveram qualquer preocupação com os direitos dos trabalhadores.

Na retórica de Fernando Henrique Cardoso, Bolsonaro “está fazendo coisas que não são apropriadas”. Há uma política genocida em curso, mas o adjetivo é frouxo, lânguido: “apropriado”. Não é apropriado tal como, digamos, não é apropriada a falta de modos à mesa. Impeachment? Já tivemos dois, são traumáticos…

Há também os ressentidos: não podemos assinar manifestos, fazer aliança ou frente com quem apoiou o golpe de 2016. São os que tomam veneno pensando que vão matar o outro. Aqueles em que o juízo de certo e errado passa pelo filtro das emoções e desaparece. Há aqueles que querem impor aos aliados certas condições, o que desnatura o requisito lógico prejudicial do conceito: aliança é entre diferentes. Não se faz frente consigo mesmo.

O afastamento de Bolsonaro é para já. Será tanto mais rápido quanto mais ampla for e mais agilmente se mover a frente antifascista. Teremos companhias incômodas, mas é algo que já escapou da mera esfera da política. É imperativo categórico. Limite entre civilização e barbárie. Viver ou morrer. E tudo anunciado.

Luiz Carlos Prestes subiu ao palanque de Vargas, que mandara sua mulher, Olga Benario, grávida, judia, para morrer na Alemanha nazista. Submeteu-se à consciência, entre o que entendia ser o seu dever e sua própria individualidade, suas emoções e sentimentos. Usou a razão e olhou adiante de si. Hoje, trata-se apenas de ser antifascista. Amanhã a luta é outra. Albert Camus, que foi goleiro, disse que tudo que sabia da vida havia aprendido com o futebol. No domingo, o futebol nos mostrou como ser antifascistas.
Marcio Sotelo Felippe

País na cremação

Somos agora um país devassado pelo coronavírus. Nossa indústria está indo para o brejo, vamos perder 8% do PIB, uma massa de desempregados monumental e um capitalismo que não cria emprego. Eu não poderia imaginar uma situação pior. Olho pela janela de casa, fico vendo as árvores que tenho em frente, e não vejo país. O país está se derretendo como um sorvete
José Arthur Gianotti

Qual vai ser o golpe, Bolsonaro?

Agora que o Bolsonaro ameaça com o dele, eu gosto de lembrar que a minha ameaça de golpe preferida é a do golpe de ar. Ela vem junto com a doce voz de minha saudosa mãe e, lá do fundo da memória, eu ouço o aviso afetuoso para me proteger, não deixar a janela aberta, a porta também não, pois já farfalha vindo do quintal um vento encanado poderoso e junto com ele a ameaça letal, você não viu o que aconteceu com a vizinha?, do golpe de ar.

Todas as vozes dos anjos já anunciaram, em notas de repúdio, em manifestos, que vem aí o golpe de misericórdia na democracia. As futuras vítimas, no entanto, continuam discutindo entre elas a quem cabe fechar a janela e evitar a desgraça.

O que se planeja agora é óbvio como o golpe do paco, quando no meio da rua um sujeito bom de lábia trocava um pacote de papel velho por grana de verdade. É antigo, sim, e daí? Bolsonaro virou presidente acreditando na máxima da malandragem, a certeza de que nunca ninguém perdeu dinheiro apostando na ignorância alheia. Nos próximos dias vai atualizar o paco em sua versão federativa institucional.

Eu preferia estar falando do golpe de vista, aquele em que o goleiro plantando no meio do gol, diante da excelência da falta cobrada pelo atacante, não tem nada a fazer além de olhar, em posição privilegiada, a bola adentrar o fundo de suas redes. Seria muito futebol para estádios em quarentena.

Bolsonaro, para usar as metáforas conjugais de que ele tanto gosta, deu o golpe do baú. Declarou amor à República, prometeu democracia à Nação e acima de tudo dormir toda noite de conchinha com a patroa, a loura Constituição de 1988. Mentira, era tudo mentira, como previa o samba de corno. Ele enganou geral. Bolsonaro confessou que vai para a cama abraçado com uma pistola embaixo do travesseiro, ignorante para as freudianices comunistas de que todo revólver é um símbolo fálico.

Golpista de raiz, não está nem aí para essas fake news sobre sua heterossexualidade macha. Quer apenas um pretexto qualquer para sair atirando e usar a munição que, decreto atrás de decreto, põe no coldre dos homens de bem. Resta ao país a curiosidade mórbida de saber que tipo de golpe ele dará. Ainda há nas prateleiras as opções do autogolpe, do golpe de estado e do golpe de mão.

Desde a campanha de 2018, Bolsonaro dá o golpe da barriga. Deixa visível na silhueta um empacotamento mal-ajambrado de cintas e coletes, a lembrança sempre exposta aos fanáticos de que levou uma facada - e isso o tornaria o mártir escolhido para ressuscitar a inspiração cívica maior, o golpe de 1964.

O golpe do João sem braço também lhe seria apropriado. Segundo o professor Deonísio da Silva, é aquele dado pelo “preguiçoso, omisso ou trapaceador”. Na origem da expressão, “o golpista amarrava um dos braços sob a roupa, fingindo ser mutilado de guerra para obter esmola”. Bolsonaro, 28 anos de omissão como deputado federal, insinua, como autêntico João sem braço, que precisa do golpe pois o Congresso e o STF lhe amarraram as ações.

Deve ser desprezada apenas a possibilidade de Bolsonaro aplicar um golpe de mestre. Seria um tipo de oximoro, o encontro de palavras que se contrapõem. Mestre e Bolsonaro, definitivamente, são incompatíveis.

Bolsonaro comete crime de responsabilidade ao manipular números da covid-19

Ao esconder e manipular o número de novos casos e mortes diárias por Covid-19, o governo de Jair Bolsonaro atenta contra a segurança interna do país. A pandemia, a maior urgência sanitária do Brasil em mais de cem anos, requer que informações confiáveis circulem livremente, para que a doença possa ser melhor enfrentada tanto pelo governo, nas diversas esferas, como pelos cidadãos no seu cotidiano pessoal, familiar e profissional. A segurança interna do país está visceralmente ligada à saúde dos brasileiros.

A delinquência com os dados da Covid-19 também constitui improbidade administrativa, já que se trata de ato que foge aos princípios éticos mais elementares e contraria os interesses públicos.

Ambas as coisas — atentar contra a segurança interna e cometer improbidade administrativa — estão previstas na lei que rege o impeachment de um presidente da República. São crimes de responsabilidade.

Pensamento do Dia


O fascismo eterno e o fascismo tabajara

Fascismo tabajara é uma feliz expressão criada pelo cientista político Luiz Werneck Vianna. Fascismo eterno é um conceito do intelectual italiano Umberto Eco e foi tema de uma de suas conferências nos EUA.

Como muita gente nova tem me perguntado o que é o fascismo, resolvi trabalhar um pouco o tema, partindo das características eternas do fascismo para suas manifestações tropicais. A conferência de Umberto Eco acabou resultando num livro de 64 páginas. Ele entende como fascismo esse regime nacionalista, autoritário, que vigorou na Itália e foi derrubado no final da Segunda Guerra.

Quando garoto, Umberto Eco participava de concursos de composições com esse tema: “Devemos morrer pelo glória de Mussolini e o destino imortal da Itália?” Como um garoto esperto, respondia que sim. Eco viu os americanos ocuparem a Itália, Mussolini ser executado e refletiu tantos anos sobre o fascismo que acabou extraindo do regime as suas características que sobrevivem aos tempos.

São 14 traços essenciais e, segundo Eco, não precisam estar todos presentes para definir um regime fascista. É temerário condensá-los num curto artigo e apontar sua manifestação tabajara.

Alguns, no entanto, são tão evidentes que não demandam profundas análises comparativas.

Eco acha que para o fascismo eterno não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. “Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente.”


Daqui salto para dois outros traços essenciais: a relação com a cultura e a relação com as armas. Para o fascista, a relação com a cultura também é uma guerra permanente. Daí a célebre expressão atribuída por Eco a Goebbels: “Toda vez que ouço falar de cultura tenho vontade de sacar minha arma.”

No campo das armas, também se desenha um traço essencial do fascismo eterno. O fascismo eterno transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem de seu machismo, que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos não conformistas, como o homossexualismo.

Para Eco, o herói do fascismo eterno, para quem o sexo é um jogo difícil de jogar, prefere jogar com as armas, um simbolo fálico, e seus jogos de inveja se devem a uma permanente inveja do pênis.

Para aqueles que se veem despojados de qualquer identidade social, o fascismo diz que o único privilégio comum a todos é terem nascido no mesmo país. É a base do nacionalismo extremado. O único elemento que pode conferir identidade é o inimigo.

No fascismo há uma obsessão com a conspiração, sobretudo a internacional. Esse talvez seja um dos traços mais decisivos na nossa política externa. A própria ONU parece ser uma sede de conspiração, assim como a OMS e outros organismos internacionais. O aquecimento global é uma invenção do marxismo globalizante, o corona é um vírus comunista, destinado a enfraquecer os países do Ocidente.

Entre os 14 traços essenciais do fascismo eterno, na concepção de Eco, está também a recusa da modernidade. Escrevi sobre ele, mostrando que a proposta de Bolsonaro na verdade é uma retropia, uma volta a um passado ideal, ordenado e tranquilo, desenhado por Damares, com meninos vestidos de azul, meninas, de rosa.

O fascismo tabajara também defende um tipo de tradição religiosa, na qual a verdade foi revelada e não há espaço para o avanço do saber.

Só que aqui a verdade foi revelada nas profecias evangélicas, segundo as quais Cristo deve retornar ao Oriente Médio, quando Israel recuperar suas terras. É essa profecia que move o governo Bolsonaro a querer mudar para Jerusalém a embaixada brasileira.

O interessante, para finalizar, sem finalizar de fato porque há muito o que comparar ao longo dos traços restantes, o fascismo vê diversidade como um sinal de desacordo. Ele busca o consenso exacerbando no natural medo pela diferença. Seu primeiro apelo é contra os intrusos, logo, por definição tende ao racismo.

Umberto Eco morreu recentemente. Não viu surgir de novo o movimento antifascista. Mas, sobretudo, não pôde incluir um traço ao fascismo eterno que surge aqui como nos Estados Unidos: o fascismo chama de terrorista quem se insurge contra ele.
Fernando Gabeira

O caminho do arbítrio

Urge que o presidente Bolsonaro pare sua escalada rumo ao autoritarismo, mediante o uso indiscriminado do arbítrio. Decisões presidenciais num Estado democrático passam por uma série de mediações, sendo as mais importantes o Legislativo e o Judiciário, e no que concerne a este último, o STF. Arrogar a si a verdade e a decisão arbitrária só é fonte de confrontos incessantes.
Acontece que o presidente e sua família operam segundo a concepção schmittiana da distinção entre amigo e inimigo, fazendo que qualquer crítica ou divergência seja vista sob o prisma do inimigo a ser atacado. O mesmo vale para amigos em definições mutáveis, pois, ao passarem a ser considerados uma ameaça, tornam-se inimigos a ser abatidos – os casos mais eloquentes, Bebianno, Moro e Santos Cruz.

A distinção amigo-inimigo não é, todavia, exclusiva da extrema direita, vale também para a esquerda. O próprio Carl Schmitt, após ter sido apoiador entusiasta de Hitler, escreveu, no pós-guerra, que Mao e Lenin se encaixavam na mesma concepção, tecendo-lhes elogios. Chávez e agora Maduro são seus discípulos. A distinção lulopetista entre “nós” e “eles” é dessa mesma estirpe.

No caso da experiência venezuelana, considerada por Lula um exemplo de democracia, processou-se a subversão da democracia por meios democráticos. As instituições democráticas foram inicialmente preservadas, enquanto o seu interior foi progressivamente minado. A imprensa e os meios de comunicação em geral foram, passo a passo, calados, o Legislativo perdeu suas funções, com o presidente passando a legislar por decretos, e o Supremo Tribunal, após ser atacado, foi cooptado. Milícias foram criadas e passaram a violentar e controlar os cidadãos.

No Brasil, estamos vivendo um processo semelhante nos seus inícios, só que de sinal trocado. Da extrema esquerda passamos para a extrema direita. Os ataques sistemáticos à imprensa, aos meios de comunicação em geral e o financiamento e operação organizada de grupos encarregados de difundir fake news mostram essa tática de ataque ao “inimigo”. A ameaça de ruptura institucional, apesar de apresentada como defesa da democracia contra o espantalho do comunismo, é outro de seus braços. A constituição de milícias digitais, agora tornadas milícias de rua, até mesmo armadas, caso do grupo liderado por Sara Winter, é outro de seus instrumentos. A antiga bandeira preta da Ucrânia, símbolo da extrema direita naquele país, é o seu símbolo.

Na mesma linha, a declaração presidencial de que população brasileira deve ser armada para não ser escravizada procura, na verdade, a servidão dessas forças ao domínio da extrema direita. Uma coisa é a posse de armas no legítimo exercício da autodefesa, um direito; outra, muito diferente, é armar a população para se opor às autoridades, como os governadores de Estado, por suas políticas de combate à pandemia.

Contudo parar esse processo rumo ao precipício exige moderação do presidente, com a subsequente alteração da equipe governamental mediante o afastamento dos mais exaltados, os ideológicos. A perseguir tal política, as crises sanitária, política e econômica só tendem a se agravar, levando o País a um impasse perigoso, estando o próprio mandato presidencial em questão.

As recentes manifestações de reação a este autoritarismo por meio de vários manifestos pela democracia exibem uma sociedade atuante, ciente de que suas instituições devem ser defendidas independentemente dos governos. A democracia é tida por um valor maior, situado acima das contendas políticas e partidárias. No entanto, não deveria esse processo ser conduzido sob o modo de uma nova polarização, embora possa ser necessária num primeiro momento, sob pena de outra forma de autoritarismo surgir novamente no horizonte. O impasse institucional seria o seu resultado.

Salta à vista que dois terços da população brasileira não são pró-democracia, apesar de serem anti-Bolsonaro. Aí estão incluídos, por exemplo, os responsáveis pelo mensalão, que minaram o sistema representativo com a corrupção e o descalabro fiscal, para além das tentativas, felizmente infrutíferas, de controle da imprensa e dos meios de comunicação, apresentadas naquele então como sendo a verdadeira democracia. Para não falar das milícias do MST infernizando o campo brasileiro. Convém estar atentos a esses “novos democratas”.

Deve-se olhar igualmente com precaução a participação de torcidas organizadas nas manifestações, pois considerá-las como democráticas é outro equívoco. Na pressa de uma oposição atuante nas ruas, corre-se o risco de confundir alhos com bugalhos, na medida em que se caracterizam por serem uma espécie de quadrilhas, cujo prazer é extraído do uso da violência.

A sociedade brasileira deve sair da polarização, tendo como norte a democracia, sob pena de perpetuarmos o impasse pelos próximos dois anos e meio, além de corrermos o perigo de nele permanecer por mais quatro anos, seja sob a égide da extrema direita, seja da extrema esquerda.

O exemplo uruguaio

Por que não se divulgou mais a maneira tão eficiente como o Uruguai tem lutado contra o coronavírus? A verdade é que se trata de um pequeno país, de apenas três milhões e meio de habitantes, rodeado por vizinhos tão enormes quanto o Brasil e a Argentina. Mas esses dois gigantes teriam se saído muito melhor se, em vez de fazer o que fizeram para deter (ou incentivar, como seria melhor dito no caso brasileiro) a pandemia, tivessem seguido o exemplo uruguaio. Luis Lacalle Pou, o novo presidente do Uruguai, acabava de assumir o poder após derrotar a esquerdista Frente Ampla, que havia acumulado 15 anos de governo, com erros notáveis em política econômica, mas respeitando a liberdade de expressão e as eleições livres.

Na terça-feira 13 de março, conheceram-se os primeiros casos confirmados de coronavírus no país. Enfrentando as pressões da oposição de esquerda, e inclusive de sua própria aliança entre o Partido Nacional (ou Branco) e o Partido Colorado, Lacalle Pou se negou a impor uma quarentena, como fizeram tantos países do mundo. Apelou à responsabilidade dos cidadãos e declarou que ninguém que quisesse ir às ruas ou continuar trabalhando seria impedido, multado ou detido, e que não haveria aumento de impostos porque as empresas privadas desempenhariam um papel central na recuperação econômica do país após a catástrofe. Somente seriam suspensas as aulas dos colégios e haveria fechamento temporário das fronteiras.

A vice-presidenta do Uruguai, Beatriz Argimón, declarou à imprensa: “Para nós, a liberdade individual é muito importante. O presidente nunca quis tomar uma medida que não levasse em conta esse aspecto fundamental que é nossa filosofia de vida.” O resultado dessa política, que não quis se aproveitar do vírus, como fizeram alguns Governos democráticos na Europa e na América Latina, para restringir as liberdades e promover sua agenda política sem os inconvenientes de uma oposição parlamentar, não podia ter sido mais positiva.

Tenho diante de mim os resultados do último relatório emitido em Montevidéu, indicando que os mortos no Uruguai em decorrência da praga são 23, os contagiados são 826 e os recuperados, 689. É difícil imaginar um balanço menos trágico. É certo que a Suécia, que seguiu uma política semelhante à do Uruguai, tem muitos contágios e mortos para lamentar, sobretudo em lares de idosos, e que seus cidadãos agiram de maneira menos prudente e responsável que os uruguaios. A Suécia teve um superávit anual na balança comercial, de modo que será muito menos afetada pelos prejuízos econômicos de outros países que, para combater a pandemia, paralisaram suas atividades e deverão agora enfrentar as consequências.


O grande problema do Uruguai é sua fronteira com o Brasil, uma cidade compartilhada por ambos os países – onde, com o caos brasileiro criado por Bolsonaro, os contágios do coronavírus se multiplicam. Lacalle Pou visitou duas vezes a cidade fronteiriça de Rivera e, para saber se havia sido contagiado pelo vírus, manteve-se vários dias em isolamento voluntário.

Conheço Luis Lacalle Pou. Estive com ele em encontros de liberais e democratas, e não me surpreende que tenha sido a exceção à regra logo após assumir o poder, após uma campanha eleitoral formidável. É um homem jovem, de princípios, amante da liberdade e das ideias do verdadeiro progresso, que, com sua corajosa atitude frente a esta praga que se abateu sobre o mundo, pode agora poupar o Uruguai de boa parte da catástrofe econômica que atingirá os países onde os Governos, aterrorizados com a pandemia e a impopularidade, apressaram-se em fechar fábricas e lojas e a impor um confinamento severíssimo, ou em anunciar aumentos de impostos e nacionalizações, sem pensar que tudo isso contribuiria para agravar a tragédia econômica, uma das heranças da praga – talvez a mais difícil de resolver.

Lembro-me muito de minha primeira visita ao Uruguai, em 1966. Era uma época de ditaduras militares em toda a América Latina. Uma das exceções a essa tendência era o Uruguai; outras eram o Chile e a Costa Rica. Tudo era civilizado e notável nesse pequeno país de classe média, onde não se viam os gigantescos contrastes econômicos e sociais que apareciam aos montes na América Latina. Tudo me surpreendia: a forma como os jornais e as revistas eram bem escritos, a excelência de seus teatros, a magnífica livraria-antiquário Linardi y Risso, onde encontrei as primeiras edições de Onetti e de Borges e sua plêiade de escritores e críticos – Juan Carlos Onetti, Rodríguez Monegal, Idea Vilariño, Ángel Rama, Mario Benedetti, Ida Vitale, Martínez Moreno e muitos outros – um semanário, Marcha, que dedicava um terço de suas páginas à cultura e exerceria depois um grande papel em toda a América Latina. Chegar a esse país levantava o moral de um sul-americano. O mais admirável nele era sua democracia, a mais genuína de todo o continente.

O que levou os jovens uruguaios a revolucionar aquele país exemplar desatando a ação armada dos Tupamaros? O exemplo cubano, claro, o delirante sonho de trazer o paraíso à terra na base do disparo. As ações armadas e o terrorismo de esquerda foram esmagados, e o Exército – quem diria isso do Uruguai – estabeleceu uma ditadura implacável no que até então parecia a exceção aos maus costumes políticos latino-americanos.

Durante muitos anos, o Uruguai não foi nem de perto o que havia sido, e até Onetti, provavelmente o escritor mais indiferente à política e à revolução na história da América Latina, foi parar na prisão e se salvou (graças à Espanha) de passar longos anos na prisão. Terminaria em Madri. Não quis regressar ao seu país quando a ditadura terminou e a democracia restabelecida decidiu condecorá-lo.

Tudo aquilo ficou para trás, e a passagem pelo poder da Frente Ampla, essa coalizão de todas as esquerdas, serviu pelo menos para deixar claro que é possível na América Latina um governo de esquerda sem abrir mão da liberdade. Outros países latino-americanos também demonstraram, com governos de direita, que, ao contrário das caricaturas infligidas pela esquerda, também respeitam a lei e a crítica da imprensa, e garantem eleições livres. E, sobretudo, não roubam, uma propensão que compartilham (aqui e acolá) políticos de todas as ideologias.

Com Luis Lacalle Pou o Uruguai pode ir ainda mais longe, apesar do coronavírus. Se existe alguém que pode dirigir uma transformação profunda de seu país, graças às ideias democráticas, é ele, como tem demonstrado nesses dias difíceis nos quais iniciou sua gestão resistindo às pressões para que seguisse o exemplo de tantos Governos que acreditaram estar combatendo o flagelo da pandemia com aquartelamentos obrigatórios e fechamentos de escritórios e fábricas, o que sempre agrava a pobreza e pode vir acompanhado de barbaridades como nacionalizações e aumentos de impostos.

Seria formidável para a América Latina que da terra de José Enrique Rodó, cujas ideias foram uma religião para os jovens do século passado em todo o continente, saísse, como nestes dias, o exemplo de uma sociedade que, construída sobre o princípio ineludível da liberdade, assegure a justiça social apoiada numa economia de mercado, que garanta um alto nível de vida a todos os cidadãos, premie os que mais contribuem para o progresso comum, permita a livre competição e promova a cultura, em um ambiente de controvérsia civilizada. Em momentos tão difíceis como os que vive o planeta, sonhar não custa nada."

No Brasil de Alice soma vira subtração de cadáver

Aos poucos o país vai compreendendo por que Bolsonaro sustenta que não houve um golpe em 1964 nem aconteceu uma ditadura. Ele tramava montar o seu próprio regime militar. E não queria correr o risco de ser acusado de plágio. Coisa digna de Lewis Carroll e do País das Maravilhas que ele criou para Alice. No Brasil em que os generais batem continência para o capitão, a realidade é um incômodo inexistente.

No país da fantasia, os generais palacianos adulam o capitão reclamando do excesso de cadáveres no noticiário. E o Ministério da Saúde, convertido numa trincheira em que um general paraquedista comanda duas dezenas de militares e um par de soldados do centrão, transforma pandemia em pantomina tragicômica.


"Não vejo que o governo quer esconder os dados", disse o general Hamilton Mourão, vice-presidente do País das Maravilhas, ao comentar a mudança no modelo de divulgação da contabilidade fúnebre do coronavírus. "Ele mudou a metodologia. Não apresenta os números totais, que basta você somar com o dia anterior."

Horas depois, na noite de domingo, descobriu-se que, na pasta da Saúde, soma virou subtração. Cadáver, abstração. Às 20h30m, informou-se que 1.382 mortes foram registradas nas 24 horas anteriores. Dali a uma hora e meia, 857 cadáveres tomaram chá de sumiço. Em novo levantamento, o número de mortos caiu para 525.

O vaivém denuncia o desejo incontido do capitão de sumir com um pedaço da pilha de mais de 35 mil cadáveres, ajustando a realidade ao universo paralelo da "gripezinha". O problema é que os cadáveres estão aí.

Aliás, há tempos que nada esteve tão aí como a pilha de corpos do coronavírus. Os milhares de defuntos são a definição da coisa que está, inegavelmente, ali, e sobre a qual nenhuma desconversa é possível.

Fica entendido que, no regime militar que Bolsonaro inventou para seu próprio deleite, os cadáveres devem ser descartados, pois ameaçam a ordem da fantasia. Agora só falta arranjar desculpas melhores. Fazer desaparecer 35 mil cadáveres não é tão simples quanto sumir com o Fabrício Queiroz.

Brasil e a renúncia de Deus


O dia que o corona acabou

“Nestes dias, escreveu Pondé, precisamos de todos os santos”.

Deus resolveu demonstrar, efetivamente, que é brasileiro. Cedinho, mandou chamar Antônio, João e Pedro, os “donos” das celebrações e folguedos juninos na maior nação católica do mundo.

"Pedro, João e Antonio", ordenou, "vocês vão acabar com essa Praga que veio da China, tá matando todo mundo e meus conterrâneos". Pedro, habitualmente, o mais ousado, meneou a cabeça e largou – Senhor, eu sempre alertei que esses caras iam dar muito trabalho. Tá lembrado de Mao? Pedro – interrompeu o Senhor – essa conversa fica para depois. Agora, somos todos irmãos e os brasileiros são prioridade. Quero que no dia Sete de Setembro não exista mais um vírus no território brasileiro, sejam celebradas a independência e a vida de todos.

Recebidos, à noite, no Alvorada, fora da agenda oficial, eles apresentaram um plano de trabalho. O Presidente caiu de joelhos e, contrito, repetiu o seu mantra:  “O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, vocês têm carta verde e amarela. Branca, não. Plano, fora, ação! Discretamente. Se aparecerem nas pesquisas de opinião, voltarão ao Paraíso".


A partir de junho, só rolou notícia boa. Bomba!! A evidência científica da cura: o BolsocloroVick, mistura da cloroquina com Vick Vaporub (unguento que acaba com puxado, piado, asma e mata tudo quanto é vírus, muito usado pelos nossos pais e avós).

No dia treze, o Presidente dá a notícia e a OMS recomenda o novo remédio para todos os protocolos. Aí a curva “achatou”; depois entrou numa descendente; contaminação e óbitos caíram tendencialmente.

Definido o dia de volta à normalidade, um estudante de veterinária, brasileiro, fazendo PhD, na universidade do Butão sobre os mamíferos morcego e rato e o onívoro timbu (capital do Butão é Thimbu), descobriu a vacina contra o Covid-19, anunciada euforicamente no agourento 24 de agosto.

Foi a glória! O coração dos brasileiros encheu-se de perdão, amor e alegria. Antes de comparecer à parada militar, o Presidente fez um emocionado pronunciamento à nação: "Pô, gente, Paz, Amor e Alegria. Puta que pariu!"

 “Intendência é vida!” Olhou orgulhoso para o eficiente General Pazuello.</p>

Os Brasileiros foram às ruas, abraçaram-se entre risos e lágrimas. Síndicos e condôminos fizeram as pazes. Pela décima vez, Bolsonaro prometeu diálogo. Dória entrou no clima amigável com três fios de cabelo fora do lugar.

Ah, que alívio!

Forças Armadas não são milícias de facção partidária
Gilmar Mendes, ministro do STF

O que aconteceu com o Brasil?

O tocante artigo Meu Brasil brasileiro, de minha amiga Elena Landau, publicado neste jornal há alguns dias (22/5), ativou em mim umas memórias que entendi que poderia ser apropriado compartilhar com os leitores. O argentino Jorge Luis Borges, um europeísta assumido, tinha uma frase deliciosa acerca de si mesmo: “Soy un europeo nacido en el exilio”. Essa foi, muito modestamente, por analogia, minha sensação acerca do Brasil. Pela minha história, filho de pais argentinos, tendo nascido no Brasil e ido morar em Buenos Aires aos 10 meses de idade, eu era “um argentino nascido no Rio”.

Quando vim para o Brasil, na adolescência, eu o fiz deixando para trás lembranças associadas àquela época sangrenta da Argentina, uma das mais marcantes sendo a do sumiço de um primo distante. Ele engrossara a lista dos “desaparecidos” e, como quase todos nela, nunca mais voltou ao mundo dos vivos. Ao se esvair no ar, ele deixou a esposa – minha prima – grávida.

O pai – agora falecido – dessa minha prima era um prestigioso cardiologista, que trabalhava no Hospital Militar de Buenos Aires. Eram tempos terríveis e ele convivia com a suspeita de que, provavelmente, em algum momento deve ter tido como paciente um dos assassinos do seu genro.

Vivendo minha prima, após o desaparecimento do marido, na incerteza do que Alencar Furtado, em discurso famoso no Brasil, qualificara como as “viúvas do quem sabe se talvez”, o pai dela, querendo que a filha pudesse reconstituir a sua vida e já com o neto no mundo, ativou contatos chave e solicitou uma entrevista com o comandante de um dos principais comandos militares. Deste, dizia-se, emanavam as decisões acerca de quem poderia ser considerado preso oficial e quem estava destinado a algum dos temíveis “voos da morte”, que despejavam os cadáveres dos “desaparecidos” no Rio da Prata.


O comandante recebeu-o e disse então a frase que, ouvida no relato do pai da minha prima, nunca mais me saiu da memória e reapareceu algumas vezes nos meus pesadelos da juventude: “Doctor, está usted hablando con la persona justa. Yo soy el administrador de la muerte”. Essa era a Argentina da qual minha família escapou no já longínquo ano de 1976.

Corta para o Brasil da mesma época. Só soube do episódio que vou relatar há poucos anos, mas ele aconteceu naquela época e reflete com precisão o contraste da situação dos dois países.

No tempo dos militares, no Brasil, existia a “linha dura” e o que esta chamava de “melancias” (verdes por fora, vermelhas por dentro), na visão de quem todo aquele que não aderisse ao credo mais radical era considerado “comunista”. Em meados dos anos 1970, a cúpula do PCdoB havia sido dizimada, num evento que tinha deixado sequelas negativas para o governo. Depois disso, um político, importante liderança civil do governo Geisel, recebeu a visita de um desses representantes da “linha dura”. Sem meias palavras, este lhe disse o seguinte: “Nós sabemos que você conhece o pessoal do Partidão. Pois bem, eles vão realizar um encontro de cúpula mês que vem. Eles não sabem que nós sabemos, mas nós sabemos. Se esse encontro ocorrer, não vai ter jeito: eles vão ser mortos. E nós não queremos isso. Portanto, peço-lhe um favor: transmita essa informação a eles, para que esse encontro não ocorra”.

Esse líder civil do governo militar entrou em contato com emissários do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e foi pessoalmente se encontrar dias depois, numa igreja de Brasília, com um representante pessoal de Giocondo Dias, o líder do partido na ausência de Luiz Carlos Prestes, então no exílio. Cada um se ajoelhou para rezar, a certa distância um do outro para não ser algo óbvio, e foi então que esse deputado, liberal das antigas, como Sobral Pinto, transmitiu o recado. O encontro não se realizou e a vida dos membros do Comitê Central do Partido Comunista foi poupada.

Muitos anos depois, já adoentado, ambos idosos, Giocondo Dias tocou a campainha do apartamento daquele político da Arena. Sua mensagem: “Venho lhe agradecer por ter salvado a minha vida nos anos 70”. Sempre que conto a história me emociono.

Costumo dizer, pela experiência de vida que já expliquei acima, que não sou apenas brasileiro: eu virei brasileiro. Sendo o país onde nasci um desconhecido para mim até os 14 anos, foi a terra que acolheu a mim e minha família. Por contraste com o inferno da Argentina daquela época, o País pelo qual nos encantamos é o retratado nessa bela história que relatei acima: uma terra de nuances, de sensibilidade, de humanidade, de sentimentos nobres e de afeto. O país em que, mesmo num governo autoritário, a “turma” mais dura tentava mitigar os conflitos e havia algum respeito pela diferença, cuidados a tomar, diálogo e certa classe.

Hoje, neste festival diário a que assistimos no noticiário, que mistura agressividade, grosseria, falta total de empatia e a exacerbação do conflito, não reconheço mais o País que nos recebeu. Quatro décadas e meia depois daquela época, a pergunta que não quer calar é: o que aconteceu com o Brasil?

A volta do turismo, a pandemia e uma lição do Mágico de Oz

À medida que o mundo lentamente reabre para as viagens, é um bom momento para lembrar que estamos emergindo de um período sem precedentes na história humana: nunca tanta gente esteve proibida de ir a tantos lugares, todos ao mesmo tempo.

Para o setor mundial de viagens e turismo, que movimenta 8,9 trilhões de dólares, os 330 milhões de empregos que ele cria, e o 1,4 bilhão de nós que participamos como viajantes em 2019, as grandes questões são: as coisas vão algum dia retornar ao normal? Como será esse "novo normal"?

A Organização Mundial de Turismo das Nações Unidas calcula que o número de viajantes internacionais poderá cair até 80%. Então, a outra grande questão é se ter uns 3 milhões de pessoas a menos trafegando pelo mundo, todo dia, é tão ruim assim, afinal de contas. Quem sabe, poderia ser até uma coisa boa?

Há muito o setor turístico tem sido atacado por seu impacto imensamente negativo sobre o meio ambiente, a forma como transforma a cultura em bem de consumo, expulsa os residentes de lugares onde têm vivido há gerações, e rouba as almas dos que permanecem.

Os defensores, contudo, sempre alegam que os benefícios econômicos superam as desvantagens, sendo as viagens e turismo atualmente responsáveis por quase 11% dos empregos de todo o mundo. O argumento comercial parece inatacável, tratando-se de um setor que contribuiu para quase 10% do PIB mundial em 2019.

Aí veio a covid-19. E súbito se constata que, afinal, essa atividade não é tão boa assim para os negócios: foi o turismo da China continental, onde os especialistas creem que o surto se originou, o responsável por a doença alcançar proporções de pandemia dentro de poucas semanas.

A Universidade de Cambridge calcula que, no pior dos casos, a economia global possa perder até 82 trilhões de dólares nos próximos cinco anos, devido aos danos da pandemia. Mesmo a "projeção consensual" do estudo, prevendo um prejuízo de 27 trilhões de dólares em cinco anos, continua sendo prova de que não há mais argumento comercial pelo turismo.

Visto por esse ângulo, o setor se revela como o maior conto do vigário da história da globalização. Ainda assim, uma maioria insiste em acreditar que ele é uma boa coisa, apesar de todas esmagadoras provas em contrário.

Como Dorothy no início do filme O Mágico de Oz, de 1939, continuamos acreditando que felicidade é viajar para distantes locais exóticos, "para além do arco-íris", onde os céus são azuis e os sonhos se tornam realidade. Acreditamos nisso, embora raramente seja o que vivenciamos.

Aí viajamos para novos lugares, procurando mais felicidade, maior realização. Essa é a dinâmica mortal que está propelindo o turismo em todo o mundo. A menos que escapemos dela, nunca estaremos seguros, sustentáveis ou econômicos.

Com a Europa reavivando sua indústria turística, muitos se preparam para encarar esperas mais longas nos aeroportos, preços mais altos de passagens e acomodação, serviços reduzidos e acesso restrito a resorts e atrações culturais. Já outros preferirão cortar seus planos de férias, em vez de participar da restauração de um turismo que tenta se reinventar como setor mais seguro, mais sustentável.

Isso quer dizer: passar mais tempo em casa e na própria localidade. E para quem vive em metrópoles, como eu, haverá mais de nossas cidades para aproveitar, sem os turistas.

Quando Dorothy finalmente acorda de seu sonho, lá no Kansas, ela revela uma lição aprendida em Oz que também poderia nos ajudar a formar expectativas mais realistas sobre o turismo, nesse momento em que se tenta reavivá-lo: "Não há lugar como nosso lar."
Kevin Cote

Tentando respirar

Sei que opinião individual não interessa. Não importa que, ao contrário do presidente, eu jamais tenha tido o impulso de ouvir filho atrás da porta e sinta engulhos diante de quem acha isso recomendável. Mas confesso uma posição pessoal: sou contra prorrogar mandatos. Por isso, não gostei nada quando se falou em adiar para outro ano as eleições municipais, a pretexto da pandemia. Ainda bem que Rodrigo Maia também pensa assim. E o ministro Barroso, agora presidente do TSE, está firme na busca de alternativas que garantam a continuidade democrática no pleito, sem irresponsabilidade sanitária. Acaba de autorizar convenções virtuais para escolha dos candidatos. E como os testes das urnas eletrônicas devem ser presenciais, que haja condições seguras de trabalho para os funcionários da Justiça Eleitoral neles envolvidos. 

Pode-se fazer a votação em horário dilatado ou em mais de um dia. Talvez postergar um pouco a data, mas permitindo que a posse dos novos eleitos fique dentro do previsto na legislação. Talvez até valha considerar a hipótese de suspender a obrigatoriedade do voto neste pleito. Claro, a palavra final é do Congresso. Vejo que outros se preocupam com isso, não estou sozinha.

A mostrar que não estamos sós e inertes nestes tempos de perdas dolorosas, de Covid e de violência como a que matou George Floyd, também os democratas se mexem para tentar respirar. Contra quem quer nos asfixiar, crescem movimentos suprapartidários dispostos a passar por cima de mágoas antigas e defender as instituições. Irmanados na resistência capaz de unir diferenças. Sem alimentar confrontos, projetos pessoais ou veleidades hegemônicas. Já vêm tarde e são muito bem-vindos. Definem-se a favor da Constituição, da vida, da saúde, da justiça, da educação, da arte, da ciência, da igualdade, da Amazônia, da responsabilidade na economia, da sustentabilidade, das instituições, da liberdade de imprensa.

Está difícil respirar democracia. Mas somos muitos. Juntos ganhamos alento e força.