segunda-feira, 6 de setembro de 2021

E tudo se acabar na quarta-feira

As manifestações bolsonaristas de amanhã devem ser grandes. Houve empenho do governo, intensa campanha nas redes sociais, financiamento para aluguel de ônibus do interior — enfim, um esforço excepcional.

Elas podem até ter algumas consequências adiante, mas, do ponto de vista de objetivo político, são um momento de sonho para vestir fantasias que não sobrevivem na quarta-feira.E, quando não há objetivo político válido, dificilmente uma força se impõe, mesmo havendo muita gente e até poder militar.

Uma das bandeiras do bolsonarismo está praticamente morta. É o voto impresso. Foi derrotado no contexto legal em que deveria ser analisado, e não há como voltar atrás. Nesse caso particular, estarão simplesmente carregando um defunto, na expectativa de que lhes possa ser válido no ano que vem, em caso de derrota eleitoral.

A outra bandeira do bolsonarismo será, aparentemente, a liberdade de expressão. Em termos abstratos, ninguém se coloca contra ela. A dificuldade é aceitar que se preguem a violência e a invasão de prédios públicos como se estivessem exercitando a liberdade, quando, de fato, ultrapassam seus limites legais.

Essa aceitação de limites está presente, por exemplo, no parecer da subprocuradora Lindôra Araújo, que denunciou o ex-deputado Roberto Jefferson.

Isso não significa que o tema não deva ser constantemente discutido. E o é no Brasil. Juízes têm censurado jornais; há debates sobre instruções do Supremo relativas a combate a fake news; o próprio Bolsonaro rejeitou uma lei que penaliza a divulgação em massa de notícias falsas. É um tema em aberto, mas a conclamação à violência e o racismo, para citar alguns, são limites legais que não podem ser transpostos apenas por atos de vontade.

Bolsonaro é presidente. Tem pouco a dizer diante de uma pandemia que não desapareceu, como creem alguns otimistas. Governa um país em que a economia estagnou, encontra diante de si uma crise hídrica que se desdobra também numa crise de energia.

Numa situação dessas, o presidente lidera manifestações pelo voto impresso ou por uma duvidosa concepção de liberdade. Isso é tão distante da realidade como conclamar as pessoas a comprar fuzis e definir como idiota quem está preocupado com os alimentos, cada vez mais caros.

O exame dos problemas reais do Brasil implica a definição da responsabilidade do presidente. Até a crise hídrica, de certa forma determinada por fenômenos como La Niña, seria mais branda se não houvesse tanto desmatamento e tantas queimadas estimulados pelo governo Bolsonaro.

Pode ser que se ouça nas ruas algum grito contra a corrupção. Mas será de uma amarga ironia. Bolsonaro apenas se aproveitou da bandeira. Os fatos descritos na CPI mostram como gigantescos golpes estavam armados contra os cofres públicos. As denúncias de rachadinha contra o filho ex-deputado estadual estendem-se ao filho vereador e alcançam o próprio gabinete de Bolsonaro.

Como se não bastassem essas revelações, o encontro com o setor fisiológico do Congresso revela que Bolsonaro, como ele próprio diz, se originou no Centrão e sempre se localizou nesse espaço político.

Muita gente pode ir para a rua, mas, se estiverem perdidos, de nada adianta serem muitos se perdidos de armas na mão.

O Brasil vive um momento dramático de crise sanitária ainda não vencida, crise econômica e social, crise ambiental, seca e escassez de energia, quase 15 milhões de desempregados.

Uma grande manifestação que ignore essa realidade e um presidente que se esconde dela servem apenas para mostrar como é profundo o abismo em que nos metemos e como será difícil superá-lo sem um grande debate sobre a reconstrução.

A cortina de fumaça que Bolsonaro cria para tentar sobreviver politicamente não nos deixa avaliar ainda quanto a democracia, o tecido social e os recursos naturais foram devastados neste período. É uma tarefa para a quarta-feira de cinzas.
 
Fernando Gabeira

O dia seguinte

Milhares devem ir às ruas na terça-feira em atos cuja ambiguidade dos mobilizadores impede qualquer previsão. Podem dar eco à beligerância do presidente Jair Bolsonaro, acabar em invasão do STF e do Congresso, com quebra-quebra e violência. Ou simplesmente se limitarem a louvar o “mito”. Fora a ficcional hipótese de golpe – com tanques e fuzis –, o dia seguinte será uma quarta-feira como outra qualquer. Talvez de cinzas para o presidente.

Bolsonaro deu caráter de “ultimato” às manifestações, endereçando a ameaça aos desafetos-mor do STF, ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Por óbvio, não traduziu o significado da bravata. Como os ministros não vão sucumbir ao presidente, Bolsonaro colherá aqui a primeira derrota. Há muitas outras.


Durante a preparação dos atos, a base bolsonarista rachou. Parcela significativa dos caminhoneiros, fiéis desde a greve de 2018, sentiu-se usada. Gente graúda do agronegócio não só se afastou do governo como abriu um flanco oposicionista. Empresários de porte romperam a zona de conforto e até se digladiaram, caso da Febraban frente ao recuo da Fiesp em divulgar o manifesto pró-harmonia entre os Três Poderes, e da Associação Comercial de Minas diante da postura bolsonarista da Fiemg.

A rinha com o STF provocada pelo presidente também desagradou parlamentares. Neoaliados do Centrão preferiram distância estratégica dos atos da terça-feira e só bolsonaristas de carteirinha ativaram as suas redes em favor das manifestações.

Até entre evangélicos a corda roeu. Algumas igrejas pentecostais tidas como aliadas reclamaram abertamente da primazia do pastor Silas Malafaia sobre todas as coisas. Nas redes, começaram a surgir mensagens questionando o espírito cristão de quem prega fuzis para todos e a guerra como instrumento de paz, discurso semelhante ao da Igreja Católica, expresso pela CNBB.

Os danos para o presidente e suas hostes não param aí. Há ainda investigações em curso sobre o financiamento das manifestações, seja para pagar as caravanas – ônibus, infraestrutura e alimentação –, seja em publicidade. Alguns casos, com equipamentos e dinheiro públicos.

Esgarçou-se também o tecido ideológico que mantinha a turba unida. Na coordenação, enquanto muitos apelam à moderação, com o mote de “liberdade”, outros tantos preferem o confronto e a lacração do Supremo. Não há saída: se o presidente decidir por uma raríssima e quase inacreditável compostura nos palanques de Brasília e São Paulo, vai decepcionar muitos; se for o incendiário de sempre, será responsabilizado pelas consequências.

Mais: os preparativos para os atos, com as toadas desafinadas de Sérgio Reis, reações exacerbadas do presidente, frases de efeito e ameaças sem fim, conseguiram ocupar a mídia, deixando em segundo plano o que realmente aflige Bolsonaro. No dia 8, a CPI da Pandemia no Senado reassume seu protagonismo. Os processos contra o presidente no STF, os filhos enrolados com as rachadinhas, o ex-funcionário de confiança e a ex-mulher-bomba ganharão mais espaço. Pelo menos até que ele invente outra moda, o que seguramente acontecerá.

Os atos da terça também não têm o condão, por mais que Bolsonaro queira, de escamotear as crises reais do país. A pandemia vai somar mortos aos mais de 580 mil, o desemprego e a inflação continuarão em alta, a miséria não cederá.

O único fator a favor do presidente é a coleta de imagens das multidões, espertamente concentradas em dois polos, Praça dos Três Poderes e Avenida Paulista. Elas servirão para alimentar as redes sociais e, claro, a campanha eleitoral. Em São Paulo, onde por segurança os drones foram proibidos, alugou-se um helicóptero para garantir as melhores cenas. Sabe-se lá custeado por quem.

Isolado, e deprimido pela popularidade em queda, Bolsonaro pretende exibir “apoio do povo” contra os mais de 60% que o rejeitam. Primeiro, vai confrontar as pesquisas com imagens do 7 de Setembro. Depois, diante do fracasso anunciado em 2022, usará esses registros para “denunciar” fraudes eleitorais promovidas no “quarto escuro do TSE”. Tudo parte do script de um derrotado, mas que não cairá sem provocar tumulto e caos.

Bolsonaro diz ter três alternativas: “estar preso, estar morto ou a vitória”. O Brasil só tem duas: impedi-lo já – o que seria mais conveniente para a sanidade do país – ou derrotá-lo fragorosamente nas urnas.
Mary Zaidan