domingo, 6 de outubro de 2019

Como envelhecer mais rápido

Com apenas nove meses de mandato, o presidente Jair Bolsonaro deixa a sensação de que seu governo envelhece muito rápido. Na política, percepção é decisiva para quase tudo, sendo absoluta para a construção da imagem. O governo começa a dar um cansaço na sociedade por causa de decisões intempestivas e polêmicas, motivadas por razões ideológicas de cunho ultraconservador e religioso, sem que os resultados apregoados para a economia aconteçam no tempo que os eleitores esperavam. Já não estamos falando dos 100 dias de governo, estamos nos aproximando do fim do ano. Os setores em mais evidência na Esplanada são os que colecionam problemas; os mais focados nos resultados trabalham em silêncio obsequioso.

Bolsonaro tem culpa nesse cartório, porque protagoniza polêmicas nas quais o governo não tem a menor chance de sair ganhando. Transforma em gigantes adversários que combatiam à sombra, como o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, no caso da morte do pai, Fernando Santa Cruz, durante o regime militar, e o quase nonagenário cacique caiapó Raoni, que virou do dia para a noite um forte candidato ao Nobel da Paz. Sua implicância preconceituosa com artistas, ambientalistas, ativistas dos direitos humanos, jornalistas e gays não acrescenta absolutamente nada ao desempenho positivo de seu governo, somente aumenta a fricção com setores que formam opinião pública na velha e nas novas mídias.


Nicolau Maquiavel já dizia que o sucesso do príncipe depende da virtù e da fortuna. Quando a fortuna muda, certas virtudes viram defeitos que podem até ser fatais. Indiscutivelmente, Bolsonaro é um homem bafejado pela sorte, sua própria sobrevivência à facada em Juiz de Fora na campanha eleitoral serve de exemplo. Além de milagroso (Bolsonaro acredita nisso piamente), o episódio foi decisivo para que o “mito” se tornasse imbatível na eleição. Nesse quesito, portanto, não há adversidade. Exemplo de ambiente favorável ao governo é a blindagem patrocinada pelo Congresso ao ministro da Economia, Paulo Guedes, entre outras coisas, com a aprovação da reforma da Previdência, que deve ser concluída neste mês.

O problema é a virtù mesmo. Em certa passagem das Mil e Uma Noites, o vizir diz à filha Xerazade: “Aquele que não prevê as consequências dos seus atos não pode conservar os favores do século”. É aí que mora o perigo para Bolsonaro. Seu problema não é a oposição, ainda que sua retórica procure manter a polarização com a esquerda tradicional e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que cumpre pena em Curitiba, por considerar a estratégia eleitoral mais segura para a reeleição. Exemplo: a política ambiental, na qual o governo corre atrás dos prejuízos e continuará correndo por um bom tempo. Agora, sua política indigenista agride o grande legado do marechal Cândido Rondon, dos irmãos Villas Boas e de Darcy Ribeiro, entre outros. E pode reverter o crescimento da população indígena no Brasil, que é a medida do sucesso da estratégia de demarcação de suas terras.

Nesse rumo, é previsível o aumento de casos de suicídios, mortes por doenças e assassinatos de líderes indígenas em conflitos violentos com madeireiros e garimpeiros. Se isso de fato ocorrer, aliado à redução da população indígena, estará caracterizado um genocídio. Bolsonaro subestima a repercussão internacional que isso pode ter, assim como o papel do índio na formação da identidade nacional. Não se dá conta de que todo brasileiro fala a língua dos índios, na nossa culinária, na toponímia e até mesmo no hábito de tomar dois ou mais banhos por dia. No Brasil, as famílias miscigenadas são a maioria, raras não têm o arquétipo de uma “tataravó” índia que pitava no quintal e fazia beiju.

Mas o ponto mais fraco de Bolsonaro ainda é a economia. Herdou 13 milhões de desempregados e uma curva ascendente de desigualdade, na qual apenas 2,7% das famílias acumularam 20% do total da renda entre os anos de 2017 e 2018, segundo pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na sexta-feira. As famílias brasileiras tiveram uma renda média de R$ 5.426,70, porém, 23,9% delas viviam com um orçamento mensal de até dois salários mínimos. Esse percentual corresponde a um contingente com cerca de 44,8 milhões de pessoas em 16,5 milhões de famílias. Por possuírem os mais baixos valores recebidos, representam apenas 5,5% da renda nacional, ainda que as transferências governamentais respondam por 19,5% do total de renda do brasileiro.

Focada no equilíbrio fiscal, na desregulamentação do trabalho e na simplificação tributária, a política econômica de Bolsonaro aposta no mercado para enfrentar os problemas do trabalho e da renda, sem se dar conta de que o “tatcherismo” se esgotou e agravou a desigualdade no mundo. O melhor exemplo é a Inglaterra, país desenvolvido, cuja renda média está abaixo dos indicadores da União Europeia, que ainda tem regiões de médio ou baixo desenvolvimento. No seu livro Desigualdade, o que pode ser feito?, o economista britânico Anthony B. Atkinson mostra que é impossível combater a desigualdade sem a intervenção do governo e a mobilização da sociedade, isto é, poupadores, investidores, trabalhadores e empregadores. Acontece que o envelhecimento precoce do governo abriu esse debate e antecipou a principal agenda eleitoral de 2022, ao lado da defesa da democracia.

As duas classes

Existem duas classes sociais: a dos não comem e a dos que não dormem com medo da revolução dos que não comem
Milton Santos, brasileiro Nobel de Geografia

Dona Solange não morreu

Solange Hernandes foi a censora mais temida da ditadura militar. Chefe da Divisão de Censura de Diversões Públicas, decidia o que podia e o que não podia ser exibido no teatro, no cinema e na televisão. A tesoura estatal podava toda obra que, aos olhos dela, atentasse contra a moral e os bons costumes. Críticas ao regime, nem pensar: eram cortadas na raiz.

Na Nova Era, o governo quer voltar a dar a última palavra na produção cultural. A censura, extinta pela Constituição de 1988, ressurge nas formas de veto ideológico e asfixia econômica.

Um dos primeiros atos do bolsonarismo foi a extinção do Ministério da Cultura. De lá para cá, acumulam-se tentativas de interferência nas artes.

O presidente já anunciou que deseja impor um “filtro” à produção cinematográfica. “Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine”, ameaçou. Ele acusou o órgão de financiar “filmes pornográficos” e defendeu que o cinema brasileiro passe a exaltar “heróis brasileiros”. “Nem na ditadura isso ocorreu”, reagiu o diretor Bruno Barreto, que rodou “Dona Flor e Seus Dois Maridos” em pleno governo Geisel.

Em agosto, a Ancine suspendeu um edital que havia selecionado séries sobre sexualidade e diversidade de gênero. Com o veto, quatro produções perderam o direito a captar recursos no mercado. “Conseguimos abortar essa missão”, festejou o presidente, em live para seus seguidores.

Em outra frente, o governo implodiu a Lei Rouanet, principal mecanismo de financiamento do setor. O teto para a captação de recursos despencou de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão. O Planalto não apresentou nenhum estudo econômico que justificasse o corte.

A tesoura chegou até ao Itamaraty. A embaixada em Montevidéu vetou a exibição de um documentário sobre Chico Buarque. O chanceler Ernesto Araújo disse que a obra não era de “interesse” do governo.

A censura federal faz escola. Em Porto Alegre, a Câmara Municipal cancelou uma exposição com charges críticas a Bolsonaro. No Recife, a Caixa Cultural tirou de cena uma peça contra o autoritarismo. No Rio, o prefeito Marcelo Crivella enviou fiscais à Bienal do Livro para apreender um gibi com beijo gay.

A blitz do bispo ainda não tinha ocorrido quando Fernanda Montenegro posou para a revista “Quatro Cinco Um” fantasiada de bruxa, prestes a ser queimada numa fogueira de livros. O desconhecido Roberto Alvim, diretor de artes cênicas da Funarte, reagiu com fúria. Chamou de “sórdida” e “mentirosa” a maior atriz brasileira, que faz 90 anos na semana que vem.

Antes de assumir o cargo, Alvim convocou “artistas conservadores” a criarem uma “máquina de guerra cultural” para combater quem pensa diferente. Essa mentalidade macarthista está por trás do sistema de censura prévia instituído na Caixa Econômica Federal. A “Folha de S.Paulo” revelou que funcionários do banco passaram a vasculhar posições políticas e postagens em redes sociais antes de definir patrocínios.

Na nova cruzada autoritária, o diretor da Funarte e seus pares parecem buscar a notoriedade de Dona Solange, que virou personagem de músicas de Leo Jaime e Rita Lee. A chefe da DCDP não está mais por aqui, mas seus discípulos chegaram ao poder.

Paisagem brasileira

Araquem Alcântara

Falta rumo

Há dias nos quais escrever é um prazer. Nem sempre: hoje, por exemplo, este artigo me custou bastante. Por quê? Cansaço de uma noite mal dormida me fez sentir a velhice, o que em mim é raro. Mas há também motivos que nada têm a ver comigo. Dá certo desalento voltar aos temas que têm dominado o noticiário do cotidiano nacional: os enganos repetitivos (na verdade as crenças) do governo atual; a morte absurda de crianças alvejadas à bala ; as árvores que queimam na Amazônia e alhures, tanto por motivos cíclicos, como pela devastação criminosa em busca de discutível lucro... E por aí vamos, de pequenas e grandes tragédias à estagnação das ideias.


Por trás do “mesmismo” do dia-a-dia, vão se formando nuvens um tanto menos habituais e que podem trazer-nos maiores aborrecimentos. A mais difusa e também a mais ameaçadora delas diz respeito ao “estado do mundo”. Desde que Kissinger convenceu Nixon a normalizar a relação dos Estados Unidos com a China e os chineses, levados por Deng Xiao-Ping, se dedicaram a construir o “socialismo harmonioso “ (seja lá o que isso signifique), as apreensões de uma nova guerra mundial sumiram do mapa. A antiga União Soviética desabara, Cuba estava contida, a Coreia do Norte ameaçava mais a do Sul do que o mundo, a guerra entre a índia e o Paquistão se acalmara. Restava apenas o “Oriente Médio” e o norte da África como palcos de guerra, com os americanos bombardeando e conquistando o Iraque, a Europa fazendo o mesmo na Líbia. Crises que pareciam muito longínquas de nós, brasileiros.

Dava a impressão de que a “nova a ordem mundial”, por certo assimétrica, conteria suas desavenças nos limites das Nações Unidas, com uma ou outra ação militar “corretora”, sem abalar as estruturas internacionais de diálogo. São elas que começam a se romper no atual decênio. As ideias representadas por Trump encontram eco na realidade de uma China que de “copiadora” passou a criadora de novas tecnologias e até mesmo de uma Coreia do Norte, cujos mísseis ameaçam chegar à costa do Pacífico da América do Norte. Sem falar no renascimento da Rússia como potência militar que cobra seus “direitos” de vassalagem, incorpora a Criméia, invade terras da Ucrânia e produz temor nos nórdicos.

Neste novo quadro assistimos, ao mesmo tempo, a uma verdadeira revolução nas técnicas e nas relações produtivas. O mundo contemporâneo emprega cada vez mais tecnologias poupadoras de mão de obra e criadoras de grandes volumes de bens e serviços que se transformam em lucros nas mãos de poucos (inteligência artificial, robôs, revoluções na microbiologia, novas técnicas agrícolas e assim por diante). Em conjunto, elas permitem o prolongamento das vidas humanas, oferecem pouco emprego e, dado o regime social prevalecente, criam não mais “exércitos de reserva”, mas excedentes de mão de obra dispensáveis para o aumento da produção. Em suma um mundo bem diferente do sonho tanto dos liberais quanto dos marxistas.

Provavelmente é isso que, subconscientemente, está por trás a da reação “irracional” dos coletes amarelos na França, da desconfiança generalizada quanto à democracia representativa, da vontade de voltar ao isolamento, com o Brexit ou com a guerra comercial de Trump. Enfim com a ascensão de novos pretensos “homens fortes” que, pulando as instituições, voltariam a fazer o “bem do povo”.

Fossem só razões ideológicas e já seria um momento tenso. Mas há mais: os mercados financeiros mundiais começam a dar sinais preocupantes, refletindo a inquietação política e, sobretudo, a diminuição da produção, com a demanda fraca. Para responder à prolongada e profunda crise de 2008, os bancos centrais dos países desenvolvidos reduziram os juros dramaticamente e inventaram o “quantitative easing” (com injeções maciças de dinheiro nas economias). Que fazer agora se uma nova crise se apresentar, ainda que não tão grave como a anterior? Ora, os juros já estão baixos (em muitos lugares, são negativos). E a situação fiscal dos governos ricos não é de folga, limitando o arsenal de medidas para estimular a economia. No Brasil, ainda é possível reduzir os juros, mas o desaguisado das contas públicas deixa o Estado exaurido e sem capacidade para “puxar” os investimentos. Os sinais de nova crise lá fora se somam às dificuldades de sair dela aqui dentro.

É neste contexto que se torna imperioso, como eu costumava dizer quando exerci o governo, definir rumos. Mais do que isso: convencer o povo de que os rumos propostos são bons para o país e para as massas, sobretudo, para os mais pobres.

De uma coisa estou convencido: há que se colocar um ponto final na dinâmica de polarização que tomou conta do país. Até o STF se deixou enredar nela: os juízes discutem e brigam pelo adjetivo, dando ao país a impressão de que, uma vez mais, o formalismo vai se impor à substância. Quando não parecem não se dar conta das repercussões mais amplas das decisões tomadas.

Não nos esqueçamos de que os presidentes que marcaram nossa história recente (falando só dos que já estão mortos) agregaram, não dissolveram. Juscelino, mesmo enfrentando duas sublevações militares (as revoltas de Jacareacanga e Aragarças), pacificou o país e modernizou o setor produtivo e a infraestrutura do Brasil, somando capital nacional e estrangeiro.

E mesmo Vargas, apesar de ter chefiado um governo forte, repressivo mesmo, e que teve seus momentos de tensão, soube incorporar as massas urbanas e definir um rumo para a economia, nas condições da época. Percebeu que a guerra se aproximava e, embora houvesse negaceado com o Eixo, terminou por juntar-se aos Aliados. Cobrou preço, entretanto: a siderúrgica foi feita com empréstimos dos americanos.

Será que estaremos condenados nas próximas eleições presidenciais a votar em polos agarrados a ideologias mofadas? Ou teremos capacidade para unir o centro democrático e progressista para retomar, com a vitória nas urnas, o rumo de grandeza que o país necessita e merece.
Fernando Henrique Cardoso

Laranjal do PSL ganha um conteúdo presidencial

O caso do laranjal do PSL mudou de patamar. Fez escala na caixa registradora da campanha de Jair Bolsonaro. Ganhou, portanto, um conteúdo presidencial. De repente, a inexplicável permanência de Marcelo Álvaro Antônio no cargo de ministro do Turismo ganhou uma incômoda explicação.

Notícia veiculada pela Folha neste domingo informa que a Polícia Federal suspeita que parte da verba desviada de candidaturas femininas fakes pode ter abastecido um caixa dois compartilhado entre o ministro e o presidente nas eleições de 2018. Quer dizer: além de lavar as mãos, Bolsonaro pode ter ajudado a fazer desaparecer o sabonete.

A PF dispõe de um depoimento e uma planilha que apontam para a existência da caixa clandestina mútua. Haissander Souza de Paula, ex-assessor parlamentar de Álvaro Antônio, coordenador da campanha dele a deputado federal por Minas Gerais, disse em depoimento acreditar que "parte dos valores depositados para as campanhas femininas, na verdade, foi usada para pagar material de campanha de Marcelo Álvaro Antônio e de Jair Bolsonaro".

Sintomaticamente, o diretor-geral da Polícia Federal, delegado Maurício Valeixo — aquele que Bolsonaro ameaçara de demissão —, esteve com o presidente no final da tarde de sexta-feira. A conversa ocorreu nas pegadas da revelação de que o ministro do Turismo fora indiciado pela PF e denunciado pelo Ministério Público.

O encontro não estava agendado. Mas o Planalto incluiu o nome de Valeixo na agenda presidencial, às 17h. Na véspera, o próprio ministro do Turismo tivera uma longa conversa com o presidente. Depois, foi confirmado no cargo. Se quiser salvar as aparências, Bolsonaro terá de afastar o ministro. Ou convencê-lo a sair.

Tarimbado em escândalos, o brasileiro vai adquirindo uma certa prática. Adapta-se à lógica da política. No fundo, sabe como tudo vai acabar, pois o Brasil não é mais um país imprevisível. Tornou-se tristemente previsível. Nele, os a maioria dos políticos opera na base do "um por todos, todos por huuummmmm".

Messias milagroso

A gente não vai perseguir ninguém, mas o Brasil mudou. Com dinheiro público não veremos mais certo tipo de obra por aí. Isso não é censura, isso é preservar os valores cristãos, é tratar com respeito a nossa juventude, reconhecer a família
Jair Bolsonaro

A instalação da loucura

Mia Couto tinha o microfone na mão, e falava sobre a importância de escutar o outro, quando um homem se ergueu entre o público que enchia o auditório da Livraria da Travessa, no Shopping Leblon, no lançamento d’ “O terrorista elegante”, livro que escrevemos a quatro mãos. O homem reivindicou a sua filiação à extrema direita, gritou alguma coisa sobre Bolsonaro (não entendi se contra ou a favor), e abandonou a sala, fazendo a saudação nazi, empurrado pelas vaias da plateia.


Horas mais tarde, jantando num boteco próximo, recordamos outros eventos tumultuosos. Enfrentei muitos, sobretudo em Angola, durante os anos mais sufocantes da ditadura. No lançamento d’ “O ano que Zumbi tomou o Rio”, em 2002, o mítico Comandante Juju, pai de Ondjaki, também ele escritor, pediu a palavra: “Desculpe”, disse com delicadeza, “mas vou fazer uma provocação”. Poderia ter dito, com a mesma delicadeza: “Desculpe, mas vou dar-lhe um tiro”. O livro, disse, era “uma mentira muito bem escrita”. E acrescentou: “Você mente deliberadamente ou por ignorância?”

Logo a seguir, o poeta Ruy Duarte de Carvalho levantou-se aos gritos, avançando contra mim na intenção de me espancar, o que teria feito, com grande competência, se outros escritores não o interceptassem a meio do percurso. Meses mais tarde, compareci ao lançamento de um livro de Ruy. Ele abraçou-me. Desculpou-se: “Sabes como é, emociono-me.” Ruy, que morreu na Namíbia em 2010, deixou uma obra poderosa, originalíssima, na qual a poesia e a antropologia confluem num mesmo amor pelos povos nômades do extremo sul de Angola.

Pouco antes desse episódio, um jornal muito popular, o “Folha 8”, publicara uma pretensa investigação sobre o meu passado, tentando provar que em 1975, no início da guerra civil, eu teria sido violado por um batalhão de guerrilheiros. A notícia circulou durante anos e ainda hoje, vez por outra, alguém se aproxima de mim com um ar pesaroso: “Lamento aquilo que lhe aconteceu, lá atrás, mas você tem de ultrapassar isso. O que passou, passou.” Ultrapassar? Foi um batalhão, caramba!

O que Mia estava tentando dizer, no momento em que foi interrompido, é que a situação atual no Brasil nos lembra muito os meses da instalação da loucura, em Angola e Moçambique, pouco antes do início das respetivas guerras civis: a divisão da sociedade e das famílias; a impossibilidade do diálogo; a deslegitimação das instituições; a propagação de boatos e de notícias falsas; a normalização do absurdo.

Acredito, como Mia Couto, que a única forma de contrariar o alastramento da insensatez e da violência passa por restabelecer o diálogo. Por muito difícil que possa parecer, é imperioso parar e ouvir o outro. Nenhum político é tão mau, ou tão bom, que justifique que, por divergências quanto à sua maldade, ou bondade, um filho deixe de falar com o seu pai. Nada justifica uma guerra civil.

Em Angola, depois que a guerra terminou, testemunhei muitas vezes a aproximação entre pessoas que haviam combatido umas contra as outras. Assisti ao espanto de antigos inimigos no instante em que se descobriam próximos, partilhando os mesmos gostos e paixões, rindo das mesmas piadas. “Afinal éramos família e não sabíamos” — disse-me um general. Infelizmente, entre o início da loucura e o regresso da sensatez, milhares e milhares de pessoas desapareceram no processo.
José Eduardo Agualusa