quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Brasil já era

 


O viagra do Bozo

Já repararam? Toda vez que a aprovação do presidente começa a, digamos, perder potência, ele convoca uma motociata. Tivemos uma quarta (ou quinta?), no ano que corre – o que indica que a força do homem que desgoverna o país anda bastante ameaçada. Nessas horas, nada como ter uma máquina possante entre as pernas.

Afinal, o que é uma motociata? Um monte de homens que, montados em objetos barulhentos, tentam intimidar seus opositores e ostentar a própria potência. Verdade que o sólido “corpo” da motocicleta tem que ficar firme entra as pernas de quem as pilota. Compreendo a ilusão de potência causada, mesmo entre mulheres, por essa inocente conjunção. Além disso, motos fazem barulho, a depender do uso do acelerador de quem pilota. Mas, ora essa: a potência das motocicletas não necessariamente se transfere a quem está em cima delas. As motociatas do presidente são um recurso que lembra a birra da criança contrariada: esperneia e berra o quanto pode, mas não consegue convencer o adulto a fazer o que ela quer.

No caso, os supostos “adultos” disponíveis não são lá muito confiáveis. A oposição, num congresso liderado por Lira e Pacheco, lembra a mãe que dá logo o doce à criança para não ter que enfrentar a tal birra. Cabe a nós, os 64% de brasileiros que desaprovam o presidente, o papel dos adultos na sala. Não sei se estamos preparados para tanto. Ainda nos vemos atônitos, tentando entender como isso foi acontecer e como devemos agir. Intimidar o birrento é inoperante. Não somos capazes de imaginar maldades e ameaças a altura das que ele e de seus seguidores já praticam há quase dois anos.


Como foi mesmo que ele foi parar no posto para o qual não estava preparado? Ah, claro: a corrupção. Quem leu Brasil, uma Biografia, de Heloisa Starling e Lilian Schwarz, sabe que a corrupção está incrustrada no Estado brasileiro desde a monarquia. Foi o pretexto (não a causa justa) para prender Luís Inácio e tentar desmoralizar o Partido dos Trabalhadores. Então me expliquem por que agora, com dezenas de indícios na família Bolsonaro, ninguém mais se importa com a corrupção? Gente hipócrita.

Moro era o herói do Brasil?[1] Por que então as condenações que passaram por sua pena, na Lava Jato – a começar pela de Luís Inácio Lula da Silva – estão hoje sob suspeição?

Agora inventaram um pretexto novo para desmoralizar nossa esquerda pra lá de light: o extremismo bolsonarista – cujos exemplos mais grotescos tentarei enumerar logo adiante – é o contraponto a seu antípoda à esquerda, o extremismo petista. Parte da população repete esse mantra bovinamente. A imprensa liberal faz tentativas patéticas de peneirar uma “terceira via” entre as opções candidatos que não chegam a dois dígitos nas intenções de voto. Uma parte mais esclarecida da burguesia resolveu declinar de sua preferência pelo presidente vexatório e violento, desde que surja a tal terceira via entre os dois extremos. Desde que única alternativa não seja, tipo assim… o extremista Lula. Seria cômico, se não fosse trágico.

Ora, senhores. Seria ofensivo chamá-los de desinformados ou pouco inteligentes. Talvez prefiram que eu os considere apenas de má fé. Por uma feliz coincidência, isso é exatamente o que me parece: má fé. Lula, extremista?

Talvez não estejam se lembrando da Carta ao Povo Brasileiro, na qual Lula, na campanha de 2002, garantiu que não mexeria no lucro dos bancos. Parte de seus apoiadores de esquerda quis pular do barco naquele momento. Nosso perigoso extremista reuniu-se com o grupo (ao qual fui agregada, embora não quisesse pular do barco) e nos deu uma aula de materialismo histórico. Conhecia o país que queria governar. Não sonhava com uma sociedade pronta para o socialismo – o qual, vale esclarecer, nunca esteve no seu horizonte – e sim com uma sociedade que, de conservadora e vergonhosamente desigual, pretendia em seu governo começar a transformar atacando (perdão: não consigo nenhum substituto a altura para o bom e confiável gerúndio) seu pilar mais podre: a tremenda desigualdade social. Resumiu seu projeto – lembram-se? – assim: em meu governo quero conseguir que cada brasileiro tome café da manhã, almoce e jante. Perigosíssimo, não?

Bem, talvez a modesta proposta do candidato do PT cause algum desconforto, alguma instabilidade emocional, digamos, para o 1% dos brasileiros que detém 50% da riqueza que o Brasil produz.[2]

Para um país que escravizou africanos durante três séculos, isso parece tão extremista quanto propor uma revolução. Para um país que aboliu a escravidão, sem conceder nenhuma reparação aos descendentes de africanos trazidos para cá a força, mantidos em cativeiro e punidos a chicotadas, pareceu ameaçador a uma parte da elite o fato de o governo Lula promover – através da lei das cotas – que parte dessa gente estudassem nas mesmas universidades que seus filhos. E o Bolsa Família, então, que elevou milhões de pobres às classes médias? Escutei mais de uma vez, em várias filas de embarque, pessoas reclamando das famílias de aparência modesta que faziam sua primeira viagem de avião. “Esse aeroporto está parecendo uma rodoviária”!

A sucessora de Lula, Dilma Roussef – ex-presa política e vítima de tortura – ainda teve o desplante de conseguir que o congresso votasse pela instauração de uma Comissão Nacional da Verdade. Sim, o Brasil foi o único país, dentre os que sofreram ditaduras militares na América Latina – a só aprovar a criação de uma CNV três décadas depois da redemocratização. Não conseguimos apurar quase nada, pois os militares que convocamos a depor tinham direito de não falar nada – e assim fizeram.

Mesmo assim, a CNV incomodou muita gente. Em uma das audiências da Comissão na Câmara dos Deputados o atual presidente fez uma performance macabra ao homenagear o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. O mesmo que torturou a presidente. Os colegas não acharam que o gesto tenha ferido o decoro parlamentar. Talvez tenham perdoado o que teria sido só uma reação emocional diante do extremismo da presidenta que criou uma Comissão para apurar, com três décadas de atraso, os crimes cometidos pelo Estado Brasileiro no período 1964-85. A homenagem de Bolsonaro ao Ustra ficou por isso mesmo. Tudo o que sofremos hoje terá começado ali?

Dilma não conseguiu aprovar que a Comissão da Verdade – como na Argentina, Uruguai e Chile – fosse também da Justiça. Teve que abrandar seu projeto. Mesmo assim, incomodou. Pessoas desinformadas perguntavam se não investigaríamos “o outro lado”. O lado dos “terroristas”. Não adiantava esclarecer que este “lado” não era simétrico ao outro, pois crimes comuns não devem ser equiparados a crimes de Estado. Nem adiantava argumentar que componentes do “outro lado” já tinham sido presos, torturados e, em muitos casos, assassinados na prisão. Corpos de 126 desses jovens nunca foram encontrados. São, até hoje, desaparecidos políticos.

Diante de tais “extremismos”, não é de se espantar que depois de 14 anos de governos petistas o Brasil fosse à forra elegendo um capitão reformado (por indisciplina) adepto da tortura. Isso não escandalizou a maioria dos seus eleitores. O problema é que, bem… ele não tem a menor ideia do que significa governar um país. O rictus cada vez mais tenso de sua expressão revela que está desnorteado e amedrontado.

Não, essa não uma notícia alvissareira.

Depois do fracassado desfile de tanques de guerra tentando intimidar os deputados que votariam contra a proposta do voto impresso, Bozo conclama “seu” exército, as polícias militares [3] e a multidão de apoiadores de bota e berrante a manifestar, dia 7, seu apoio a outro projeto de golpe. O congresso continua bovino. Talvez pensem que seja um tanto extremista a iniciativa de tentar barrar o homem que promete um banho de sangue no feriado da Independência, depois de ter sido responsável por quase 600 milhões de mortes por falta de providências sérias contra a Covid-19.

Sem saber o que fazer com o poder que lhe foi atribuído, o presidente tenta demonstrar força prometendo direito ao porte de fuzis para seus apoiadores. Nem por isso se considera extremista; mas alerta seus opositores de que “tudo tem limite”. Onde já se viu promover uma eleição com os mesmos métodos transparentes utilizados desde a redemocratização? Métodos que, aliás, o elegeram em 2018, com uma ajudazinha da disseminação de mentiras (chamadas, elegantemente, de fake News) contra Fernando Haddad, candidato do PT.

A investigação, antes tarde do que tarde demais, dessa fraude eleitoral, corre o risco de também ser considerada uma iniciativa extremista, a ser enfrentada com ameaças de golpe iminente. É o que trama o ex-capitão, que como mandatário da nação detém o comando do exército: o mesmo do qual quase foi expulso em 1986 por insubordinação. Salvou-se pelo temor, entre os de alta patente, de que sua punição provocasse uma insurreição entre militares de patentes mais baixas.

No outro “extremo” do cenário eleitoral encontra-se, com mais chances do que o ex-capitão, Luís Inácio Lula da Silva. A julgar pelas pesquisas de intenção de voto, no momento que escrevo, ele derrotaria Bolsonaro por larga vantagem no segundo turno. Que perigo, pessoal. A volta dos descendentes de escravos aos bancos das universidades. A volta dos pobres nos aviões. A volta de remuneração digna para os trabalhadores. A volta de alguma leveza, alguma alegria, alguma esperança de melhora nesse país hoje dominado pelo ódio de classe, o racismo, a miséria e o desencanto.

Posso apostar que muitos de vocês anseiam pela tal terceira via. Mesmo que não tenha projeto de via nenhuma. Antes que a motociata anunciada para o 7 de setembro faça outro “Búúú!” nas nossas caras assustadas.

Notas

[1] Certa vez vi numa banca de jornal um livro com a cara quadrada do ex-juiz com esse título: Moro, o herói do Brasil.

[2] Relatório do banco Credit Suisse sobre a riqueza global: no Brasil, 1% dos ricos detém 44% da riqueza. Citado por Marilene Felinto em sua coluna na Folha de São Paulo de 29 de agosto. A grande ameaça de um novo governo Lula seria de que a vantagem desproporcional dos ricos voltasse a cair, como em 2010, para 40,5%.

[3] Uma das recomendações da Comissão da Verdade era pelo fim da militarização das polícias – essa excrescência da Ditadura de 1964-85.

Estratégia do fracasso

Em 8 de março do ano passado, a caminho de Washington, onde se encontraria com o então presidente Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro fez uma escala em Roraima e foi recepcionado por 400 apoiadores, ocasião em que anunciou a convocação de seus partidários para uma grande manifestação em 15 de março. Objetivo: pressionar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). “É um movimento espontâneo, e o político que tem medo da rua não serve para ser político”, disse. Na verdade, nada era espontâneo, tudo estava sendo convocado pelas redes sociais, por um exército de robôs comandado pelo vereador Carlos Bolsonaro, o seu filho 02, que exerce o mesmo papel até hoje.

Pretendia pressionar o Congresso a votar seus projetos de regulamentação da execução de emendas parlamentares e politizar a pandemia da covid-19 e o fracasso da sua política econômica, que havia resultado num crescimento de apenas 1,1% do PIB em 2019. Uma retrospectiva do que veio depois mostra que deu tudo errado. A pandemia não era uma “gripezinha”, já se aproxima de 600 mil mortos e ainda nos ronda; a pressão sobre o Congresso fracassou, resultou num acordo com o Centrão, no qual boa parte dos investimentos do Orçamento da União ficou sob controle do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o homem que tem na gaveta os pedidos de impeachment do presidente da República.


Mesmo assim, Bolsonaro insiste na estratégia fracassada. Ontem, chegou a Uberlândia montado num cavalo; depois, participou de uma motociata pelas ruas de cidade. “Vocês que devem dar o norte para todos nós que estamos em Brasília. E esse norte será dado com muito mais ênfase, com muito mais força no próximo dia 7”, disse o presidente da República, para quem os protestos do Dia da Independência, na semana que vem, serão um “momento ímpar”, no qual pretende dar “um recado para o Brasil e para o mundo, dizendo para onde este país irá”. O que será?

Cercado por apoiadores, com carros de som tocando jingles de campanha de 2018 (um crime eleitoral, que já custou os mandatos de muitos vereadores e prefeitos), disse que chegou a hora de “nos tornarmos independentes para valer”. Arrematou com a velha cantilena populista, que incendeia as manifestações, mas ignora o fato de que temos instituições políticas consolidadas e fortes, que atravessaram décadas e sobreviveram aos seus algozes eventuais: “Não aceitamos que uma ou outra pessoa em Brasília queira impor a sua vontade. A vontade que vale é a vontade de todos vocês”, afirmou. Obviamente, é uma alusão aos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Após terminar o discurso em Uberlândia, seus apoiadores gritavam “eu autorizo”. Esse é o título de um abaixo-assinado que circula nas redes sociais, autorizando-o a fechar o Supremo e dar um golpe de Estado. Bolsonaro tem uma interpretação própria do artigo 142 da Constituição, na qual a atribuição de “comandante supremo das Forças Armadas” lhe daria o papel de suposto “Poder Moderador”. A ida a Uberlândia não foi por acaso: o Triângulo Mineiro é um importante centro de distribuição de mercadorias e grande mercado de carne bovina, para os quais convergem caminhoneiros de todas as regiões do país. A agenda de Uberlândia teve por objetivo convocar apoiadores para a manifestação que pretende realizar em Brasília no 7 de Setembro, que, desde ontem, dá sinais de desmobilização, segundo Polícia Rodoviária Federal (PRF), que monitora as estradas do país.

Não será surpresa outra incursão semelhante em São Paulo, onde enfrenta dois adversários figadais: o governador João Do- ria (PSDB) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em Brasília, o Congresso e o Supremo reagiram à mobilização, obrigando o presidente da República a reduzir a virulência de seu discurso. Em São Paulo, a tarefa coube aos agentes econômicos, principalmente à Fiesp, cujo prédio é um dos símbolos da Avenida Paulista, ao lado do Museu de Arte São Paulo (Masp), com seu espetacular vão central aberto ao público.

A transformação do 7 de Setembro num Rubicão pode não ter sido uma boa ideia por parte de Bolsonaro, simplesmente porque as legiões não pretendem acompanhá-lo nessa travessia, somente a extrema-direita, cujos líderes estão sendo investigados pela Polícia Federal no inquérito das “fake news”. Um deles, o ex- deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB, teve sua prisão preventiva prorrogada. Quando fala em defesa da liberdade, Bolsonaro se refere exatamente a esses partidários que apostaram no golpe de Estado e, agora, estão enrolados com a Justiça.

A reação à transformação das comemorações do 7 de Setembro numa espécie de insurreição popular de direita foi muito forte não só nos meios políticos e econômicos, mas também nas Forças Armadas. O recado de que não tem apoio militar para dar um golpe de Estado chega por todos os canais, com o comentário de que as instituições são fortes e estão preparadas para garantir o Estado democrático de direito. Por isso, Bolsonaro faz um esforço danado para manter o ímpeto da mobilização.

Industriais e banqueiros põem o rabo entre as pernas e se calam

Um governo que tenta sustar um manifesto a favor do entendimento entre os três poderes da República é o quê? É tudo menos democrático. Por suposto, está interessado em tudo, menos em jogar dentro das quatro linhas da Constituição.

O manifesto assinado por 200 entidades ligadas à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que pedia o restabelecimento da harmonia entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, jaz no fundo de uma gaveta.

Assim quis o presidente Jair Bolsonaro, e para isso escalou o seu cão de guarda, Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica Federal. Guimarães ameaçou prejudicar negócios milionários dos subscritores do manifesto se eles não dessem o dito pelo não dito.



Ao presidente da Caixa juntaram-se o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Ao que tudo indica até agora, eles foram bem-sucedidos. O manifesto acabou vazando, mas não as assinaturas.

Tanto quanto a Fiesp, ficou mal na foto a Federação Brasileira de Bancos. A ideia do manifesto partiu de dois banqueiros, foi comprada por outros e acabou contaminando grande parte do setor industrial. O contravapor foi rápido e na jugular de cada um.

O que poderia dar margem a leitura que o PIB começara a retirar seu apoio ao governo, ficou como prova de que industriais e banqueiros, ao primeiro aperto, põem o rabo entre as pernas. Defender a democracia é bom, mas não perder dinheiro é melhor.

Marco temporal vem a calhar para governo que vê índios como estorvo

Não começou no governo Jair Bolsonaro a discussão a respeito da adoção da tese do marco temporal como vinculante para a demarcação de terras indígenas, decisão fundamental para o futuro do Brasil que, de tão intrincada, o Supremo Tribunal Federal pode de novo adiar nesta quarta-feira.

Mas foi neste governo que esse tema virou mais uma daquelas bandeiras que o presidente brande para se contrapor de forma sempre brutal a qualquer direito de minorias com que não tem qualquer empatia nem qualquer compromisso como governante.

O marco temporal virou um passaporte para Bolsonaro impulsionar uma política de subjugar os povos indígenas e lhes tirar direitos, e é essa a dimensão que o julgamento do STF adquiriu, com a maior mobilização pela vida já organizada em Brasília por representantes de várias etnias.



Foi ainda no julgamento da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, concluída em 2009, que a tese do marco temporal ganhou corpo, incluída entre 19 condicionantes apresentadas pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito ao voto histórico de Carlos Ayres Britto que reconhecia a demarcação contínua da área no Estado de Roraima.

Um parecer da Advocacia-Geral da União, no governo Michel Temer, vinculou toda e qualquer demarcação de terra indígena àquelas condicionantes.

Em resumo, a tese propugna que o direito às terras indígenas assegurado pela Constituição teria a própria promulgação da Carta como marco. Ou seja: para ter assegurado seu direito inalienável às terras, os índios teriam de comprovar estar nelas antes de 1988.

Os defensores dos povos indígenas argumentam que a relação desses povos originários com seu território vai muito além dessa definição arbitrária de tempo. Trata-se de uma “relação cosmológica, antropológica”, como sustentou Samara Pataxó, coordenadora jurídica da Articulação dos Povos Indígenas em recente entrevista à jornalista Renata Lo Prete.

Mais: sustentam que, ao tornar obrigatória a tese do marco temporal, o Supremo ensejará uma extrema judicialização de reservas já demarcadas e a paralisação de novas demarcações (desejo confesso, sempre repetido por Bolsonaro), além de potencializar os conflitos violentos em áreas em disputa.

O voto do relator do julgamento, Edson Fachin, reverte a decisão de 2009 e a jurisprudência, que tem validado o marco temporal como critério.

No mesmo sentido, de amplo reconhecimento ao direito incondicional dos povos originários às suas terras, vai o texto do artigo 231 da Constituição. Ali não se fala que aqueles direitos valem apenas para quem já está nas terras. Da mesma forma, várias das condicionantes de Menezes Direito abraçadas pelo parecer da AGU não resistem a ser cotejadas com o texto da Constituição.

Uma pena que, na prorrogação de um julgamento histórico como o de Raposa Serra do Sol, os ministros tenham concordado com um adendo que acabou por relativizar aquilo que eles mesmos reconheceram com tanta altivez.

Ao celebrar a vitória da demarcação contínua daquele território (e não em ilhas, como era a tese da ocasião para tentar retirar direitos dos índios), o então ministro celebrou que a Corte estivesse dando “o mais sonoro e rotundo não ao etnocídio”. De fato. Mas, ao aquiescer com tantas e tão amplas condicionantes, aquela formação do STF nos trouxe até este novo impasse.

O provável adiamento não retira a polêmica da sala, nem fará com que os indígenas se desmobilizem. Cabe ao STF analisar o caso no contexto de tantas e tão graves ameaças ao direito à existência dessas etnias e de minorias em geral no Brasil. Uma tecnicalidade não pode servir de aval para que se cometam novas e possivelmente cabais violências contra os índios no Brasil, que este governo enxerga como estorvos ao desenvolvimento, a ser removidos.