segunda-feira, 15 de julho de 2024

Candidatos desprezam temas fundamentais para as cidades

Houvesse maturidade política, as próximas eleições municipais deveriam ser encaradas muito além da disputa entre os maridos da Janja e da Michelle. As urgências são maiores que a pinimba. Se interessa aos dois, sob diferentes adjetivos, a rinha maldosamente esconde os problemas mais candentes já encarados pelas cidades brasileiras. São questões de vida e morte, de presente e futuro, mas a polarização forçada não se mostra compungida com o bem-estar alheio. A temperatura indica, o ramerrão deve continuar o mesmo, sem avanços. De quem é a culpa?

Os rios gaúchos nem bem baixaram a níveis toleráveis, ainda existem desaparecidos tragados pelas águas, mas a tragédia climática, até hoje a maior em grandes metrópoles brasileiras, não ocupa os discursos dos candidatos. Desculpe, eles não sabem o que fazem. Mais fácil é proibir livros (que não leram) nas escolas ou exibir fotos de suspeitos (pretos e pobres) mortos à queima-roupa. Como outra distração, vale também querer explorar petróleo em região de recifes de corais na Foz do Amazonas.


A pandemia escancarou a precariedade dos centros urbanos, embora há muito fosse conhecida por seus moradores. A mudança climática, o oportunismo político das más administrações, as oscilações demográficas, as novas matrizes dos meios de produção, enfim, causas do progresso e de seus malefícios (os benefícios aqui não vêm ao caso) não serão resolvidas no gogó da polarização. Demandam raciocínio, lógica e conhecimento. E escolhas sobre as quais a população merece ser consultada.

Além das falhas técnicas, a tragédia gaúcha traz componentes políticos. Que estão presentes noutras cidades, principalmente no Rio e em São Paulo. Inundações, desabamentos, soterramentos — é um cardápio conhecido nas manchetes anuais ao longo de todas as estações do ano. As construções (ou ocupações) em áreas de riscos naturais são um padrão tolerado em nome da falta de habitação nos grandes centros. É um problema social causado pela inação das administrações e seus políticos de plantão. À equação podem ser acrescentadas as casas dependuradas nas encostas. Primeiro se invade, logo depois um vereador obtém a legalização da área, a despeito de a nova população correr risco de vida e ajudar a poluir as águas (porque ali não há coleta de esgoto, como ocorre, aliás, com 44,5% dos brasileiros). Antes um problema de moradia, agora também uma questão de saúde.

A política tirou do vocabulário a ideia de reforma agrária. Mas a reforma urbana jamais entrou na plataforma das administrações. Preferem-se prédios desocupados por décadas em áreas centrais a seu uso como moradia popular, algo que é política pública em metrópoles de países capitalistas desenvolvidos.

Os erros ou acertos urbanos jamais são considerados pelos prefeitos e pelos despreparados vereadores. Nos três últimos anos, São Paulo passa por um frêmito de construção de imensos prédios, a partir da reformulação de seu Plano Diretor. Como justificativa, a necessidade de adensamento próximo às estações de metrô. A vista grossa oportunista não coloca no cálculo do progresso o aquecimento da cidade, algo que ocorre também pela falta de circulação de ar e pelos edifícios altos e espelhados que rebatem o sol. Interessante que Nova York debateu semelhante problema cem anos atrás, quando da reformulação da Park Avenue — e seus legisladores ofereceram soluções. (Não tratarei aqui novamente das sombras à beira-mar de Camboriú, a meca do bolsonarismo, causadas pelos gênios de sempre).

Entre vários outros problemas (como as cracolândias), as plataformas dos candidatos poderiam se ater às questões trazidas pela longevidade da população. Nem falarei das creches, porque isso já foi resolvido por nossos estadistas. O tempo passou para aquelas crianças que não foram atendidas na infância. Quem sabe na velhice… Pense em envelhecer em São Paulo ou no Rio. De cara, as calçadas, onde centenas de pessoas são tragadas diariamente por suas crateras. Depois as bicicletas dos deliveries que disputam espaço. Por educação ideológica não se deve falar dos motoboys que avançam as faixas em cima dos pedestres (talvez seja uma luta de classes motorizada).

Países como Suécia ou Japão já estabelecem políticas públicas diante do rápido envelhecimento da população. Questões como moradia, centros de amparo, pisos seguros, rampas, entre outras, estão no cardápio. Anos atrás, os ingleses criaram o Ministério da Solidão. Sem ser cínico, não sei o que os candidatos a prefeito pensam sobre o tema. Me parece algo muito delicado para perguntar na frente das crianças.

Pensamento do Dia

 


Poema aos Homens do nosso Tempo - VIII

Lobos? São muitos.
Mas tu podes ainda
A palavra na língua
Aquietá-los.

Mortos? O mundo.
Mas podes acordá-lo
Sortilégio de vida
Na palavra escrita.

Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares
Se à lucidez dos poucos
Te juntares.

Raros? Teus preclaros amigos.
E tu mesmo, raro.
Se nas coisas que digo
Acreditares.

Hilda Hilst

Insônia

Foi no tempo do terror, a ditadura. Eu não conseguia dormir. O medo era grande. Amigos já tinham sido mortos. Levantei-me, fui até a janela do prédio e olhei. A cidade dormia. O silêncio era quebrado apenas pelos apitos dos guardas noturnos, informando os ladrões da sua aproximação. Olhei para o céu estrelado. Pensei que ele tinha estado lá por bilhões de anos e continuaria a estar lá daqui a bilhões de anos. Lembrei-me do que um prisioneiro deixou escrito na cela de um campo de concentração nazista: “Daqui a cem anos tudo isso terá passado”. Com essas palavras na cabeça, voltei a dormir.

Rubem Alves, "Ostra feliz não faz pérola"

Este é o patrimonialismo no Brasil

O “rouba, mas faz”, “sabe com quem está falando”, as “rachadinhas”, o caso das joias, o orçamento secreto, o jeitinho brasileiro para tudo, o pistolão, a carteirada e tanta coisa mais são manifestações de uma coisa ainda mais antiga do que o Brasil: o patrimonialismo.

Trata-se mais do que um sistema de governo e de relações de poder, que resvala para uma cultura mais ampla e para uma maneira de ser. Uma de suas características é a inexistência de distinção entre público e privado. Se tenho um cargo de governo, posso meter a mão à vontade. Só tenho de evitar indiscrições, porque parte das leis e do Código Penal foi escrita sob outros princípios.


Em Economia e Sociedade, Max Weber definiu o patrimonialismo como um sistema de poder e de governo. Por aqui, os pensadores mais importantes a identificar o patrimonialismo como um dos principais traços da política e da cultura local foram Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, e Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder.

Chegou ao Brasil com as instituições coloniais. As capitanias hereditárias distribuíram territórios em que o donatário mandava e tinha como seu qualquer bem de sua propriedade – ou de seu patrimônio.

Outras manifestações do sistema no Brasil são o clientelismo, o mandonismo, o coronelismo e o corporativismo. Contam mais as relações pessoais e familiares (nepotismo) e menos a competência do favorecido. As nomeações sempre comportam o “toma lá dá cá”, favores se retribuem com favores, pouco importando o interesse público.

No sistema, a corrupção e o roubo são quase incompreensíveis. Como posso roubar o que já é meu? E é o que explica em boa parte por que a Operação Lava Jato fracassou e por que a Justiça acabou por apegar-se a questões processuais para jogar fora a criança com a água do banho.

No Brasil, as esquerdas também foram tomadas por variações patrimonialistas. O aparelhamento de instituições públicas é justificado pela necessidade de tomar o “estado burguês”, supostamente em benefício da causa maior, que é a redenção social, digamos assim, embora muitas vezes essa tomada desemboque na apropriação pessoal de bens do Estado. Tudo o que não vai nessa direção é entendido como neoliberalismo ou submissão ao imperialismo.

Até agora, o presidente Lula parece não ter entendido por que o Banco Central e as agências reguladoras têm funções próprias previstas em lei e não devem ser submetidas a determinações do maioral da hora.

O patrimonialismo explica por que, no Brasil, o desenvolvimento acaba emperrado, por que o protecionismo corrói a competitividade da indústria e por que tantas oportunidades históricas são perdidas.

Como mudar isso? Alguma coisa já vem mudando. Bem ou mal, o espírito republicano vai sendo incorporado. Mas coisas tão arraigadas no jeito de ser do brasileiro levam mesmo tempo para mudar.

Todos os irmãos Batista

Faz bastante tempo, e muitos de vocês nem eram nascidos, havia duas irmãs muito famosas. Eram as irmãs Batista, Dircinha e Linda, cantoras. Havia uma outra chamada Odete, mas que não entrava na história.

As irmãs Batista da minha infância eram rainhas do rádio. Pode não parecer nada hoje, mas o título importava na época em que o rádio era a única diversão. As irmãs Batista cantavam em filmes de carnaval. Se me lembro bem, elas puxavam um pouco nos erres. O pai foi ventríloquo e cantor. Fez tudo para que as filhas seguissem a carreira artística.

É coisa de velho, eu sei, mas cada vez que falam nos irmãos Batista, o que me vem à lembrança são as irmãs Batista da minha infância. Os irmãos Batista, Joesley e Wesley, não são cantores, embora os nomes sugiram uma dupla de sertanejo universitário. Vendem carne para o mundo e surgiram num grande escândalo no governo Temer. Foi gravada uma conversa com o presidente em que um deles falava de suas visitas e de seus agrados a Eduardo Cunha, para que ele não contasse todas as aventuras do PMDB com os empresários.

A frase de Temer ficou muito conhecida:

— Tem que manter isso aí, viu?

Mantenham isso, quer dizer, continuem tratando bem o Cunha para evitar escândalo. Mas o escândalo explodiu a partir daí, e os irmãos Batista fizeram longos depoimentos, delações premiadas, e sua história rolou por muito tempo na imprensa.



Passados alguns anos, depois de tanta exposição, os irmãos Batista voltam à cena. O ministro Dias Toffoli perdoou uma multa de R$ 10,3 bilhões definida no acordo de leniência que fizeram com as autoridades. A mulher de Toffoli tinha trabalhado como advogada dos Batistas, mas tudo parece ter sido uma coincidência.

Os Batistas foram ao exterior convidados na caravana do ministro da Agricultura. Afinal, são exportadores de proteína animal. Participam de seminários com autoridades, e parece que organizam também alguns debates sobre grandes temas nacionais.

Os irmãos Batista entraram no ramo da energia. Compraram várias pequenas produtoras e criaram a Âmbar, que venderia para a distribuidora Amazonas Energia, uma empresa falida. Teriam enlouquecido? Vender energia para quem não paga nem pode pagar! O governo resolveu a questão editando uma Medida Provisória em que pagamos todos a dívida da empresa falida, e o negócio fica viável para os Batistas. A Amazonas devia mais de R$ 10 bilhões; agora, quem deve somos nós, que pagaremos aos poucos em nossas contas. No último dia 28, a empresa dos irmãos Batista formalizou um plano de compra da distribuidora beneficiada pela MP do governo.

Eles visitaram 16 vezes o Ministério de Minas e Energia, mas o governo continua dizendo que foi tudo uma coincidência. É o célebre “não é o que você está pensando”, que sempre aparece quando descobrimos o casal na cama sem roupa.

O governo deveria prestar mais atenção a esses detalhes, se é que podemos chamar de detalhes os bilhões que, por coincidência, acabaram favorecendo Joesley e Wesley. Eles podem cantar de novo, e ficaremos sabendo que, no fundo, nada mudou: o país continua sendo saqueado como foi no passado recente.

A recusa em aceitar uma nova relação se manifesta também na insistência em manter no cargo um ministro das Comunicações acusado pela Polícia Federal de desvio de verbas públicas. Ele ficará no cargo até que provem sua culpa. No governo Itamar Franco, foi inaugurada a prática de o acusado deixar o cargo para provar sua inocência. Regredimos, portanto.

Neste momento em que os irmãos Batista aparecem com a corda toda, manobrando bilhões que, por coincidência, lhes são legados por decisões de um ministro do STF e por uma Medida Provisória do governo, lembro-me das irmãs Batista.

No meio da década de 1980, elas foram recolhidas em seu apartamento na Rua Barata Ribeiro, em Copacabana, por uma ambulância. Estavam paupérrimas, desnutridas, na miséria. Foi um choque ver o estado das rainhas do rádio, destituídas de todo o esplendor de sua carreira. Eram apenas artistas populares num país que segue na normalidade, exceto por alguns eventos extremos, tiroteios intensos, incêndios e devastações em nossas matas. Pátria amada, Brasil.

América do Sul se autossabota mesmo em cenário favorável

Foi uma cúpula histórica para o Mercosul na segunda-feira (08/07) em Assunção, capital do Paraguai: após várias tentativas, a comunidade econômica sul-americana aceitou a Bolívia como quinto país-membro. O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, comemorou a adesão como um grande passo estratégico. O Mercosul se tornará agora um importante elo na cadeia produtiva para a transição energética global, disse Lula.

O bloco expandido poderá, de fato, se tornar um ator fundamental na transição das economias mundiais para processos de emissões zero de gases de efeito estufa: a Bolívia e a Argentina têm as maiores reservas mundiais de lítio, utilizado na produção de baterias. Em países membros como Uruguai, Paraguai e Brasil, a eletricidade é gerada predominantemente a partir de fontes de energia renováveis. O Mercosul também pode fornecer uma vasta gama de terras-raras e outros minerais críticos, que estão se tornando cada vez mais importantes para o Ocidente em meio a tensões geopolíticas entre a China e os EUA.

Conclusão: com a adesão da Bolívia, o Mercosul ganha peso geopolítico. Isto torna a comunidade econômica sul-americana mais atraente como região parceira para potências mundiais concorrentes - da China aos EUA e à Europa.

Mas, na América do Sul, muitas vezes um passo em frente é seguido de um passo para trás. Isso porque alguém não quis participar da cúpula: o presidente da Argentina, Javier Milei.


A Argentina é a segunda maior economia do bloco sul-americano, atrás apenas do Brasil. No entanto, o presidente libertário preferiu enviar sua ministra das Relações Exteriores.

Milei já havia feito uma afronta ao Brasil. Na véspera, havia viajado para Santa Catarina a convite do ex-presidente Jair Bolsonaro para um encontro de populistas de direita. Foi a primeira viagem de Milei ao país vizinho desde que assumiu o cargo, em dezembro. A antes da viagem ele voltou a descrever Lula como um "comunista corrupto”.

Com suas constantes aparições sem todo o mundo como estrela pop da nova direita, Milei aparentemente quer garantir popularidade entre seus seguidores. Mas o presidente argentino parece representar cada vez menos os interesses da política externa de seu país. E, ao fazer isso, está isolando cada vez mais a Argentina e prejudicando a si próprio.

Milei usa suas aparições no exterior para alimentar seu ego, em vez de promover a Argentina ou negociar parcerias. Selfies com empresários do Vale do Silício ou com políticos como Trump parecem ser mais importantes para ele do que visitas aos seus parceiros comerciais mais importantes (Brasil, China, EUA, UE). Além disso, a sua política externa está ser tornando cada vez mais ideológica.

Na semana passada, ele instruiu sua ministra das Relações Exteriores a rejeitar, em uma reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA), quaisquer resoluções relacionadas à Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável. As passagens sobre gênero, violência baseada no gênero, LGBTQ+ e alterações climáticas devem ficar de fora da declaração final.

O rumo ideológico cada vez mais direitista de Milei poderá bloquear novamente as negociações entre Mercosul e UE - como aconteceu sob o governo do ex-presidente Bolsonaro no Brasil. Naquela época, a UE congelou as negociações por mais de três anos por causa das políticas climáticas de Bolsonaro e sua falta de interesse em combate o desmatamento da Amazônia.

Para os numerosos opositores do acordo entre Mercosul e Europa, o rumo estritamente direitista de Milei é um trunfo.

A política ideológica de direita de Milei poderá, mais uma vez, se tornar um argumento - ou melhor: um pretexto - para interromper as negociações.

O fato de Lula não ter embarcado em declarações polêmicas contra Milei na cúpula é uma prova do pragmatismo do presidente brasileiro.

"É uma bobagem imensa o presidente de um país como a Argentina não participar da reunião do Mercosul. É triste para a Argentina", disse.

Mas Lula esqueceu de acrescentar: é igualmente triste para a América do Sul que os Estados da região raramente consigam falar em uníssono.