sexta-feira, 12 de janeiro de 2018
A política rarefaz o ar da economia no Brasil
Meses de festas e férias, e o mormaço do verão. A vida assume outro ritmo e a política tende a ser acomodar à modorra de dezembros e janeiros. Em tese, tudo para. Só que não. A comichão se espalha e, nos bastidores, a articulações se aceleram. É ano de eleição. Num tempo normal, a perspectiva das urnas esquenta tudo, naturalmente. Numa quadra histórica como a que se vive desde 2016, mais ainda a chapa ferve, com risco de derreter. O fato é: não há férias para o desassossego; a vertigem nacional tem fluxo contínuo.
O governo vive de aflição em aflição, sabe bem que seu fim pode estar logo ali, no descontrole das contas públicas e na frustração com o crescimento. Já é tão pouco o que mantém Michel Temer vivo politicamente que qualquer desatenção pode fazer desmoronar o barranco em que se escora. O downgrade de agências de risco não surpreende, mas agrava a situação.
As lentes coloridas dos membros da equipe econômica, sempre positivas, querem enxergar algo de bom em tudo. É do seu papel. Acreditam, diz a fonte em uma notícia qualquer, que o rebaixamento será alvissareiro, pressionará deputados. Será? Pode ser também que não: aliviado pelo mal que já ocorreu — o rebaixamento veio e nada será imediatamente revertido — porque deputados teriam pressa, depois que Inês morreu? Tudo pode, então, ficar para depois, não?
Temer é antes o resultado do sistema; um articulador de pequenos interesses e interesses pequenos. Seu papel é conduzir o clero baixo, tanto quanto possível, para mitigar a aflição econômica de modo que, assim, a economia fizesse a paz da política, pelo menos da Lava Jato.
Para os que o apoiaram, nos mercados, a economia é uma exigência. Mas, para o governo, um imperativo, questão de sobrevivência. Contudo, nada é mesmo simples e a doença há casos em que não há remédio, além do deixar sangrar e do tempo.
O presidente se desdobra mesmo que a saúde física lhe cobre juros. Mas, a verdade é que não tem de onde tirar nada melhor do que aquilo que dispõe: a precariedade de quadros políticos em sua base — e no Brasil atual — é assustadora, de onde pode retirar recursos humanos para operar a recuperação?
Escolheu Carlos Marun como ministro da Secretaria de Governo. Deputado de um único mandato, num ambiente cheio de vícios, Marun se destacou rapidamente em razão da virtude de seus defeitos, com o perdão do paradoxo.
Crê-se que seja o quadro adequado para lidar com os recalcitrantes do governismo, temerosos em votar a reforma e ampliar o fosso com os eleitores. Por falar a língua objetiva da base, calculou Temer que melhor que os bons modos de Imbassahy seriam os maus modos de Marun. Faz sentido, mas após escorregar em rede nacional — admitir a pressão sobre governadores –, Marun recolheu-se aos bastidores, de onde, menos forte, articula as esperanças do governo.
Aliados começaram a abandonar o barco antes do que se supunha. No afã de manter a base, o governo recorreu ao apoio de Roberto Jefferson — uma espécie de Carlos Marun, dos tempos de Fernando Collor — para que indicasse o ministro do trabalho, e apertasse os nós do vínculo de seu PTB com o governo. Jefferson pariu Cristiane Brasil.
Deputada articulada e aguerrida como o pai — o próprio Jefferson — padece da mesma precariedade da base — difícil encontrar alguém sem ''poréns''. Mas, não é papel do Judiciário definir quem o Executivo pode ou não pode nomear ministro. Parece uma interferência indevida, quase um troco, uma desforra.
Todavia, renegar dívidas trabalhistas, já julgadas em última instância, pega mal para um ministro do Trabalho. Ser acusado por gente simples, motoristas e domésticas, arranha tanto a reputação quanto a de um dentista com cárie e banguela. Argumentos em sua defesa, como os do deputado Beto Mansur — ''se for assim, o ministro da Saúde não pode fumar, o dos Transportes, não pode ter multa''— , são, sinceramente, patéticos.
Enquanto o governo fica assim nessa água malparada, esperando fevereiro chegar, a fragmentação eleitoral corrói a base e aprofunda a desinteligência. Já há pelo menos três candidatos que se reivindicam da autodenominado ''centro democrático'' em que o governo diz estar; disputas se acirram e, assim, se desvia o governo de sua pauta.
Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles e Rodrigo Maia se preparam para consumirem-se mutuamente. Buscam demonstrar que são capazes de reunir melhores times que os demais; já insinuam formar ministérios. Faz sentido, procuram atrair setores da elite e do empresariado, no primeiro momento. O diabo, porém, será conquistar a massa — no momento seguinte.
Pelo menos para Alckmin e para Meirelles, o caminho pode não ter volta: para ambos, a eleição de 2018 será a última oportunidade de realizar o sonho da Presidência, que acalentam há anos. Não é fácil renunciar a sonhos. Já para Maia, pode se tratar de cavalo que passa encilhado, como descartar? O deputado percebeu que em política, o poder é destino; há de virar o rosto se a sorte lhe sorri?
Quem abriria mão em nome de quem? Em 1989, Ulysses Guimarães, Aureliano Chaves e Mário Covas não chegaram a qualquer acordo; fragmentaram o centro, abriram espaços para Collor, Lula e Brizola. Nenhum deles conseguiu atrair o outro, tornar-se ponto de confluência de múltiplas forças políticas. E, note-se, eram quadros mais vividos, mais respeitados politica e intelectualmente, mais sagazes e credíveis que os atuais.
A saída para aglutinar o campo governista seria mesmo a natural atração que um governo bem resolvido e bem-sucedido, naturalmente, possui. Mas, esse não parece ser o caso. Voltamos às agruras de janeiro e fevereiro, mencionadas acima. E se fosse o caso — ou improvavelmente vier a ser — porque seria um deles e não o próprio Temer o candidato?
Vive-se, então, certo impasse e assim será pelo menos até abril, até que aos poucos tudo se defina (ou não), já a partir de 24 de janeiro, quando o ex-presidente Lula será julgado pelo TRF da 4a. Região. Enquanto isso, no mormaço de verão, o sol arde, a chuva cai. As cidades param por entre carros engarrafados ou sob águas que brotam dos bueiros. Não há brisa, a febre amarela reaparece. O bafo suspeito do futuro rarefaz o ar.
Carlos Melo
O governo vive de aflição em aflição, sabe bem que seu fim pode estar logo ali, no descontrole das contas públicas e na frustração com o crescimento. Já é tão pouco o que mantém Michel Temer vivo politicamente que qualquer desatenção pode fazer desmoronar o barranco em que se escora. O downgrade de agências de risco não surpreende, mas agrava a situação.
As lentes coloridas dos membros da equipe econômica, sempre positivas, querem enxergar algo de bom em tudo. É do seu papel. Acreditam, diz a fonte em uma notícia qualquer, que o rebaixamento será alvissareiro, pressionará deputados. Será? Pode ser também que não: aliviado pelo mal que já ocorreu — o rebaixamento veio e nada será imediatamente revertido — porque deputados teriam pressa, depois que Inês morreu? Tudo pode, então, ficar para depois, não?
***
Temer foi alçado ao poder somente porque se comprometeu com entregáveis contratados, na economia: desarmar a bomba da ''Nova Matriz'', realizar o ajuste, retomar atividade e boas perspectivas. Implica em, pelo menos, remediar a Previdência Social, desculpa para todos os rombos. Se o presidente não serve para isto, para o que mais serviria? Ele não veio ao mundo para sanear o sistema político, instaurar a moralidade; veio só para isto.
Temer é antes o resultado do sistema; um articulador de pequenos interesses e interesses pequenos. Seu papel é conduzir o clero baixo, tanto quanto possível, para mitigar a aflição econômica de modo que, assim, a economia fizesse a paz da política, pelo menos da Lava Jato.
Para os que o apoiaram, nos mercados, a economia é uma exigência. Mas, para o governo, um imperativo, questão de sobrevivência. Contudo, nada é mesmo simples e a doença há casos em que não há remédio, além do deixar sangrar e do tempo.
O presidente se desdobra mesmo que a saúde física lhe cobre juros. Mas, a verdade é que não tem de onde tirar nada melhor do que aquilo que dispõe: a precariedade de quadros políticos em sua base — e no Brasil atual — é assustadora, de onde pode retirar recursos humanos para operar a recuperação?
Escolheu Carlos Marun como ministro da Secretaria de Governo. Deputado de um único mandato, num ambiente cheio de vícios, Marun se destacou rapidamente em razão da virtude de seus defeitos, com o perdão do paradoxo.
Crê-se que seja o quadro adequado para lidar com os recalcitrantes do governismo, temerosos em votar a reforma e ampliar o fosso com os eleitores. Por falar a língua objetiva da base, calculou Temer que melhor que os bons modos de Imbassahy seriam os maus modos de Marun. Faz sentido, mas após escorregar em rede nacional — admitir a pressão sobre governadores –, Marun recolheu-se aos bastidores, de onde, menos forte, articula as esperanças do governo.
Aliados começaram a abandonar o barco antes do que se supunha. No afã de manter a base, o governo recorreu ao apoio de Roberto Jefferson — uma espécie de Carlos Marun, dos tempos de Fernando Collor — para que indicasse o ministro do trabalho, e apertasse os nós do vínculo de seu PTB com o governo. Jefferson pariu Cristiane Brasil.
Deputada articulada e aguerrida como o pai — o próprio Jefferson — padece da mesma precariedade da base — difícil encontrar alguém sem ''poréns''. Mas, não é papel do Judiciário definir quem o Executivo pode ou não pode nomear ministro. Parece uma interferência indevida, quase um troco, uma desforra.
Todavia, renegar dívidas trabalhistas, já julgadas em última instância, pega mal para um ministro do Trabalho. Ser acusado por gente simples, motoristas e domésticas, arranha tanto a reputação quanto a de um dentista com cárie e banguela. Argumentos em sua defesa, como os do deputado Beto Mansur — ''se for assim, o ministro da Saúde não pode fumar, o dos Transportes, não pode ter multa''— , são, sinceramente, patéticos.
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Enquanto o governo fica assim nessa água malparada, esperando fevereiro chegar, a fragmentação eleitoral corrói a base e aprofunda a desinteligência. Já há pelo menos três candidatos que se reivindicam da autodenominado ''centro democrático'' em que o governo diz estar; disputas se acirram e, assim, se desvia o governo de sua pauta.
Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles e Rodrigo Maia se preparam para consumirem-se mutuamente. Buscam demonstrar que são capazes de reunir melhores times que os demais; já insinuam formar ministérios. Faz sentido, procuram atrair setores da elite e do empresariado, no primeiro momento. O diabo, porém, será conquistar a massa — no momento seguinte.
Pelo menos para Alckmin e para Meirelles, o caminho pode não ter volta: para ambos, a eleição de 2018 será a última oportunidade de realizar o sonho da Presidência, que acalentam há anos. Não é fácil renunciar a sonhos. Já para Maia, pode se tratar de cavalo que passa encilhado, como descartar? O deputado percebeu que em política, o poder é destino; há de virar o rosto se a sorte lhe sorri?
Quem abriria mão em nome de quem? Em 1989, Ulysses Guimarães, Aureliano Chaves e Mário Covas não chegaram a qualquer acordo; fragmentaram o centro, abriram espaços para Collor, Lula e Brizola. Nenhum deles conseguiu atrair o outro, tornar-se ponto de confluência de múltiplas forças políticas. E, note-se, eram quadros mais vividos, mais respeitados politica e intelectualmente, mais sagazes e credíveis que os atuais.
A saída para aglutinar o campo governista seria mesmo a natural atração que um governo bem resolvido e bem-sucedido, naturalmente, possui. Mas, esse não parece ser o caso. Voltamos às agruras de janeiro e fevereiro, mencionadas acima. E se fosse o caso — ou improvavelmente vier a ser — porque seria um deles e não o próprio Temer o candidato?
Vive-se, então, certo impasse e assim será pelo menos até abril, até que aos poucos tudo se defina (ou não), já a partir de 24 de janeiro, quando o ex-presidente Lula será julgado pelo TRF da 4a. Região. Enquanto isso, no mormaço de verão, o sol arde, a chuva cai. As cidades param por entre carros engarrafados ou sob águas que brotam dos bueiros. Não há brisa, a febre amarela reaparece. O bafo suspeito do futuro rarefaz o ar.
Carlos Melo
As brumas de janeiro
Viajaram todos no réveillon, fiquei só em casa, com uma delicada missão: acalmar os quatro gatos durante os 17 minutos dos fogos em Copacabana. No fim, deu certo. Vieram todos para a minha cama, redobrei a atenção com uma delas que tem o hábito de fazer xixi fora do lugar, quando contrariada. Nessa breve semana de férias, constatei que em 2018 vou trabalhar mais ainda. São as circunstâncias. Minha pergunta é esta: que tipo de qualidade necessito para encarar as novas tarefas?
Para fazer mais e melhor, destaco sempre uma delas, que nem sempre me acompanha, na trajetória agitada: concentração. Costumo levar na mochila um velho livro do sexto patriarca da Escola do Sul: Hui Neng, um sábio budista. Volta e meia, bate na tecla da concentração. No seu universo, a concentração é indispensável ao caminho espiritual. Mas nada impede que seja também um instrumento valioso na nossa vida cotidiana.
Definidos objetivo e método, nada melhor que usar os restantes momentos de férias para me dispersar. Ou, pelo menos, sentir a força avassaladora das múltiplas atrações que disputam nossa atenção. Dentro de casa, com livro, tevê e internet, é possível se perder completamente, em romances, ensaios, biografias, perfis, curtas, debates inteligentes e bobagens engraçadas.
Vi um perfil de Francis Bacon, cujos quadros sempre me impressionaram e a quem só conhecia de um livro de entrevistas. Fiquei triste com seu cotidiano pontilhado de crises, suicídio de um de seus amantes no momento de sua grande consagração internacional: a exposição no Grand Palais, em Paris. Lembrei-me de Van Gogh, pobre, dando sua própria orelha para uma prostituta. É como se fosse uma lenda: não me comove tanto. E pensei: as dores dos contemporâneos parecem ser as nossas dores.
Vi os episódios de série “Black mirror”, especialmente “Arkangel” me fez divagar de novo. A mãe decide implantar um dispositivo no cérebro da filha. Através dele, pode localizá-la e até mesmo ver e ouvir o que a menina Sarah vê e ouve. Na sua telinha, a mãe acompanha a cena de sua filha fazendo amor com o namorado. Ela vê o namorado de baixo, com os olhos de Sarah. E ouve a menina dizer frases pornográficas. Numa cena anterior, Sarah aparecia vendo no recreio da escola um filme pornográfico.
É apenas um detalhe em toda a história. No entanto, acionou uma conexão na minha cabeça: andei lendo um pouco sobre um debate acerca do tema nos EUA. Uma das críticas enfatizava que o imaginário sexual da juventude estava sendo colonizado pelos roteiristas de filmes pornográficos. Isso alterava o vocabulário e os próprios sentimentos. “Arkangel” me provoca a voltar ao tema.
Passados os momentos de dispersão, ainda fico intrigado como sou atraído por eles. Como se concentrar num mundo em que milhares de focos disputam sua atenção?
Na estrada, às vezes com pobre conexão, isso é possível. O chamado fluxo de trabalho é também uma âncora no presente. Ainda assim, os fatos seguem acontecendo e não se pode descuidar deles. No entanto, é preciso fazer uma espécie de barreira sanitária. Em outras palavras, o volume de informações que nos orgulhamos de consumir e produzir também pode se voltar contra nós, sobretudo em doses cavalares.
De volta ao futuro imediato, está diante de todos nós um ano desafiador. Acompanhar as eleições, tentar extrair delas a maior mudança possível nas relações entre sociedade e governo é uma tarefa inescapável. O primeiro grande traço do ano eleitoral será desenhado no dia 24 de janeiro em Porto Alegre: o julgamento do recurso de Lula pelo TR4. Teoricamente, o Tribunal pode confirmar, rejeitar, reduzir ou ampliar a pena de Lula. Em qualquer hipótese, tudo terá de ser equacionado de novo, a partir dessa decisão.
Pelo que vi em Curitiba, quando Lula foi depor, as tensões que surgem nesses momentos podem ser superadas com serenidade e algum planejamento para evitar a violência.
Protestos, abaixo assinados, todos fazem parte do jogo político. Mas servem mais como um consolo para Lula do que propriamente uma visão apontando para o futuro. Em caso de confirmação da pena, como conduzir uma candidatura que se choca com a Lei da Ficha Limpa?
Não posso prever em detalhes esse primeiro grande momento do ano eleitoral. Na verdade, ainda o encaro como um incidente do passado. Lula resolveu se candidatar para fugir da Lava-Jato pelos melífluos caminhos da política.
Baixando essa poeira de janeiro, será possível discutir um pouco mais amplamente uma agenda para a mudança. Entre o destino de um condenado e as tarefas de reconstrução do país há uma considerável mudança de foco.
Os anos pertencem a uma teia maior do tempo. Nunca são totalmente novos. Como todos nós, trazem consigo a carga do passado. Até os motins nas cadeias são planejados na véspera do réveillon. Esperemos pois, com paciência, 2018 surgir nas brumas de janeiro.
Para fazer mais e melhor, destaco sempre uma delas, que nem sempre me acompanha, na trajetória agitada: concentração. Costumo levar na mochila um velho livro do sexto patriarca da Escola do Sul: Hui Neng, um sábio budista. Volta e meia, bate na tecla da concentração. No seu universo, a concentração é indispensável ao caminho espiritual. Mas nada impede que seja também um instrumento valioso na nossa vida cotidiana.
Vi um perfil de Francis Bacon, cujos quadros sempre me impressionaram e a quem só conhecia de um livro de entrevistas. Fiquei triste com seu cotidiano pontilhado de crises, suicídio de um de seus amantes no momento de sua grande consagração internacional: a exposição no Grand Palais, em Paris. Lembrei-me de Van Gogh, pobre, dando sua própria orelha para uma prostituta. É como se fosse uma lenda: não me comove tanto. E pensei: as dores dos contemporâneos parecem ser as nossas dores.
Vi os episódios de série “Black mirror”, especialmente “Arkangel” me fez divagar de novo. A mãe decide implantar um dispositivo no cérebro da filha. Através dele, pode localizá-la e até mesmo ver e ouvir o que a menina Sarah vê e ouve. Na sua telinha, a mãe acompanha a cena de sua filha fazendo amor com o namorado. Ela vê o namorado de baixo, com os olhos de Sarah. E ouve a menina dizer frases pornográficas. Numa cena anterior, Sarah aparecia vendo no recreio da escola um filme pornográfico.
É apenas um detalhe em toda a história. No entanto, acionou uma conexão na minha cabeça: andei lendo um pouco sobre um debate acerca do tema nos EUA. Uma das críticas enfatizava que o imaginário sexual da juventude estava sendo colonizado pelos roteiristas de filmes pornográficos. Isso alterava o vocabulário e os próprios sentimentos. “Arkangel” me provoca a voltar ao tema.
Passados os momentos de dispersão, ainda fico intrigado como sou atraído por eles. Como se concentrar num mundo em que milhares de focos disputam sua atenção?
Na estrada, às vezes com pobre conexão, isso é possível. O chamado fluxo de trabalho é também uma âncora no presente. Ainda assim, os fatos seguem acontecendo e não se pode descuidar deles. No entanto, é preciso fazer uma espécie de barreira sanitária. Em outras palavras, o volume de informações que nos orgulhamos de consumir e produzir também pode se voltar contra nós, sobretudo em doses cavalares.
De volta ao futuro imediato, está diante de todos nós um ano desafiador. Acompanhar as eleições, tentar extrair delas a maior mudança possível nas relações entre sociedade e governo é uma tarefa inescapável. O primeiro grande traço do ano eleitoral será desenhado no dia 24 de janeiro em Porto Alegre: o julgamento do recurso de Lula pelo TR4. Teoricamente, o Tribunal pode confirmar, rejeitar, reduzir ou ampliar a pena de Lula. Em qualquer hipótese, tudo terá de ser equacionado de novo, a partir dessa decisão.
Pelo que vi em Curitiba, quando Lula foi depor, as tensões que surgem nesses momentos podem ser superadas com serenidade e algum planejamento para evitar a violência.
Protestos, abaixo assinados, todos fazem parte do jogo político. Mas servem mais como um consolo para Lula do que propriamente uma visão apontando para o futuro. Em caso de confirmação da pena, como conduzir uma candidatura que se choca com a Lei da Ficha Limpa?
Não posso prever em detalhes esse primeiro grande momento do ano eleitoral. Na verdade, ainda o encaro como um incidente do passado. Lula resolveu se candidatar para fugir da Lava-Jato pelos melífluos caminhos da política.
Baixando essa poeira de janeiro, será possível discutir um pouco mais amplamente uma agenda para a mudança. Entre o destino de um condenado e as tarefas de reconstrução do país há uma considerável mudança de foco.
Os anos pertencem a uma teia maior do tempo. Nunca são totalmente novos. Como todos nós, trazem consigo a carga do passado. Até os motins nas cadeias são planejados na véspera do réveillon. Esperemos pois, com paciência, 2018 surgir nas brumas de janeiro.
Um governo de 'notáveis'
Na sexta-feira da semana passada, comentando a indicação de Cristiane Brasil, filha do ex-deputado e presidente do PTB (aquele do mensalão petista) Roberto Jefferson, para dirigir o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), ela escreveu neste jornal que estranhava que se tivesse dito que Temer iria fazer um “governo de notáveis”. Faltariam à moça requisitos de expertise em Trabalho...
Tome tento, d. Eliane, e não confunda o sentido corriqueiro das palavras com as muito estranhas práticas políticas da Brasília real: fui secretária executiva do MTE no primeiro governo Lula e sei muito bem do que estou a escrever. Cristiane Brasil é uma notável – na inteira expressão do termo, tal qual ele é usado pelos entendidos na capital federal. Seu pai é sem dúvida nenhuma um expert (e como!!!) nas questões vinculadas ao ministério que a filha agora passa a presidir. Temer não faria nenhuma melhor escolha do que entregar o galinheiro para as raposas tomarem conta.
Em síntese, por causa de dois fundos dos trabalhadores, o FAT e o FGTS, gerenciados por ele, o MTE fora, nos governos anteriores, o provedor-mor de grana para todo tipo de iniciativa da máquina governamental. Quanto ao FAT, este operava com o BNDES para a realização das operações especiais, sem nenhum controle, e havia dinheiro para ser desperdiçado pelas entidades sindicais e até religiosas, que diziam fazer requalificação profissional, desnudadas por auditorias feitas por nós. O Codefat era um condomínio entre patrões, empregados e representantes governamentais, e nele ONGs iam buscar fundos para prestar “benefícios” destinados a melhorar a vida dos pobres trabalhadores. Além do mais, o Codefat gerenciava também, em parceria com a Caixa Econômica Federal, o Programa do Seguro-Desemprego, fonte de não sei quantas maracutaias. Quanto ao FGTS, este, embora recolhido pelo MTE, na realidade seria entregue ao novo ministério criado por Lula, o das Cidades.
Em toda essa parafernália anterior (FAT, FGTS e Seguro-Desemprego com a CEF), reinavam exatamente o sr. Roberto Jefferson e o ex-ministro do Trabalho, ambos do Rio e ambos representantes do autointitulado legítimo partido dos trabalhadores, o PTB de d. Cristiane Brasil. Dou um exemplo: o MTE não conseguia nunca fazer inspeção na Petrobras porque esses senhores não deixavam.
Como, então, doutora Eliane, a moça não está apta a tomar posse?
A menos que a liminar contra isso realize o que chamam de “judicialização da política”...
Passado vive
Foi há muito tempo, mas descobri que não é verdade o que dizem a respeito do passado, essa história de que podemos enterrá-lo. Porque, de um jeito ou de outro, ele sempre consegue escaparKhaled Hosseini, "O Caçador de Pipas"
Refém por gosto ou fraqueza
Uma vez que por fraqueza, falta de sabedoria ou temperamento não se rebelou em outras ocasiões, nada de diferente deve-se esperar do presidente Michel Temer no caso da nomeação suspensa da deputada Cristiane Brasil para ministra do Trabalho. Inerte ele está. Permanecerá inerte.
Atribui-se ao ex-presidente José Sarney o axioma de que 50% dos problemas não têm solução. Os outros 50% se resolveriam sozinhos. Jamais restou comprovado que Sarney pense ou tenha dito isso. Há, de fato, problemas que acabam resolvidos sem a interferência direta do governante. O tempo encarrega-se deles.
Mas outros, talvez a maioria, cobram do governante, sim, algum tipo de atitude. Temer optou conscientemente por arcar com o desgaste de recuar da indicação do deputado Pedro Fernandes (PTB-MA) para o Ministério do Trabalho. Preferiu acatar o veto de Sarney, adversário político de Fernandes no Maranhão.
Procedeu assim porque quis. “Devo muito a Sarney, sabe?” -, justificou-se. A Cristiane, nada deve. Ao pai dela, o ex-deputado Roberto Jefferson, deve pouco. Jefferson lhe foi fiel até aqui, mas ao preço de benefícios obtidos para si e seus companheiros de partido. Não é por receio de magoá-lo que Temer está inerte. É por fraqueza.
Talvez seja também por ter-se acostumado à condição de refém de terceiros. Cercou-se de amigos para governar e quando alguns se meteram em encrencas, tornou-se refém deles. Sem coragem para mostrar logo de saída as reais dimensões da herança maldita deixada por Dilma, dela tornou-se refém e corresponsável.
Sabe que a política de ceder às piores vontades dos partidos aliados só serve para degradar sua imagem e a do governo, mas é incapaz de revisá-la. A essa altura, prisioneiro dos seus interesses, é um presidente conformado, à espera tão somente de que o tempo passe e esgote seus dias de mandato.
Nada mais ridículo do que teimar em obter uma decisão judicial que garanta a posse de Cristiane depois de três decisões contrárias. Poderá conseguir. Mas não estancará a sangria da deputada, nem a sua por tabela. Aberto o baú das revelações sobre os desacertos de Cristiane, ele seguirá aberto até que outro assunto se imponha.
Vai pagar para ver, Temer?
Atribui-se ao ex-presidente José Sarney o axioma de que 50% dos problemas não têm solução. Os outros 50% se resolveriam sozinhos. Jamais restou comprovado que Sarney pense ou tenha dito isso. Há, de fato, problemas que acabam resolvidos sem a interferência direta do governante. O tempo encarrega-se deles.
Procedeu assim porque quis. “Devo muito a Sarney, sabe?” -, justificou-se. A Cristiane, nada deve. Ao pai dela, o ex-deputado Roberto Jefferson, deve pouco. Jefferson lhe foi fiel até aqui, mas ao preço de benefícios obtidos para si e seus companheiros de partido. Não é por receio de magoá-lo que Temer está inerte. É por fraqueza.
Talvez seja também por ter-se acostumado à condição de refém de terceiros. Cercou-se de amigos para governar e quando alguns se meteram em encrencas, tornou-se refém deles. Sem coragem para mostrar logo de saída as reais dimensões da herança maldita deixada por Dilma, dela tornou-se refém e corresponsável.
Sabe que a política de ceder às piores vontades dos partidos aliados só serve para degradar sua imagem e a do governo, mas é incapaz de revisá-la. A essa altura, prisioneiro dos seus interesses, é um presidente conformado, à espera tão somente de que o tempo passe e esgote seus dias de mandato.
Nada mais ridículo do que teimar em obter uma decisão judicial que garanta a posse de Cristiane depois de três decisões contrárias. Poderá conseguir. Mas não estancará a sangria da deputada, nem a sua por tabela. Aberto o baú das revelações sobre os desacertos de Cristiane, ele seguirá aberto até que outro assunto se imponha.
Vai pagar para ver, Temer?
A democracia como problema
Todo regime democrático tem problemas e prova mais clara desse ponto é a crise presidencial da primeira democracia de massa do planeta, a americana. Qualquer investigação vai demonstrar que o regime democrático moderno não pode ser reduzido às suas dimensões econômicas, mas deve ser lido, como ensinou Marcel Mauss, como um “fato social total” - a democracia é um estilo de vida que afeta todos os espaços de nossas vidas. Ele produz tanto um Roosevelt e um Obama quanto a KKK e um Trump.
Motivada, como compreenderam Marx e Polanyi, pelo desejo desabrido (e legitimado como virtude e talento) de ganhos e empoderamentos infinitos, ofertados num mercado ou palco, a dinâmica democrática seria sempre sujeita a crises ou vista como burla.
Para tanto, basta lembrar que a democracia liberal é o único regime aberto a proposta de sua destituição, conforme vimos na Europa dos socialismos de esquerda e de direita. Tais desvios são o resultado de um paradoxo: a democracia liberal é o único regime explicitamente aberto a autocorreção.
No caso do Brasil, o experimento democrático tem promovido um permanente clamor contra a desordem, a roubalheira e o aumento da desigualdade - questões a serem sanadas pela retorno da boçalidade dos salvadores da pátria. Ou seja: restabelecendo privilégios, impedindo acabar com a consciência de inferioridade, com a aristocratização por meio do Estado, com um sistema educacional destinado a garantir a desigualdade, e, como faz a elite, malandramente mantendo um sistema político alinhavado por semi-ideologias e abençoado por amizades instrumentais. Tudo isso produziu uma estratificação social impecável na qual todos têm um lugar e todos sabem do seu lugar. Para o nosso lado mais atrasado, o ideal seria o de não ter mais que lembrar aos inferiores (que pensam ser nossos iguais) com quem eles estão falando!
Como dar liberdade aos seus inimigos, dizem os reacionários de direita; e como, dizem os de esquerda, ter essa liberdade que rompe tabus e leva a desigualdades?
Sofremos a nostalgia do império e dos regimes ditatoriais que o imitaram. Neles não havia bate-boca, imprensa livre, denúncias negociadas, juízes e procuradores independentes e a crise cujo incômodo maior é a constatação da corrupção estrutural e contraditória dos eleitos.
Nos impérios, governa-se por “direito divino”. Deus abençoava o governante de sangue azul cujo poder transcendia as forças deste mundo. Pensar que os grandes impérios tenham tido como base dimensões fora deste mundo permite uma visão mais clara da revolução republicana, a qual abriu o sistema de poder a todos os seus membros que não são mais acólitos ou súditos de ninguém, exceto de si mesmos. Nela, a família imperial não é mais a dona o Brasil ou a personificação da civilização europeia depauperada nos tristes trópicos. Agora - eis o desafio insuportável - somos administradores de nós mesmos. A chamada “coisa pública” pertence a todos e não pode ser apropriada nem abandonada por ninguém. O traço distintivo das democracias não é uma casta, classe, partido, família ou casa, mas consciências individualizadas e livres.
A passagem de um todo abençoado por Deus para sua parte mais insignificante e mortal - o ser humano individualizado, republicanamente visto como um cidadão detentor de direitos inerentes a sua condição - é um feito de extraordinária coragem e um projeto capaz de desafiar não somente reis e ditadores, mas os deuses!
Não é por acaso que as democracias são muito mais predispostas a terem problemas do que a preveni-los. Não é também por acaso que elas são odiadas por partidos totalitários e por boçais que não suportam dúvidas.
A globalização inventou sua ideologia. Ela põe em foco o planeta como um sujeito do individualismo. Se não há mais limites transcendentais, há o limite planetário que é a nossa totalidade - o nosso palco.
O Brasil vive num oceano de crise, mas o que fazer com o nacionalismo isolacionista de Donald Trump cuja fúria pode destruir o planeta e cuja proposta de censurar um livro que o critica como presidente perturba a mais estável experiência democrática do mundo?
O retorno do proibir como um direito dos que um dia foram proibidos é bem conhecido entre nós. Bem como a convivência com uma pervertida e insuportável contradição entre atores e papéis. Não nos surpreenderia descobrir um santo que jamais acreditou em si mesmo porque sabe de sua salafragem.
O globalismo é tão bipolar quanto as múltiplas éticas brasileiras. A América vai ficando mais parecida conosco e - queiram as fadas - nós com ela, mas não em tudo...
Motivada, como compreenderam Marx e Polanyi, pelo desejo desabrido (e legitimado como virtude e talento) de ganhos e empoderamentos infinitos, ofertados num mercado ou palco, a dinâmica democrática seria sempre sujeita a crises ou vista como burla.
Para tanto, basta lembrar que a democracia liberal é o único regime aberto a proposta de sua destituição, conforme vimos na Europa dos socialismos de esquerda e de direita. Tais desvios são o resultado de um paradoxo: a democracia liberal é o único regime explicitamente aberto a autocorreção.
No caso do Brasil, o experimento democrático tem promovido um permanente clamor contra a desordem, a roubalheira e o aumento da desigualdade - questões a serem sanadas pela retorno da boçalidade dos salvadores da pátria. Ou seja: restabelecendo privilégios, impedindo acabar com a consciência de inferioridade, com a aristocratização por meio do Estado, com um sistema educacional destinado a garantir a desigualdade, e, como faz a elite, malandramente mantendo um sistema político alinhavado por semi-ideologias e abençoado por amizades instrumentais. Tudo isso produziu uma estratificação social impecável na qual todos têm um lugar e todos sabem do seu lugar. Para o nosso lado mais atrasado, o ideal seria o de não ter mais que lembrar aos inferiores (que pensam ser nossos iguais) com quem eles estão falando!
Como dar liberdade aos seus inimigos, dizem os reacionários de direita; e como, dizem os de esquerda, ter essa liberdade que rompe tabus e leva a desigualdades?
Sofremos a nostalgia do império e dos regimes ditatoriais que o imitaram. Neles não havia bate-boca, imprensa livre, denúncias negociadas, juízes e procuradores independentes e a crise cujo incômodo maior é a constatação da corrupção estrutural e contraditória dos eleitos.
Nos impérios, governa-se por “direito divino”. Deus abençoava o governante de sangue azul cujo poder transcendia as forças deste mundo. Pensar que os grandes impérios tenham tido como base dimensões fora deste mundo permite uma visão mais clara da revolução republicana, a qual abriu o sistema de poder a todos os seus membros que não são mais acólitos ou súditos de ninguém, exceto de si mesmos. Nela, a família imperial não é mais a dona o Brasil ou a personificação da civilização europeia depauperada nos tristes trópicos. Agora - eis o desafio insuportável - somos administradores de nós mesmos. A chamada “coisa pública” pertence a todos e não pode ser apropriada nem abandonada por ninguém. O traço distintivo das democracias não é uma casta, classe, partido, família ou casa, mas consciências individualizadas e livres.
A passagem de um todo abençoado por Deus para sua parte mais insignificante e mortal - o ser humano individualizado, republicanamente visto como um cidadão detentor de direitos inerentes a sua condição - é um feito de extraordinária coragem e um projeto capaz de desafiar não somente reis e ditadores, mas os deuses!
Não é por acaso que as democracias são muito mais predispostas a terem problemas do que a preveni-los. Não é também por acaso que elas são odiadas por partidos totalitários e por boçais que não suportam dúvidas.
*
A globalização inventou sua ideologia. Ela põe em foco o planeta como um sujeito do individualismo. Se não há mais limites transcendentais, há o limite planetário que é a nossa totalidade - o nosso palco.
O Brasil vive num oceano de crise, mas o que fazer com o nacionalismo isolacionista de Donald Trump cuja fúria pode destruir o planeta e cuja proposta de censurar um livro que o critica como presidente perturba a mais estável experiência democrática do mundo?
O retorno do proibir como um direito dos que um dia foram proibidos é bem conhecido entre nós. Bem como a convivência com uma pervertida e insuportável contradição entre atores e papéis. Não nos surpreenderia descobrir um santo que jamais acreditou em si mesmo porque sabe de sua salafragem.
O globalismo é tão bipolar quanto as múltiplas éticas brasileiras. A América vai ficando mais parecida conosco e - queiram as fadas - nós com ela, mas não em tudo...
Marcha para o conhecimento
Há 80 anos, Getúlio Vargas lançou a Marcha para o Oeste. Naquela época, população e produção brasileiras estavam concentradas numa estreita faixa do litoral. Em poucas décadas, o país mudou sua distribuição demográfica e econômica e construiu uma geografia mais equilibrada. Hoje, estamos precisando da “marcha para o conhecimento”.
Em 1937, a construção do futuro vinha da ocupação de territórios inexplorados; agora, virá da formação dos cérebros dos brasileiros. A Marcha para o Oeste buscava aproveitar os hectares de terra relegados no interior, a “marcha para o conhecimento” exige aproveitar cada cérebro brasileiro.
Pode-se estimar que, ao longo dos 80 anos da Marcha para o Oeste, pelo menos dezenas de milhões de brasileiros morreram sem educação de base, parte deles sem ter aprendido a ler nem mesmo a própria bandeira. Por isso, a “marcha para o conhecimento” vai exigir uma revolução na educação do Brasil.
Independentemente das características da economia ao longo desses 130 anos de República, é possível imaginar as terríveis consequências do abandono do “território cerebral” de nossa população. A pobreza, a concentração de renda, o desperdício, a corrupção, o atraso e a violência teriam sido evitados se o Brasil tivesse feito uma “marcha para o conhecimento” paralelamente à Marcha para o Oeste.
Para ingressar no futuro, o Brasil precisa fazer sua “marcha para o conhecimento”. No lugar de construir uma capital nova, abrir estradas, fazer hidrelétricas, dar subsídios e apoio técnico ao agronegócio, bastaria implantar um novo sistema educacional de base ao longo das próximas décadas.
Em menos anos dos que foram necessários para a Marcha para o Oeste, o Brasil entraria em um novo tempo de sua história: com produtividade, criatividade, inovação, menos desigualdade, menos corrupção, menos violência e mais participação política.
A “marcha para o conhecimento” exige ainda uma refundação da universidade para que ela se torne uma das melhores do mundo. E seja “alavanca para o progresso” do país, em vez de “escada social” para os alunos. Isso exigirá forte compromisso com o mérito e ligação com a inovação do pensamento em todas as áreas.
A universidade refundada deverá ser uma usina de ciência, tecnologia e inovação, em ligação direta com as necessidades do setor produtivo e social. Não haverá “marcha para o conhecimento” se o setor empresarial brasileiro não se envolver com vigor, especialmente na criação de mercadorias inovadoras. Para isso, o setor de financiamento público deve priorizar empresas cujos produtos se situem no ramo de alta tecnologia.
Dos 3 milhões de brasileiros com 22 anos quando se comemoraram 80 anos da Marcha para o Oeste, não mais do que mil se tornarão cientistas internacionais. E, desses, a metade será forçada a migrar. A terra improdutiva do oeste pelo menos não morria nem migrava.
Em 1937, a construção do futuro vinha da ocupação de territórios inexplorados; agora, virá da formação dos cérebros dos brasileiros. A Marcha para o Oeste buscava aproveitar os hectares de terra relegados no interior, a “marcha para o conhecimento” exige aproveitar cada cérebro brasileiro.
Pode-se estimar que, ao longo dos 80 anos da Marcha para o Oeste, pelo menos dezenas de milhões de brasileiros morreram sem educação de base, parte deles sem ter aprendido a ler nem mesmo a própria bandeira. Por isso, a “marcha para o conhecimento” vai exigir uma revolução na educação do Brasil.
Independentemente das características da economia ao longo desses 130 anos de República, é possível imaginar as terríveis consequências do abandono do “território cerebral” de nossa população. A pobreza, a concentração de renda, o desperdício, a corrupção, o atraso e a violência teriam sido evitados se o Brasil tivesse feito uma “marcha para o conhecimento” paralelamente à Marcha para o Oeste.
Para ingressar no futuro, o Brasil precisa fazer sua “marcha para o conhecimento”. No lugar de construir uma capital nova, abrir estradas, fazer hidrelétricas, dar subsídios e apoio técnico ao agronegócio, bastaria implantar um novo sistema educacional de base ao longo das próximas décadas.
Em menos anos dos que foram necessários para a Marcha para o Oeste, o Brasil entraria em um novo tempo de sua história: com produtividade, criatividade, inovação, menos desigualdade, menos corrupção, menos violência e mais participação política.
A universidade refundada deverá ser uma usina de ciência, tecnologia e inovação, em ligação direta com as necessidades do setor produtivo e social. Não haverá “marcha para o conhecimento” se o setor empresarial brasileiro não se envolver com vigor, especialmente na criação de mercadorias inovadoras. Para isso, o setor de financiamento público deve priorizar empresas cujos produtos se situem no ramo de alta tecnologia.
Dos 3 milhões de brasileiros com 22 anos quando se comemoraram 80 anos da Marcha para o Oeste, não mais do que mil se tornarão cientistas internacionais. E, desses, a metade será forçada a migrar. A terra improdutiva do oeste pelo menos não morria nem migrava.
O mundo é o que você faz
A humanidade precisa se libertar do conceito de Deus e Diabo, e admitir que ela mesma faz o bem e o malGeorge Orwell
Sobre prometer e não cumprir
Acreditei nessa conversa mole/
pensei que o mundo ia se acabar/
e fui tratando de me despedir/
e sem demora fui tratando de aproveitar/
Beijei na boca de quem não devia/
peguei na mão de quem não conhecia/
dancei um samba em traje de maiô/
e o tal do mundo não se acabou
Assis Valente
As luzinhas de Natal não esperaram o Dia de Reis para empalidecer. Sob as chuvaradas de janeiro, os enfeites perderam seu brilho artificial, enquanto as promessas de Ano- Novo perderam a validade logo na primeira semana de 2018. Eram mentirosas. O saldo que fica das festas natalinas, hoje como antes, é sempre igual: cada um é o demagogo de si mesmo, o populista a explorar sua própria esperança; cada um tem o engenho de se enganar covardemente, anunciando recomeços que não recomeçam coisa alguma e proclamando juras que serão desmentidas antes mesmo que o sol apareça para queimar o resto das imposturas do Réveillon. O saldo é sempre o mesmo – e é sempre esquecido, para se repetir um ano depois.
O povo gosta de promessas impossíveis, tanto que, nas festas, empenha-se no autoengano. O cidadão vai lá, pula ondinhas na praia lotada (e imunda), mastiga sementes carregadas de agrotóxico, solta foguete, respira pólvora e promete o invariável ramerrão: parar de fumar, ser fiel, fazer as pazes com a tia rica, arranjar um emprego. Nada disso ele vai cumprir, é claro, mas, para se reanimar, ele depende daquela promessa sem lastro, como se a esperança só fosse possível para quem acredita em algum tipo de lorota.
As eleições no Brasil guardam uma incômoda semelhança com as celebrações de Ano-Novo. Entre a contagem dos votos e o amanhecer do dia seguinte, os eleitores vitoriosos se comprazem em crer que a história do país será refundada e nada mais será igual. Há um prazer insubstituível em sorver esse tipo de crença, por menos que ele dure. Aí, quando tudo dá errado, as multidões se apressam em amaldiçoar “os políticos” por aquilo que não foi cumprido – mas as mesmas multidões se recusam a assumir a responsabilidade por ter acreditado nas promessas. Ato contínuo, passarão a jogar fé em outros políticos, a ponto de acreditar que esses outros políticos não são políticos.
Somos um país que não acredita na política, mas acredita religiosamente em Papai Noel. Há exceções, evidentemente. Uma dessas foi o sambista José de Assis Valente, que, na música “Boas festas”, emitiu nada menos que um atestado de óbito de Papai Noel: Já faz tempo que eu pedi/mas o meu Papai Noel não vem/Com certeza já morreu/ou então felicidade é brinquedo que não tem. No contexto da cultura política brasileira, a audácia de Assis Valente foi maior do que a de Nietzsche, que teria dito qualquer coisa acerca da morte de Deus.
A cultura política brasileira acredita mais em Papai Noel do que em Deus. Em lugar de ter fé num “ser superior”, a nação prefere crer num “ser publicitário superior”. Só mesmo o tal do “bom velhinho”, fantasiado com a cor da Coca-Cola, para dar conta de cessar os padecimentos dessa gente bronzeada que só mostra o seu valor quando batuca. E, por acreditar piamente em Papai Noel, o eleitor brasileiro embarca nas marquetolagens que embalam os candidatos para presente. Assim é no Réveillon, assim é nas eleições.
Num choro laçado em 1938, o mesmo Assis Valente caçoou desse negócio de sair por aí acreditando em qualquer disparate. Com o título de “E o mundo não se acabou”, a letra é a confissão de um sujeito que acreditou numa falsa profecia de apocalipse e se deu mal. Gastou o dinheiro que não tinha, permitiu-se certas indiscrições e se encrencou: Vai ter barulho/e vai ter confusão/porque o mundo não se acabou.
Em sua ironia, Assis Valente tem a elegância de não jogar a culpa em quem fez a promessa fraudulenta e toma para si a responsabilidade por ter acreditado na “conversa mole”. Por ser tão diferente, tão único, pagou um preço alto. Na sua trágica vida real, também se afundou em dívidas, em drogas e em excessos que o venceram e acabaram com o seu próprio mundo. Tentou o suicídio três vezes. Na terceira, em 1958, foi bem-sucedido ao beber formicida com guaraná. Tinha 46 anos.
O sambista suicida que não bajulou Papai Noel, que duvidou das promessas fáceis e que, apesar do sofrimento, cantou uma alegria sem mentiras (minha gente/era triste e amargurada/inventou a batucada/pra deixar de padecer), bem que poderia ser o patrono do ano brasileiro de 2018. Salve o prazer. Salve a verdade.
Quem enfiou a faca na inflação baixa
Fica cada vez mais barato comprar TV, eletrodoméstico, carro, assinatura de internet, móvel, roupa. Ficam cada vez mais salgados planos de saúde, escola, creche, médico, serviços pessoais. Tem sido assim nos últimos cinco anos. Não foi muito diferente no ano da inflação magrinha de 2017, pouco menos de 3%.
A inflação seria mais esquálida se não fossem alguns saltos acrobáticos de preços. O equivalente a mais da metade do IPCA de 2017 veio de planos de saúde, serviços pessoais, Petrobras e da conta de luz caseira.
O que o IBGE chama de “combustível doméstico”, basicamente gás e eletricidade, subiu mais de 15%. Planos de saúde, 13,5%. A mensalidade da escola de crianças aumentou 10%, assim como a gasolina e a taxa de água e esgoto. Os serviços bancários ficaram quase 9% mais caros.
Dá assunto para muita conversa essa inflação persistente de serviços, de saúde e educação e de preços administrados (pelo governo).
A estrela maior desse circo são os preços voadores dos planos de saúde, com alta de 85,5% desde 2012, seguidos de escola das crianças (mais de 80%), combustíveis domésticos (68,5%) e serviços pessoais (63%, grupo composto basicamente de salões de beleza, serviços bancários e empregados domésticos). Na outra ponta, o preço dos eletroeletrônicos regrediu 5%. O de móveis e roupas subiu menos que o IPCA, em torno de 25%; o do carro novo, 6%.
A inflação seria mais esquálida se não fossem alguns saltos acrobáticos de preços. O equivalente a mais da metade do IPCA de 2017 veio de planos de saúde, serviços pessoais, Petrobras e da conta de luz caseira.
Dá assunto para muita conversa essa inflação persistente de serviços, de saúde e educação e de preços administrados (pelo governo).
A estrela maior desse circo são os preços voadores dos planos de saúde, com alta de 85,5% desde 2012, seguidos de escola das crianças (mais de 80%), combustíveis domésticos (68,5%) e serviços pessoais (63%, grupo composto basicamente de salões de beleza, serviços bancários e empregados domésticos). Na outra ponta, o preço dos eletroeletrônicos regrediu 5%. O de móveis e roupas subiu menos que o IPCA, em torno de 25%; o do carro novo, 6%.
No período, a inflação média, o IPCA acumulado, foi de uns 44%. Os salários nominais acompanharam a inflação. Aumento real quase zero, pois.
Não há, claro, princípio segundo o qual os preços devam todos subir tanto quanto a média, ao contrário. Mas a lista de quem está na frente da corrida indica alguns suspeitos e, talvez, problemas na economia.
O que se passa com os preços dos planos de saúde? De creche e escola de ensino infantil, fundamental e médio? Que choque pode vir a causar a dolarização dos preços da Petrobras? Em parte, o poder da estatal petroleira no mercado de gasolina no médio prazo pode ser confrontado pela indústria do etanol. Mas esse não é bem o caso do diesel, para nem falar dos problemas do enrolado mercado de gás.
Não há, claro, princípio segundo o qual os preços devam todos subir tanto quanto a média, ao contrário. Mas a lista de quem está na frente da corrida indica alguns suspeitos e, talvez, problemas na economia.
O que se passa com os preços dos planos de saúde? De creche e escola de ensino infantil, fundamental e médio? Que choque pode vir a causar a dolarização dos preços da Petrobras? Em parte, o poder da estatal petroleira no mercado de gasolina no médio prazo pode ser confrontado pela indústria do etanol. Mas esse não é bem o caso do diesel, para nem falar dos problemas do enrolado mercado de gás.
Preços de energia têm subido muito desde a explosão da crise, em 2015, mas se destacam menos em prazo mais longo. Em boa parte, recuperam-se dos tabelamentos de Dilma Rousseff, ficando próximos da média dos reajustes desde 2012. Ainda assim, a dolarização de derivados de petróleo e o salseiro do setor elétrico, ainda longe de solução, são fatores de risco.
Sem contar os preços de comida em casa, a inflação de 2017 ficou na meta de 4,5%, isso com desemprego nas alturas e queda de 9% do PIB per capita em três anos. Dá o que pensar. Por um lado, um repique modesto do preço da comida deve, claro, elevar a média, o IPCA inteiro. Por outro, é possível que o desemprego ainda alto e a inércia da inflação baixa do ano passado contenham os reajustes salariais, o que é “bom, mas é ruim”, como diria Tom Jobim, em termos mais pitorescos.
Por fim, o preço da comida foi um alívio, sim, em 2017. Mas, nos últimos cinco anos, ainda sobe mais do que a média dos salários. Na rua, ainda se ouve o povo dizer que “as coisas estão caras”.
Sem contar os preços de comida em casa, a inflação de 2017 ficou na meta de 4,5%, isso com desemprego nas alturas e queda de 9% do PIB per capita em três anos. Dá o que pensar. Por um lado, um repique modesto do preço da comida deve, claro, elevar a média, o IPCA inteiro. Por outro, é possível que o desemprego ainda alto e a inércia da inflação baixa do ano passado contenham os reajustes salariais, o que é “bom, mas é ruim”, como diria Tom Jobim, em termos mais pitorescos.
Por fim, o preço da comida foi um alívio, sim, em 2017. Mas, nos últimos cinco anos, ainda sobe mais do que a média dos salários. Na rua, ainda se ouve o povo dizer que “as coisas estão caras”.
Sem humanidade, já era
Quando as pessoas comuns perdem sua humanidade, é péssimo o reflexo sobre o Estado de que são cidadãosTariq Ali, "Medo de Espelhos"
Anitta e a República dos Rastaqueras
O Brasil vive uma crise de identidade cultural. Ao longo do século XX, foi recorrente a busca incessante de interpretações do nosso país. A grande migração do Nordeste para o Sudeste e os deslocamentos do campo para a cidade transformaram radicalmente o país. O nascimento das primeiras metrópoles e suas profundas contradições sociais e políticas fomentaram a necessidade de compreender o momento histórico. Tudo era novo, e as antigas leituras não davam conta das transformações que estavam ocorrendo em ritmo acelerado. O velho ufanismo do Conde de Afonso Celso era ridicularizado. O Brasil moderno necessitava da crítica, e não da apologia despolitizada do passado e do presente.
Na literatura, no cinema, nas artes plásticas, na música foi sendo construída a nossa identidade cultural, produto complexo, contraditório, mas que possibilitou estabelecer diálogo entre as diferentes regiões do país, as classes sociais, os desafios políticos e a elite dirigente. A cultura brasileira tinha uma presença no mundo ocidental. Dialogava com o que havia de mais moderno. Em algumas áreas, acabou se transformando em referência para outras culturas.
Atualmente, o panorama é muito distinto. A crise de identidade cultural pela qual passamos é a mais profunda da nossa história. Hoje, nada ou quase nada nos une. Somos um país fragmentado, dividido. Não há diálogo na música, na literatura, no cinema, nas artes plásticas. A cultura brasileira nada conta para o mundo.
Nesta conjuntura, é possível compreender como algumas figuras caricatas tomaram conta do cenário cultural. A cantora Anitta é o melhor exemplo. É elogiada como um verdadeiro símbolo do Brasil contemporâneo. Uma representante do país para o mundo. A música “Vai malandra” já foi chamada de novo hino nacional. O reacionarismo da letra (falar em versos, aí já é demais), a desqualificação da mulher, a idealização da favela (é favela mesmo; comunidade não passa de uma tentativa de transmudar pela palavra uma vergonha nacional, aceitar a precarização da moradia e das condições de vida de milhões de brasileiros) é dado de barato, como se fosse algo absolutamente irrelevante. Foi até chamada para cantar o Hino Nacional no último Grande Prêmio de Fórmula 1, em Interlagos — seguindo este caminho, logo teremos como intérpretes Ludmilla ou Pabllo Vittar. No réveillon, na Praia de Copacabana, foi considerada a grande estrela. Brindou o público com frase de rara profundidade filosófica, como uma Hanna Arendt dos trópicos: “Vocês acharam que eu não ia rebolar a minha bunda hoje?”
A decadência cultural do país é inquestionável. A ignorância se transformou em política oficial. Quanto mais medíocre, melhor. Tem de ser rasteiro para ser aceito, fazer sucesso. O Brasil virou a República dos Rastaqueras. No país da Anitta, é indispensável dizer sim, sempre dizer sim. Há o medo manifesto de ser hostilizado por defender uma outra visão de mundo. Os radicais dos anos 1960, hoje em idade provecta, preferiram aceitar passivamente o papel de coadjuvantes. Não perceberam o ridículo. Pior, chancelaram com entusiasmo a cultura da ignorância. Tudo para não perder o proscênio. Em busca da eterna juventude, agem como Peter Pans tupiniquins.
Como chegamos a este ponto de degradação? O desaparecimento de um pensamento crítico pode explicar este terrível cenário. A reflexão, fruto da exaustiva pesquisa, desapareceu. Culturalmente — mas não só — o país perdeu o rumo. Paradoxalmente, nunca existiram no Brasil tantas secretarias — estaduais e municipais — dedicadas formalmente à cultura. São centenas. Mas na República dos Rastaqueras, elas servem somente como moeda de troca para garantir a “governabilidade” das prefeituras e governos estaduais.
O Brasil acabou se transformando em recebedor passivo do que há de pior da cultura ocidental, especialmente a americana. Reproduz de forma caricata as manifestações culturais (além do racismo negro) dos setores ditos marginais dos Estados Unidos — que foram mercantilizados a peso de ouro pela indústria cultural. Ao invés da antropofagia cultural, temos o mimetismo caricato.
Não é possível atribuir ao conjunto da cultura ocidental a mediocridade brasileira. Poderíamos importar muita coisa melhor. Mas por que não o fazemos? Em parte, deve-se à elite econômica e política. Nunca tivemos uma elite tão rastaquera como a atual. Despreza a cultura. Não se identifica com os clássicos ocidentais. Acha o máximo matricular seus filhos em escola bilíngue — somente duplicam a ignorância em duas línguas. Quando viaja, evita os museus. Livrarias? Foge delas como o diabo da cruz. Olha mas não vê o produto de uma civilização. Quer é fazer compras.
O Brasil não tem nenhum museu que possa se aproximar de um congênere europeu. Os nossos são pequenos, pobres. Evidentemente que não seria o caso de termos um Hermitage, mas o país que está entre as maiores economias do mundo não pode se contentar com o que temos. E as bibliotecas? Pífias. Os acervos são restritos e estão desatualizados. E os grandes teatros?
Este triste panorama é produto da crise que vivemos, uma crise estrutural. A República está sem rumo. Em uma linguagem mais direta: o país está uma bagunça. Para os doutores Pangloss de plantão, tudo vai bem. Resta, então, cantar: “Vai, malandra, an an/ Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum/An an, tutudum, an an/Vai, malandra, an an/Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum/An an, tutudum, an an.” Ah, bons tempos quando Anita era a Garibaldi.
Marco Antonio Villa
Na literatura, no cinema, nas artes plásticas, na música foi sendo construída a nossa identidade cultural, produto complexo, contraditório, mas que possibilitou estabelecer diálogo entre as diferentes regiões do país, as classes sociais, os desafios políticos e a elite dirigente. A cultura brasileira tinha uma presença no mundo ocidental. Dialogava com o que havia de mais moderno. Em algumas áreas, acabou se transformando em referência para outras culturas.
Atualmente, o panorama é muito distinto. A crise de identidade cultural pela qual passamos é a mais profunda da nossa história. Hoje, nada ou quase nada nos une. Somos um país fragmentado, dividido. Não há diálogo na música, na literatura, no cinema, nas artes plásticas. A cultura brasileira nada conta para o mundo.
Nesta conjuntura, é possível compreender como algumas figuras caricatas tomaram conta do cenário cultural. A cantora Anitta é o melhor exemplo. É elogiada como um verdadeiro símbolo do Brasil contemporâneo. Uma representante do país para o mundo. A música “Vai malandra” já foi chamada de novo hino nacional. O reacionarismo da letra (falar em versos, aí já é demais), a desqualificação da mulher, a idealização da favela (é favela mesmo; comunidade não passa de uma tentativa de transmudar pela palavra uma vergonha nacional, aceitar a precarização da moradia e das condições de vida de milhões de brasileiros) é dado de barato, como se fosse algo absolutamente irrelevante. Foi até chamada para cantar o Hino Nacional no último Grande Prêmio de Fórmula 1, em Interlagos — seguindo este caminho, logo teremos como intérpretes Ludmilla ou Pabllo Vittar. No réveillon, na Praia de Copacabana, foi considerada a grande estrela. Brindou o público com frase de rara profundidade filosófica, como uma Hanna Arendt dos trópicos: “Vocês acharam que eu não ia rebolar a minha bunda hoje?”
A decadência cultural do país é inquestionável. A ignorância se transformou em política oficial. Quanto mais medíocre, melhor. Tem de ser rasteiro para ser aceito, fazer sucesso. O Brasil virou a República dos Rastaqueras. No país da Anitta, é indispensável dizer sim, sempre dizer sim. Há o medo manifesto de ser hostilizado por defender uma outra visão de mundo. Os radicais dos anos 1960, hoje em idade provecta, preferiram aceitar passivamente o papel de coadjuvantes. Não perceberam o ridículo. Pior, chancelaram com entusiasmo a cultura da ignorância. Tudo para não perder o proscênio. Em busca da eterna juventude, agem como Peter Pans tupiniquins.
Como chegamos a este ponto de degradação? O desaparecimento de um pensamento crítico pode explicar este terrível cenário. A reflexão, fruto da exaustiva pesquisa, desapareceu. Culturalmente — mas não só — o país perdeu o rumo. Paradoxalmente, nunca existiram no Brasil tantas secretarias — estaduais e municipais — dedicadas formalmente à cultura. São centenas. Mas na República dos Rastaqueras, elas servem somente como moeda de troca para garantir a “governabilidade” das prefeituras e governos estaduais.
O Brasil acabou se transformando em recebedor passivo do que há de pior da cultura ocidental, especialmente a americana. Reproduz de forma caricata as manifestações culturais (além do racismo negro) dos setores ditos marginais dos Estados Unidos — que foram mercantilizados a peso de ouro pela indústria cultural. Ao invés da antropofagia cultural, temos o mimetismo caricato.
Não é possível atribuir ao conjunto da cultura ocidental a mediocridade brasileira. Poderíamos importar muita coisa melhor. Mas por que não o fazemos? Em parte, deve-se à elite econômica e política. Nunca tivemos uma elite tão rastaquera como a atual. Despreza a cultura. Não se identifica com os clássicos ocidentais. Acha o máximo matricular seus filhos em escola bilíngue — somente duplicam a ignorância em duas línguas. Quando viaja, evita os museus. Livrarias? Foge delas como o diabo da cruz. Olha mas não vê o produto de uma civilização. Quer é fazer compras.
O Brasil não tem nenhum museu que possa se aproximar de um congênere europeu. Os nossos são pequenos, pobres. Evidentemente que não seria o caso de termos um Hermitage, mas o país que está entre as maiores economias do mundo não pode se contentar com o que temos. E as bibliotecas? Pífias. Os acervos são restritos e estão desatualizados. E os grandes teatros?
Este triste panorama é produto da crise que vivemos, uma crise estrutural. A República está sem rumo. Em uma linguagem mais direta: o país está uma bagunça. Para os doutores Pangloss de plantão, tudo vai bem. Resta, então, cantar: “Vai, malandra, an an/ Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum/An an, tutudum, an an/Vai, malandra, an an/Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum/An an, tutudum, an an.” Ah, bons tempos quando Anita era a Garibaldi.
Marco Antonio Villa
Lembrar junho de 2013
Chegamos afinal, depois de muitas tropelias, ao ano das eleições. As ruas estão em silêncio, embora atentas, e os quartéis, entregues às suas fainas habituais. O rebuliço e as incertezas vêm do lugar menos previsível, o Poder Judiciário, pelas ações de alguns dos seus membros, embalados por concepções salvacionistas alheias às eventuais consequências dos seus atos. Seja como for, de ciência provada agora sabemos que nossas instituições estão dotadas de surpreendente resiliência, ainda de pé em meio a tantos anos de severa turbulência. Sem ufanismo, é forçoso reconhecer que a Carta de 88 tem provado ser uma âncora segura para a nossa democracia.
Aos poucos, os eixos em torno dos quais gira a conjuntura começam a se deslocar dos tribunais para os lugares afetos aos temas e procedimentos da soberania popular. Já se vive, embora tardiamente, o momento crucial em que partidos selecionam seus candidatos e programas, vale dizer, os rumos futuros a serem trilhados pelo País. Em que pesem os argumentos retóricos em defesa de paradigmas antes influentes, a questão incontornável é que, mesmo de modo silencioso, como é do nosso estilo, estamos deixando para trás o tempo da modernização que aqui vingou de Vargas a Dilma.
O melhor marcador dessa mudança não está, como supõem os que se satisfazem com explicações fáceis, tanto no programa reformista do governo Temer, mas, sobretudo, nas jornadas de junho de 2013, na verdade, um movimento massivo da juventude em torno de direitos, inclusive os de participação política. Na agenda de junho de 2013 não se faziam presentes os temas clássicos da modernização, antes hegemônicos, mas os da agenda do moderno, centrados nas questões das liberdades civis e públicas.
Indicar essa mutação, no entanto, não quer significar que o velho repertório que animou a época de fastígio dos programas nacional-desenvolvimentistas tenha sido varrido do mapa do nosso imaginário social. Eles estão aí e ainda devem estar presentes nesta próxima sucessão presidencial e nas futuras, mas sua capacidade de persuasão é claramente declinante, tal como se constata no fato decisivo de já ter iniciado uma migração em direção à direita política e às hostes conservadoras, lugares sociais hostis desde sempre ao programa nacional-popular.
Maro Lara Martins, em Interesse e Virtude: o ensaio sociológico brasileiro dos anos 1930 (no prelo), chamou a atenção para o fato capital de que modernização e modernismo nasceram de dois movimentos sociais coincidentes no tempo – o tenentismo é de 1922, o mesmo ano da Semana de Arte Moderna –, embora desde suas origens estivessem destinados a seguir trajetórias diferentes. Com a Revolução de 1930, a tópica da modernização será conduzida pelo recém-criado Ministério do Trabalho, dito o Ministério da Revolução, e a do modernismo pelo Ministério da Educação e Cultura, confiado a Gustavo Capanema, personalidade de forte prestígio entre os intelectuais da época, entre os quais Mário de Andrade, então ungido no papel de papa laico da cultura brasileira.
Assim, embora as ações dessas duas agências estatais gravitassem em órbitas distintas, nosso processo de modernização, ao contrário de outros casos nacionais, vem à luz encouraçado por uma política cultural inclusiva e valorizadora da vida popular, conquanto o Estado viesse a exercer uma ação tutelar sobre os sindicatos dos trabalhadores. A cultura política do nacional-popular nasce, portanto, sob o signo da incorporação, mantendo bem velado o que havia de autoritário na sua modelagem.
Contudo essa feliz combinação, mesmo que não intencional, entre as agendas da modernização e do moderno se sustentava em bases precárias, dependente da existência de um regime que garantisse as liberdades civis e públicas. O Estado Novo, que nos trouxe a Carta outorgada de 1937, feriu mortalmente essa alternativa, que, de resto, nunca tinha sido buscada como um fim consciente pelas elites políticas da época, somente ressurgindo, de modo encapuzado, décadas depois, sob os governos de JK e de Jango Goulart, com os movimentos de intelectuais de “ida ao povo” disseminados nos centros populares de cultura e de alfabetização popular.
O regime militar interrompeu essa benfazeja experiência, desencadeando feroz repressão sobre esses movimentos e seus intelectuais, prendendo e processando em massa, levando ao exílio centenas deles. Ao lado disso, recuperou as instituições e práticas vigentes no Estado Novo para o mundo do trabalho. A modernização dissocia-se radicalmente da pauta do moderno, perseguindo os fins de plena imposição do capitalismo entre nós, a partir de uma coalizão no poder, sob comando político da corporação militar, entre as elites empresariais da indústria e as elites agrárias tradicionais.
A democratização do País, como se sabe, não nos veio de uma ruptura com o regime anterior, e sim de uma transição, cujos termos implicavam, na prática, a preservação do estatuto da propriedade agrária tradicional. Nas novas circunstâncias do Brasil democratizado, contudo, o processo eleitoral traz de volta com o PSDB e, principalmente, com o PT a agenda do moderno, exemplar na sua crítica ao legado varguista em matéria sindical. O tema da autonomia dos movimentos sociais diante do Estado parecia ter ganho com a vitória de Lula a sua oportunidade de enraizamento na nossa história política.
Porém, em surpreendente guinada, o PT no governo absolve a Era Vargas. E, pior, valoriza a modernização autoritária levada a efeito no governo Geisel, que o governo Dilma tentará pateticamente radicalizar em condições já inteiramente adversas, levando à exaustão um modelo de política, hoje confinado ao que há de mais recessivo e anacrônico em nossa sociedade, que cumpre agora derrotar nas urnas.
Luiz Werneck Vianna
Aos poucos, os eixos em torno dos quais gira a conjuntura começam a se deslocar dos tribunais para os lugares afetos aos temas e procedimentos da soberania popular. Já se vive, embora tardiamente, o momento crucial em que partidos selecionam seus candidatos e programas, vale dizer, os rumos futuros a serem trilhados pelo País. Em que pesem os argumentos retóricos em defesa de paradigmas antes influentes, a questão incontornável é que, mesmo de modo silencioso, como é do nosso estilo, estamos deixando para trás o tempo da modernização que aqui vingou de Vargas a Dilma.
O melhor marcador dessa mudança não está, como supõem os que se satisfazem com explicações fáceis, tanto no programa reformista do governo Temer, mas, sobretudo, nas jornadas de junho de 2013, na verdade, um movimento massivo da juventude em torno de direitos, inclusive os de participação política. Na agenda de junho de 2013 não se faziam presentes os temas clássicos da modernização, antes hegemônicos, mas os da agenda do moderno, centrados nas questões das liberdades civis e públicas.
Indicar essa mutação, no entanto, não quer significar que o velho repertório que animou a época de fastígio dos programas nacional-desenvolvimentistas tenha sido varrido do mapa do nosso imaginário social. Eles estão aí e ainda devem estar presentes nesta próxima sucessão presidencial e nas futuras, mas sua capacidade de persuasão é claramente declinante, tal como se constata no fato decisivo de já ter iniciado uma migração em direção à direita política e às hostes conservadoras, lugares sociais hostis desde sempre ao programa nacional-popular.
Maro Lara Martins, em Interesse e Virtude: o ensaio sociológico brasileiro dos anos 1930 (no prelo), chamou a atenção para o fato capital de que modernização e modernismo nasceram de dois movimentos sociais coincidentes no tempo – o tenentismo é de 1922, o mesmo ano da Semana de Arte Moderna –, embora desde suas origens estivessem destinados a seguir trajetórias diferentes. Com a Revolução de 1930, a tópica da modernização será conduzida pelo recém-criado Ministério do Trabalho, dito o Ministério da Revolução, e a do modernismo pelo Ministério da Educação e Cultura, confiado a Gustavo Capanema, personalidade de forte prestígio entre os intelectuais da época, entre os quais Mário de Andrade, então ungido no papel de papa laico da cultura brasileira.
Assim, embora as ações dessas duas agências estatais gravitassem em órbitas distintas, nosso processo de modernização, ao contrário de outros casos nacionais, vem à luz encouraçado por uma política cultural inclusiva e valorizadora da vida popular, conquanto o Estado viesse a exercer uma ação tutelar sobre os sindicatos dos trabalhadores. A cultura política do nacional-popular nasce, portanto, sob o signo da incorporação, mantendo bem velado o que havia de autoritário na sua modelagem.
Contudo essa feliz combinação, mesmo que não intencional, entre as agendas da modernização e do moderno se sustentava em bases precárias, dependente da existência de um regime que garantisse as liberdades civis e públicas. O Estado Novo, que nos trouxe a Carta outorgada de 1937, feriu mortalmente essa alternativa, que, de resto, nunca tinha sido buscada como um fim consciente pelas elites políticas da época, somente ressurgindo, de modo encapuzado, décadas depois, sob os governos de JK e de Jango Goulart, com os movimentos de intelectuais de “ida ao povo” disseminados nos centros populares de cultura e de alfabetização popular.
O regime militar interrompeu essa benfazeja experiência, desencadeando feroz repressão sobre esses movimentos e seus intelectuais, prendendo e processando em massa, levando ao exílio centenas deles. Ao lado disso, recuperou as instituições e práticas vigentes no Estado Novo para o mundo do trabalho. A modernização dissocia-se radicalmente da pauta do moderno, perseguindo os fins de plena imposição do capitalismo entre nós, a partir de uma coalizão no poder, sob comando político da corporação militar, entre as elites empresariais da indústria e as elites agrárias tradicionais.
A democratização do País, como se sabe, não nos veio de uma ruptura com o regime anterior, e sim de uma transição, cujos termos implicavam, na prática, a preservação do estatuto da propriedade agrária tradicional. Nas novas circunstâncias do Brasil democratizado, contudo, o processo eleitoral traz de volta com o PSDB e, principalmente, com o PT a agenda do moderno, exemplar na sua crítica ao legado varguista em matéria sindical. O tema da autonomia dos movimentos sociais diante do Estado parecia ter ganho com a vitória de Lula a sua oportunidade de enraizamento na nossa história política.
Porém, em surpreendente guinada, o PT no governo absolve a Era Vargas. E, pior, valoriza a modernização autoritária levada a efeito no governo Geisel, que o governo Dilma tentará pateticamente radicalizar em condições já inteiramente adversas, levando à exaustão um modelo de política, hoje confinado ao que há de mais recessivo e anacrônico em nossa sociedade, que cumpre agora derrotar nas urnas.
Luiz Werneck Vianna
Candidatos mais ricos conseguirão de novo esconder seus crimes nas eleições?
Há décadas se atribui ao brasileiro uma "memória curta", especialmente quando o assunto é política. O bordão vem à tona com força de dois em dois anos, sempre que é preciso ir às urnas novamente. Uma mala de dinheiro aqui, um punhado de dólares na cueca ali... Parece que tudo pode ser perdoado (ou esquecido) pelo eleitor na hora de digitar o número de seu candidato favorito. Apesar disso, em um ano marcado por escândalos de corrupção que respingaram no presidente Michel Temer e em boa parte do Congresso, da esquerda à direita, muitos acreditam em uma depuração da classe política em 2018. Mas uma pesquisa aponta que no final das contas, tudo depende do dinheiro. Ou ao menos tudo dependia até agora. Segundo o estudo O Custo Político da Corrupção: Escândalos, Financiamento de Campanha e Reeleição na Câmara dos Deputados, dos cientistas políticos Marcus Melo, Ivan Jucá e Lúcio Rennó, a capacidade dos deputados federais envolvidos em escândalos se reelegeram dependeu nas eleições anteriores de quanto eles desembolsaram na campanha.
Ou seja, quanto mais dinheiro um parlamentar tem para bancar propaganda eleitoral e outras despesas do tipo, mais curta fica a memória do brasileiro com relação aos seus malfeitos. E agora, com o fim do financiamento empresarial de campanha determinado pelo Supremo Tribunal Federal, fica a pergunta: será que os parlamentares que estão na mira da Justiça conseguirão fazer o eleitor esquecer?
O estudo conclui que apesar dos deputados afetados por escândalos de corrupção terem uma redução em seu desempenho nas urnas (correndo, em muitos casos, o risco de não se elegerem), esse efeito pode ser atenuado ou e até mesmo apagado com gastos de campanha. A pesquisa abrange os pleitos de 1994 a 2010, e guarda semelhanças com o que pode estar por vir em 2018, tendo em vista que o levantamento contempla as eleições realizadas em meio a um dos mais marcantes casos de corrupção do país, o Mensalão (2005).
"O custo da corrupção é claramente sentindo na carteira dos candidatos: eles podem ser reeleitos, mas terão que arrecadar 72% a mais, na média, do que seus colegas que não estão envolvidos em escândalos, e 91% a mais do que gastaram na eleição anterior ao escândalo", conclui a pesquisa, publicada em 2016. Isso equivaleria a aproximadamente 2 milhões de reais, valor atingido por apenas 10% das candidaturas. Mas a eleição de 2018 coloca ainda outra variável até então inédita nesta equação: será a primeira eleição para o Congresso feita com financiamento público de campanha, ou seja, sem doações de empresas. Será que os candidatos citados por delatores da Operação Lava Jato conseguirão atingir o valor necessário para que a propaganda suplante o suposto delito no imaginário do eleitor?
Para viabilizar o pleito deste ano, foi aprovada pelo Congresso em 4 de outubro passado um fundo bilionário para custear o processo eleitoral. No total, serão realocados mais de 2 bilhões de reais para esta finalidade (o antigo fundo partidário somava 1 bilhão de reais). Ainda não é possível saber quanto cada deputado terá disponível para gastar com propaganda, tendo em vista que o cálculo depende do número total de candidatos bem como do tamanho da bancada atual de sua legenda, mas é consenso que o valor será menor do que o das eleições anteriores. Além do fim da farra das doações de grandes grupos empresariais - motivado em grande parte pelas descobertas da Lava Jato -, até mesmo as doações de pessoas físicas aos candidatos foram restritas (a um limite máximo de 10 salários mínimos por cargo em disputa), e colocou-se limite no auto financiamento do candidato (200.000 reais), que até então era ilimitado.
O professor de ciência política da Universidade de Brasília Lúci Rennó, um dos autores do estudo, afirma que a tendência no Brasil é que os partidos não ajam como um "filtro" para políticos acusados de corrupção. "Aqui as legendas protegem suas lideranças envolvidas em escândalos ao invés de puni-las", diz. Segundo o pesquisador, apesar de eventuais danos de imagem que a sigla possa sofrer, "é provável que elas apostem em alguns nomes conhecidos do público, mesmo que eles tenham alguma pendência jurídica ou condenação".
Apesar disso, Rennó acredita que a taxa de reeleição este ano pode cair com relação à eleição passada. "É um fenômeno que verificamos durante o Mensalão e o caso Sanguessugas. E a Lava Jato teve um amplitude maior ainda, houve um choque informacional muito grande para o eleitor com relação a estes escândalos", diz. O professor também aposta no aumento de votos brancos e nulos, tendo em vista pesquisas de opinião que revelam um descrédito do eleitor com o Legislativo como um todo. "Este aumento no número de brancos e nulos poderia, em última instância, favorecer candidatos que dependem do quociente eleitoral para conseguirem uma vaga", afirma.
O legislativo que cai no esquecimento
Quanto à "memória curta" do eleitor, Rennó acredita que ela é também uma decorrência das particularidades e da complexidade do nosso sistema político. “Ele facilita o esquecimento, porque é complicado entender como funcionam as eleições legislativas no país: existem muitas regras, quociente eleitoral, e tudo isso provoca uma dificuldade de entender porque um candidato não foi eleito”, afirma. “Isso dificulta a capacidade do eleitor de acompanhar o trabalho de seu representante”, conclui.
Nara Pavão, cientista política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), afirma que deputados e senadores são "blindados" pela pouca exposição. “A acusação de corrupção pesa mais contra o candidato do Executivo, uma vez que o Legislativo tem bem menos visibilidade”, diz. No entanto, ela acredita que está em curso na sociedade uma “campanha anti corrupção”, que pode fazer com que haja uma renovação maior na Câmara. “Pesquisas mostram que o eleitor não pune seu candidato por envolvimentos com escândalos. Agora é preciso ver se em meio a uma crise política como essa isso continuará sendo verdade”.
A expectativa é de que os parlamentares tentem compensar a falta de recursos privados se valendo de uma outra novidade da reforma política: a permissão para impulsionar conteúdo eleitoral na Internet, com destaque para o Facebook e outras redes sociais. Até então este tipo de propaganda era vetada pela lei eleitoral. Na era das notícias falsas, este tipo de investimento parece um prato cheio para os candidatos compensarem a falta das doações empresariais. Para a professora Nara Pavão, a tendência é que as redes sociais tenham um impacto cada vez maior no pleito, podendo até mesmo ser decisiva para o eleitor. “As eleições que levaram Donald Trump ao poder são um exemplo claro de como as fake news podem decidir um pleito”, afirma.
Ou seja, quanto mais dinheiro um parlamentar tem para bancar propaganda eleitoral e outras despesas do tipo, mais curta fica a memória do brasileiro com relação aos seus malfeitos. E agora, com o fim do financiamento empresarial de campanha determinado pelo Supremo Tribunal Federal, fica a pergunta: será que os parlamentares que estão na mira da Justiça conseguirão fazer o eleitor esquecer?
O estudo conclui que apesar dos deputados afetados por escândalos de corrupção terem uma redução em seu desempenho nas urnas (correndo, em muitos casos, o risco de não se elegerem), esse efeito pode ser atenuado ou e até mesmo apagado com gastos de campanha. A pesquisa abrange os pleitos de 1994 a 2010, e guarda semelhanças com o que pode estar por vir em 2018, tendo em vista que o levantamento contempla as eleições realizadas em meio a um dos mais marcantes casos de corrupção do país, o Mensalão (2005).
"O custo da corrupção é claramente sentindo na carteira dos candidatos: eles podem ser reeleitos, mas terão que arrecadar 72% a mais, na média, do que seus colegas que não estão envolvidos em escândalos, e 91% a mais do que gastaram na eleição anterior ao escândalo", conclui a pesquisa, publicada em 2016. Isso equivaleria a aproximadamente 2 milhões de reais, valor atingido por apenas 10% das candidaturas. Mas a eleição de 2018 coloca ainda outra variável até então inédita nesta equação: será a primeira eleição para o Congresso feita com financiamento público de campanha, ou seja, sem doações de empresas. Será que os candidatos citados por delatores da Operação Lava Jato conseguirão atingir o valor necessário para que a propaganda suplante o suposto delito no imaginário do eleitor?
Para viabilizar o pleito deste ano, foi aprovada pelo Congresso em 4 de outubro passado um fundo bilionário para custear o processo eleitoral. No total, serão realocados mais de 2 bilhões de reais para esta finalidade (o antigo fundo partidário somava 1 bilhão de reais). Ainda não é possível saber quanto cada deputado terá disponível para gastar com propaganda, tendo em vista que o cálculo depende do número total de candidatos bem como do tamanho da bancada atual de sua legenda, mas é consenso que o valor será menor do que o das eleições anteriores. Além do fim da farra das doações de grandes grupos empresariais - motivado em grande parte pelas descobertas da Lava Jato -, até mesmo as doações de pessoas físicas aos candidatos foram restritas (a um limite máximo de 10 salários mínimos por cargo em disputa), e colocou-se limite no auto financiamento do candidato (200.000 reais), que até então era ilimitado.
O professor de ciência política da Universidade de Brasília Lúci Rennó, um dos autores do estudo, afirma que a tendência no Brasil é que os partidos não ajam como um "filtro" para políticos acusados de corrupção. "Aqui as legendas protegem suas lideranças envolvidas em escândalos ao invés de puni-las", diz. Segundo o pesquisador, apesar de eventuais danos de imagem que a sigla possa sofrer, "é provável que elas apostem em alguns nomes conhecidos do público, mesmo que eles tenham alguma pendência jurídica ou condenação".
Apesar disso, Rennó acredita que a taxa de reeleição este ano pode cair com relação à eleição passada. "É um fenômeno que verificamos durante o Mensalão e o caso Sanguessugas. E a Lava Jato teve um amplitude maior ainda, houve um choque informacional muito grande para o eleitor com relação a estes escândalos", diz. O professor também aposta no aumento de votos brancos e nulos, tendo em vista pesquisas de opinião que revelam um descrédito do eleitor com o Legislativo como um todo. "Este aumento no número de brancos e nulos poderia, em última instância, favorecer candidatos que dependem do quociente eleitoral para conseguirem uma vaga", afirma.
O legislativo que cai no esquecimento
Quanto à "memória curta" do eleitor, Rennó acredita que ela é também uma decorrência das particularidades e da complexidade do nosso sistema político. “Ele facilita o esquecimento, porque é complicado entender como funcionam as eleições legislativas no país: existem muitas regras, quociente eleitoral, e tudo isso provoca uma dificuldade de entender porque um candidato não foi eleito”, afirma. “Isso dificulta a capacidade do eleitor de acompanhar o trabalho de seu representante”, conclui.
Nara Pavão, cientista política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), afirma que deputados e senadores são "blindados" pela pouca exposição. “A acusação de corrupção pesa mais contra o candidato do Executivo, uma vez que o Legislativo tem bem menos visibilidade”, diz. No entanto, ela acredita que está em curso na sociedade uma “campanha anti corrupção”, que pode fazer com que haja uma renovação maior na Câmara. “Pesquisas mostram que o eleitor não pune seu candidato por envolvimentos com escândalos. Agora é preciso ver se em meio a uma crise política como essa isso continuará sendo verdade”.
A expectativa é de que os parlamentares tentem compensar a falta de recursos privados se valendo de uma outra novidade da reforma política: a permissão para impulsionar conteúdo eleitoral na Internet, com destaque para o Facebook e outras redes sociais. Até então este tipo de propaganda era vetada pela lei eleitoral. Na era das notícias falsas, este tipo de investimento parece um prato cheio para os candidatos compensarem a falta das doações empresariais. Para a professora Nara Pavão, a tendência é que as redes sociais tenham um impacto cada vez maior no pleito, podendo até mesmo ser decisiva para o eleitor. “As eleições que levaram Donald Trump ao poder são um exemplo claro de como as fake news podem decidir um pleito”, afirma.
Circo marambaia
O falecido deputado baiano Fernando Santana, um comunista dos tempos em que havia comunistas de carne e osso no Brasil, costumava divertir os colegas da Câmara com uma brincadeira sobre a Bahia. “Pense num absurdo, qualquer absurdo que te passar pela cabeça”, dizia ele. “Na Bahia há precedente”. Santana foi cassado, exilado durante quinze anos, reeleito após o fim do regime militar e hoje descansa em paz. Mas as coisas estão ficando de tal jeito neste país, hoje em dia, que ele poderia dizer algo equivalente em relação à dobradinha “Governo Temer-Poder Judiciário Brasileiro”. Imagine, no caso da atuação de ambos, um disparate realmente grande, tamanho XXXX-L – e pode ter certeza de que já aconteceu, está acontecendo ou vai acontecer a qualquer momento. A história da deputada Cristiane Brasil, nomeada pelo presidente da República para o cargo de ministra do Trabalho, está aí para mostrar que na política brasileira atual não existem limites para a palhaçada.
Há de tudo, neste picadeiro de circo. O presidente Temer fica com o Ministério do Trabalho vago e nomeia, após devida consideração, um novo ministro. O ex-presidente José Sarney veta a nomeação, o convite é anulado e o cargo continua sem titular. Numa segunda tentativa, o presidente nomeia uma deputada federal, mas um grupo de advogados do Rio de Janeiro não concorda e entra com uma ação na justiça para barrar a posse – a nova ministra do Trabalho tinha sido condenada, no passado, em duas causas na justiça trabalhista. Um juiz de Niterói manda suspender a posse. A coisa toda vai então para os altos tribunais da República. Descobre-se, nesse meio tempo, que o suplente da deputada, prestes a sentar na sua cadeira na Câmara, é um indivíduo condenado a 12 anos de cadeia por estupro – além disso, é irmão do ex-governador Anthony Garotinho, um ex- presidiário que está no momento em liberdade por ter tido a sorte de cair com o ministro Gilmar Mendes em seu último entrevero judicial. Já o irmão-suplente ficou uns tempos preso, mas graças às maravilhas do nosso Direito de Defesa, está não apenas solto; é também um quase-deputado.
O melhor de tudo é a fundamentação filosófica e jurídica, digamos assim, da decisão contra a ministra nomeada – segundo o juiz, ela não pode ser ministra do Trabalho em nome do princípio da “moralidade pública”. Aí também já é avacalhação. Se moralidade estivesse valendo alguma coisa neste país, quanta gente teria de deixar nos próximos cinco minutos os cargos públicos que ocupa – incluindo no Poder Judiciário? Eis aí mais uma das grandes páginas da nossa história: conseguiram montar um episódio em que estão todos do lado ruim. Escolha o seu preferido — o presidente Temer, o ex-presidente Sarney, a deputada que foi condenada em ações trabalhistas e deveria ter pedido um cargo que não fosse o de ministra do Trabalho, seu suplente, o irmão do suplente, o juiz de Niterói, os advogados do Rio e quem mais tiver tido algum contato com este pacote de refugo tóxico.
Estamos em pleno circo marambaia.
O melhor de tudo é a fundamentação filosófica e jurídica, digamos assim, da decisão contra a ministra nomeada – segundo o juiz, ela não pode ser ministra do Trabalho em nome do princípio da “moralidade pública”. Aí também já é avacalhação. Se moralidade estivesse valendo alguma coisa neste país, quanta gente teria de deixar nos próximos cinco minutos os cargos públicos que ocupa – incluindo no Poder Judiciário? Eis aí mais uma das grandes páginas da nossa história: conseguiram montar um episódio em que estão todos do lado ruim. Escolha o seu preferido — o presidente Temer, o ex-presidente Sarney, a deputada que foi condenada em ações trabalhistas e deveria ter pedido um cargo que não fosse o de ministra do Trabalho, seu suplente, o irmão do suplente, o juiz de Niterói, os advogados do Rio e quem mais tiver tido algum contato com este pacote de refugo tóxico.
Estamos em pleno circo marambaia.
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