sexta-feira, 13 de setembro de 2019

A Amazônia é do mundo

No dia de 10 setembro de 2019, prestei um depoimento sobre as queimadas na Amazônia ao Comitê de Assuntos Externos do Congresso americano. Em breve, o depoimento de sete páginas traduzido para o português estará disponível no site de ÉPOCA. Enquanto isso, achei que seria interessante para os leitores terem uma ideia de quão importante se tornou o tema da Amazônia para o mundo e para o Partido Democrata em especial.

Fui convidada por eles — pelos democratas —, mas também havia muitos republicanos interessados no tema. Comigo testemunharam mais duas pessoas: um renomado cientista ambiental e um ex-diplomata americano com passagens pela América Latina e especialista em conservação ambiental. Eu e o cientista havíamos sido convidados pelos democratas, enquanto o ex-diplomata fora chamado pelos republicanos. A audiência foi uma das primeiras desde que o Congresso retornou do recesso do verão, o que dá uma ideia da importância do assunto para os parlamentares aqui nos EUA. Antes de a audiência começar, conversei bastante com o convidado dos republicanos. Tivemos uma excelente troca de ideias sobre os desafios da economia e do meio ambiente e, sobretudo, as dificuldades de levar a alguns políticos e a uma parte da população o sentimento de urgência que hoje deveria tocar a todos. Vejam: eu era a convidada dos democratas, ele dos republicanos. Contudo, travamos uma conversa civilizada, com substância e argumentos fundamentados. Ao final, aprendi muito ao ouvi-lo e tenho certeza de que ele também aprendeu algo comigo — afinal, era eu a única brasileira presente. Digo isso para sublinhar a importância do diálogo, essa majestosa forma de interagir, que parece extinta no Brasil de hoje.

Em meu depoimento, tratei das queimadas como algo que é recorrente no Brasil. Falei sobre os esforços de governos passados para combater o desmatamento — muitos com grande sucesso. Esmiucei os argumentos para que as nuances ficassem explícitas: é simplório afirmar que o agronegócio é o grande culpado. E, sim, disse que, sob Bolsonaro e sua guerra ideológica contra o clima e o ambientalismo, muitos predadores passaram a se sentir confortáveis em depredar a Amazônia. Fala-se muito na Amazônia como o pulmão do planeta, o que é um erro e um exagero. A Amazônia é, como me disse uma ex-ministra do Meio Ambiente, uma bomba de carbono. Se destruída, haverá de liberar bilhões de toneladas de carbono na atmosfera, além de alterar por completo o ciclo hidrológico do Brasil e de boa parte do Cone Sul. O agronegócio brasileiro bem sabe disso — não à toa, tem feito pressão sobre o governo Bolsonaro para que interrompa o desmonte das regulações e das agências ambientais, como o Ibama e o Inpe.

Propus diversas vias de colaboração possíveis entre o governo dos Estados Unidos e o governo brasileiro. Uma delas trata do Fundo Amazônia — hoje em uma espécie de limbo devido às atitudes de Bolsonaro. Há imensa oportunidade para aumentar o fundo diversificando suas fontes de recursos para empréstimos diversos, inclusive para os chamados pagamentos de serviços ambientais, matéria que ainda precisa ser regularizada no Brasil. Falei também sobre o uso das terras indígenas — nossa Constituição prevê a utilização econômica sustentável dessas terras, mas nós ainda não sabemos fazê-lo. Os EUA, com sua larga experiência em regularizar esse tipo de atividade nas terras de povos indígenas, pode nos ajudar imensamente a desenvolver esse potencial. Há muito o que fazer na área de cooperação técnica, para além do financiamento. Ressaltei que as possibilidades existem, que a pesquisa científica sobre o que funciona e o que não funciona é vasta, que o Brasil deveria ser o laboratório do mundo em matéria de desenvolvimento sustentável. Como bem me disse outra ex-ministra, no século XXI, ecologia e economia são simbióticas.
“Não é possível pensar em crescimento econômico sem considerar o impacto ambiental. Não é possível pensar em meio ambiente sem tratar das questões de desenvolvimento sustentável”
As perguntas dos parlamentares demonstraram grande interesse no tema, além de um surpreendente conhecimento. Discutiram-se mercados de carbono, pagamentos por serviços ambientais, crédito agrícola condicionado ao cumprimento de normas ambientais e redução de desmatamento, como fez a Resolução 3.545 do Conselho Monetário Nacional em 2008. A sensação ao terminar a audiência de mais de uma hora foi que passamos muita informação e que o interesse do Congresso americano sobre o tema é imenso.

A Amazônia corre perigo. Mas o mundo, e os EUA em particular, estão de olhos grudados no que se passa, apesar de Trump e Bolsonaro. Eles passarão, a floresta passarinho.
Monica de Bolle

Brasil que virou pó


Qual a vontade do povo?

No presidencialismo, eleições seguem um cronograma rígido, só alterado em situações muito excepcionais. Já no parlamentarismo, as coisas são mais flexíveis. Uma mudança súbita dos humores da população pode desencadear uma crise que antecipe o pleito. E não precisamos nos limitar às formas tradicionais de consulta. Hoje, existe tecnologia para implementar a democracia direta. Seria possível submeter todas as questões relevantes à população, que decidiria pelo celular.

Poderíamos até estabelecer um plebiscito diário, no qual o povo decidiria todas as manhãs se quer que o governante permaneça no cargo ou vá embora. O filho do presidente disse uma besteira? Rua com ele! Essa saída pode parecer tentadora em algumas ocasiões, mas não é preciso PhD em ciência política para perceber que o ultrademocratismo perpétuo não funcionaria bem.


Algum grau de formalismo é necessário. Ganha a eleição o candidato que obtém mais votos depositados em urna na data do pleito, não o sujeito que apareceu algum dia à frente nas pesquisas.

Foi para preservar a democracia, isto é, a decisão soberana do povo expressa numa consulta formal feita em 2016, que os britânicos levaram em frente as negociações do brexit, pouco importando que a separação da União Europeia seja objetivamente desastrosa para a economia e que, se a votação fosse refeita hoje, provavelmente determinaria a permanência no bloco.

Nas últimas semanas, porém, as dificuldades para o divórcio levaram a um impasse político que está produzindo danos à democracia —que incluem a suspensão do Parlamento, por definição a voz do povo— numa escala maior do que reconvocação do plebiscito. Por paradoxal que pareça, preservar a democracia está minando a democracia.

Aviso supremo

Regimes autocráticos, cidadãos corruptos e autoridades impregnadas de vocação tendente à desconstrução da ordem democrática temem o Ministério Público.

Longe de curvar-se aos desígnios do poder, político, econômico ou corporativo, ou ainda religioso, o Ministério Público tem a percepção superior da preservação da ordem democrática, fora da qual não há salvação
Celso de Mello, ministro decano do STF 

'Inseguro' e 'caro', Brasil fica em 61º em ranking de estrangeiros

Uma enquete com moradores estrangeiros colocou o Brasil entre os países mais difíceis de se morar, sobretudo por questões de segurança e alto custo de serviços como educação e plano de saúde.

O ranking Expat Insider 2019, feito pela InterNations (empresa que presta serviço de apoio a profissionais vivendo fora de seus países de origem), ouviu mais de 20 mil imigrantes morando em 187 países ou territórios. Mas apenas 64 países foram incluídos no ranking, escolhidos por terem tido uma amostra mínima de 75 pessoas para responder ao questionário.

As perguntas se referem à qualidade de vida dos expatriados nos países em que habitam (com suas percepções sobre as opções de lazer, nível de felicidade pessoal, qualidade dos transportes e de viagem, saúde e bem-estar e segurança no país); a facilidade com que se integram aos países; suas perspectivas profissionais e finanças pessoais ali e sua vida familiar (incluindo custos e qualidade dos serviços de saúde e educação infantil).


Por se tratar de uma enquete, e não uma pesquisa estatística, e de ter critérios próprios, o ranking tem resultados que desafiam o senso comum de países "melhores" ou "piores" de se morar - e refletem percepções particulares sobre cada país. Os entrevistados têm em média 44 anos, e 84% deles têm ensino superior. Não há informação sobre seu nível de renda.

A liderança do ranking coube a Taiwan, "província rebelde" chinesa que tem um grau de autonomia em relação a Pequim.

"Desde que apareceu pela primeira vez na pesquisa, em 2016, Taiwan tem consistentemente se mantido entre os TOP 5", diz o relatório. "(A ilha) oferece uma ótima qualidade de vida, finanças pessoais favoráveis, uma vida profissional impressionante e bons resultados na facilidade de se acomodar no país."

Entrevistados também elogiaram o que veem como um bom sistema de saúde e boas condições de segurança em Taiwan.

Em seguida, lideram o ranking Vietnã, Portugal, México, Espanha, Cingapura, Barein, Equador, Malásia e República Tcheca.

O Vietnã foi avaliado como positivo em perspectivas de carreira, cordialidade e custos de vida compatíveis com os salários dos entrevistados. E Portugal foi o país com o maior índice de respondentes dizendo que recomendariam outras pessoas a viver ali, destacando a facilidade de integração à vida local e a percepção de boa qualidade de vida.
Brasil visto como amigável, mas inseguro

Os dez países mais mal avaliados entre os imigrantes entrevistados são Kuwait (em 64º lugar, o último), Itália, Nigéria, Brasil (em 61º), Turquia, Índia, Reino Unido, Grécia, Rússia e Coreia do Sul.

A enquete não deixa claro quantos profissionais estrangeiros foram entrevistados no Brasil, mas afirma que a percepção deles é de que o país tem uma população amigável e receptiva, embora essa receptividade não tenha sido suficiente para compensar a sensação de insegurança.

Dos entrevistados no Brasil, 61% se disseram insatisfeitos com as condições de segurança do país, contra 9% da média global.

Também pesaram contra o país os altos custos de saúde e escolas particulares e a percepção ruim quanto a perspectivas de carreira e de melhoria da economia.

O relatório aponta que, dos cinco rankings do tipo em que esteve presente, o Brasil ficou três vezes nas últimas colocações, sendo "a segurança um enorme problema na visão dos expatriados".

Entre os países europeus no pé do ranking, a Itália foi mal avaliada pelos expatriados pela percepção negativa deles a respeito do clima político local, dos custos de vida familiar e das perspectivas de avanço profissional em uma economia vista por eles como estagnada.

O Reino Unido, por sua vez, foi "puxado para baixo" no ranking pela percepção de altos custos de vida, clima político turbulento (o país está envolto nas negociações do Brexit, seu processo de saída da União Europeia) e aumento na insegurança profissional.

Discurso do Itamaraty no exterior é sobre um Brasil que não existe

O Brasil vive uma democracia sólida, onde o espaço para sociedade civil está garantido. Na área social, estamos melhorando os programas, enquanto temos “a melhor” lei de imigração. Claro, lutamos contra a corrupção. No campo dos direitos humanos, os superlativos imperam. Somos “exemplo e inspiração” para o mundo. Foi assim que, nesta semana, a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, apresentou o país aos demais governos, em um evento em Genebra. Poucos acreditaram. Alguns não disfarçaram o sorriso irônico. Muitos trocaram olhares surpresos diante de um discurso que mesmo um país escandinavo - com os melhores índices de desenvolvimento humano e social - jamais teria coragem de pronunciar.

Diante de uma imagem deteriorada pela crise na Amazônia e seus comentários misóginos e de apologia a ditadores, a administração de Jair Bolsonaro prolifera declarações no exterior para convencer o mundo de que o Brasil não é nada do que dizem indígenas, ongs, gays, defensores de direitos humanos, a ONU, líderes internacionais, o lobby do marxismo-cultural e - Deus me livre - os jornalistas.

Só existe um problema: o discurso adotado pelo Itamaraty para superar a crise é sobre um país que simplesmente não existe. Em documentos enviados à ONU como resposta a cobranças feitas pela entidade ou em reuniões em Genebra ou Nova York, o tom adotado pelos diplomatas não é mais a de que temos desafios e que eles precisam ser superados. Somos “exemplo” e, de fato, temos todos os programas em todos os setores, capazes de garantir que os direitos de todos estejam assegurados. E não ousem nos questionar, como fez a alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet. Certamente ela está errada. Ou então é socialista. Ou ambos.

A opção do Brasil, porém, é a de omitir a existência dos problemas. Em plena campanha para conseguir ser eleito para mais um mandato no Conselho de Direitos Humanos da ONU e pela busca por mercados, o Brasil não busca solução para seus dramas. Busca apenas uma mudança da percepção internacional sobre o país, sem quitar suas dívidas históricas.

A desigualdade, as mortes de defensores de direitos humanos, a crise vivida por grupos indígenas, o desmonte dos espaços para a sociedade civil, o discurso de ódio pelas autoridades, a apologia a ditadores e torturadores, as insinuações contra a democracia, o desmatamento, a violência policial, a falta de saneamento e tantos outros aspectos da realidade nacional simplesmente não existem.

Tampouco existe a xenofobia contra os novos imigrantes, registrada na sociedade brasileira, ou o racismo profundamente enraizado no país. Longe do discurso oficial, o Itamaraty parece se esquecer de como sua lei de imigração é alvo de sérios questionamentos na ONU. Escondido em sua bandeira colorida, o governo rejeita qualquer insinuação sobre a intolerância escancarada.

Ao optar por negar a realidade de profundas violações aos direitos humanos, o governo repete uma estratégia que só encontra equivalente na política externa do regime militar.

Documentos mantidos na sede do Alto Comissariado para Refugiados da ONU, datados dos anos 70, revelam como embaixadores brasileiros tentavam convencer seus pares de que a situação de direitos humanos no Brasil sob os militares não era nada daquilo o que se dizia. Nos discursos, a palavra “soberania” era recorrente. E, graças a ela, podiam dizer que não existia nem a tortura sistemática.

A partir de José Sarney, o estado brasileiro abandonaria progressivamente essa opção negacionista. Em seu primeiro discurso na Assembleia Geral da ONU, a mesma que será aberta em poucas semanas por Bolsonaro, ele constataria que o país estava saindo de “uma longa noite” autoritária.

Alguns anos depois, Fernando Collor subiria no mesmo palco para reforçar a ideia de que, numa democracia, os direitos humanos tinham um papel central, inclusive com uma dimensão internacional. “As afrontas aos direitos humanos devem ser denunciadas e combatidas com igual vigor, onde quer que ocorram”, disse. “A comunidade internacional muito poderá concorrer para que se criem condições mundiais de garantia do respeito aos direitos humano”, afirmou.

“Meu dever é o proteger os setores mais vulneráveis da sociedade. Sabemos quão dramáticos são os problemas de nosso País nessa área. Não os ocultamos, nem escondemos nossa determinação de enfrentá-los e resolvê-los”, disse Collor.

Naqueles anos, o Brasil iria aderir ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e ainda liderou de forma histórica os trabalhos, em 1993, da Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada em Viena. Coube ao embaixador Gilberto Sabóia coordenar o comitê de redação da Declaração e Programa de Viena, uma primeira chancela internacional ao papel da democracia brasileira no mundo.

Anos depois, seria Fernando Henrique Cardoso quem usaria o palanque da ONU para alertar que a segurança no mundo não seria garantida pelas armas e aderiu aos tratados internacionais que colocariam de forma explícita o país no sistema multilateral. Já Luiz Inácio Lula da Silva desembarcaria com sua agenda, colocando a fome na pauta internacional.

Os problemas não foram resolvidos. Mas o mundo não tinha mais dúvidas de que o Brasil assumia suas responsabilidades, ainda que, muitas vezes, de forma incoerente, cínica e incompleta. Hoje, o governo Bolsonaro volta a usar o argumento da “soberania” para impedir que entidades internacionais das quais o Brasil soberanamente aderiu ao longo dos últimos 25 anos façam seu trabalho de monitorar violações no Brasil.

Mas, ao optar por omitir sua realidade, o governo não consegue escondê-la. Pelos corredores da ONU, o país passa a ser interpretado pelo restante do mundo como sendo um governo que não tem vontade política de lidar com seus demônios. Em seu livro mais recente, o escritor turco, Ahmet Altan, relata o papel da falta do espelho numa prisão. Ao ser detido pelo governo de Erdogan, ele constata que a cadeia não tem espelho e que, portanto, era como se tivesse sido “apagado”. Sem espelho, ele não tem mais sua imagem diante de si. Sem essa imagem, ele começa a duvidar de sua existência. Diante dessa dúvida, é sua resistência que é minada. Com a política deliberada de não se olhar no espelho, o Brasil apresenta ao mundo um país inexistente.

Sem esse espelho, tampouco vemos um Brasil da força de Marielle, cujo assassinato continua sem resposta. Não enxergamos um Brasil da genialidade de João Gilberto, que sequer contou com uma homenagem de estado. Ou um Brasil do humilde pedido de desculpas de Paulo Coelho diante das ofensas do presidente a líderes internacionais.

Se o Estado brasileiro busca de fato sua soberania e o respeito internacional, ele precisa começar com a coragem de se olhar no espelho, a se confrontar com sua realidade e buscar soluções. Apenas assim, poderá existir. Inclusive para seus próprios cidadãos.

Afora déficit fiscal, há déficit estético no governo

O comportamento de Jair Bolsonaro não autoriza visões otimistas sobre o que se passa na Receita Federal, sobretudo no pedaço da Receita responsável pela fiscalização. Desde que assumiu, há oito meses e meio, Jair Bolsonaro ofereceu diversos sinais de antipatia objetiva e simpatia retórica à cruzada anticorrupção que ajudou a levá-lo ao trono. O país assiste a estranhos acontecimentos. Os penúltimos movimentos ocorrem nos subterrâneos da Receita.

Há três anos, quando o então senador Romero Jucá defendeu a costura de um pacto para "estancar a sangria" sua voz soou como ruído desesperado de alguém que não sabia que estava sendo gravado. Ao afirmar que o pacto deveria incluir o "Supremo", Jucá, notório personagem do MDB, parecia ecoar o apavoramento de investigados em apuros, incluindo os ex-sócios do PT. A sangria evoluiu para uma hemorragia na qual Bolsonaro surfou.



Agora, suprema ironia, Bolsonaro tenta atingir um sonho que nem os profissionais do MDB e do PT conseguiram realizar —o sonho de controlar os órgãos de controle. Ele já desossou o ex-Coaf, retirou um procurador-geral do bolso do colete, cavalga a Polícia Federal e está prestes a instalar barricadas na Receita Federal. Ainda que consiga colocar em pé uma operação "Abafa a Jato", Bolsonaro não conseguirá eliminar os fatos:

Para citar apenas os fatos mais desagradáveis, há a movimentação atípica de R$ 1,2 milhão na conta do faz-tudo Fabrício Queiroz; os R$ 24 mil repassados à primeira-dama Michelle Bolsonaro; o empréstimo de R$ 40 mil que Jair Bolsonaro diz ter feito ao Queiroz; os assessores do gabinete do primogênito Flávio Bolsonaro gotejando parte dos salários na conta tóxica de Queiroz; os depósitos fracionados, em dinheiro vivo, feitos pelo Zero Um.

Há em Brasília um déficit estético que transforma Bolsonaro numa espécie de São Jorge que abandonou o plano de salvar a donzela para casar com o dragão.

Imagem do Dia


Abismo da razão

Do lado de lá, nas terras longes, o homem irascível, bigodinho nervoso. Acabava de instalar o império do medo. Desejava ser o dono do mundo, montado na crença da supremacia da raça branca. Dos mais sofisticados, em alta escala, os armamentos bélicos. Milhões de criaturas indefesas reduzidas a cinzas nos fornos crematórios.

Anos de fogo, sombras, pesadelos. O mal sem limites. Corpos usados para expe­riências absurdas. Mães separadas dos filhos, maridos das mulheres. A terra virada no inferno. Milhões de inocentes eliminados sem dó, na enchente a morte. A liberdade recuada para os subterrâneos mais indignos.

Sirenes, bombas, torpedos. Explosões, cra­teras, escombros. A fera ressurgia da antiga caverna, assoberbada galopava nas trevas. Não concedia a trégua, bania a razão para os confins inimagináveis do abismo mais profundo. A vida nutrida de fúria galopava na engrenagem monstruosa do absurdo, o elogio de nadas, tudo sem sentido. Orgulhoso o hominho irascível, inundado de prazer, sorrindo de contente com o holocausto, rostos de penúria, estilhaços de gente por todos os cantos.


No final, o triunfo do amor. Solda­dos uníssonos no campo da vitória. Retirada do estúpido abismo, de forças dementes a razão açoitada no gesto vil, a pobre coitada ainda resistia. Encerrada com os corpos de pessoas fuziladas, o tenebroso acúmulo de ossatura, o teatro fétido nos odores da morte, empilhada nos canais enormes.

Grande passeata pelas ruas do lado de cá, gente grande e pequena dando vivas à liberdade. O sorriso que alarga o rosto apareceu na rua de barro batido, os habitantes da cidade pequena em euforia incontrolável. Bombas inimigas caladas para sempre. Já não existem mais as horas do mundo cheio de grito e agonia. Os sinos tocando sem parar a canção constante da paz, antiga, belíssima, irradiando bondade e alegria.

Acreditava-se nos dias promissores. O homem redimido agora, renascido da razão, nervos fraternos, sentimentos do amor. Cânticos emanavam do peito o bem supremo da felicidade. Não mais o coração esmagado sob as patas impassíveis de manadas enfurecidas. Nos ares libertos da opressão, bemóis da cantiga geral da união como verdade.

A praça, um bloco extenso de gente, comoventes olhos brilhavam na direção do homem fardado no palanque. De volta da guerra, o rosto do herói numa máscara feita de tecidos sólidos. O locutor chamou o guardador dos ramos da vitória. Entregou-lhe o microfone. “Comece, por favor, estão ansiosos para ouvir seu relato sobre o horror.” O homem disse para o locutor, tinha o olhar imóvel diante da multidão, soltando murmúrios, o vozear confuso, “não posso”. “Faça um esforço”, retornou o locutor, animando-o. “Não tenho palavras para descrever o terror”. Acrescentou, mastigando as palavras, “é impossível”. O locutor ainda perguntou, “não tem palavras?”. O herói fez um esgar medonho, deixou todos com a expressão no assombro diante do silêncio impassível. Com dificuldade, confirmou, “perdi as palavras nos anos de fogo e bombardeio.”

A multidão frustrada, gente triste rumo às suas casas, passos pesados, arrastados, em silêncio, rostos para o chão. Uma procissão de almas penadas, visagens de outro mundo. O herói havia ajudado esmagar uma mulher diabólica, que arrasa os sonhos, bombardeia projetos, dizima a maravilha, mata a esperança, tritura a ternura, no lugar põe o abismo, que engole a razão sem remorso. Com sua corrida desembestada, pisoteia tudo que nasce do amor. Era importante ouvi-lo. Inútil sua palavra congelada. Imprestável para relatar o terror. Sua razão não tinha sã consciência para descrever a imensa desgraça que viveu no pior abismo.
Cyro de Mattos

Ameaça declarada

Faço um alerta para que fiquem atentos a todos os sinais de pressão sobre a democracia liberal, vez que no Brasil e no mundo surgem vozes contrárias ao regime de leis, ao respeito aos direitos fundamentais e ao meio ambiente sadio também para as futuras gerações
Rachel Dodge, em sua última sessão no STF na Procuradoria Geral da República

Censo de moradores de rua em Berlim

Na noite de 29 de janeiro de 2020, centenas de pessoas sairão às ruas de Berlim em busca de moradores de rua. O grupo terá como missão descobrir quantas pessoas vivem nas ruas da capital alemã.

Numa espécie de censo, cerca de 450 duplas caminharão pela cidade na noite fria de janeiro em busca dos moradores de rua. Além de contar, quantos são, as duplas irão questioná-los sobre a situação de cada um e sua origem.

Os grupos de entrevistadores voluntários serão compostos por pessoas que falem outras línguas além do alemão. O projeto foi batizado de "Noite da Solidariedade".

"As pessoas que moram nas ruas são parte desta cidade", afirmou a secretária de Cidadania, Elke Breitenbach, à emissora local rbb, que junto com instituições sociais desenvolveu diretrizes para abordar a questão dos sem-teto. O censo é o passo inicial destas medidas.


As informações descobertas no levantamento servirão de base para a formulação de políticas públicas voltadas às necessidades de moradores de rua. Atualmente, a prefeitura de Berlim investe 8,3 milhões de euros (cerca de 37 milhões de reais) por ano em 27 projetos de ajuda aos sem-teto. Com as novas diretrizes, será possível abordar a questão buscando soluções direcionadas.

Ninguém sabe o número exato de pessoas nessa condição em Berlim. Estima-se que sejam entre 4 mil e 10 mil. Muitas vieram de outros países da Europa, principalmente do leste do continente, em busca de uma vida melhor, mas acabaram perdendo o rumo na capital alemã.

Outras, antes de perderam o teto, enfrentaram dramas familiares, doenças psicológicas, vícios ou crise financeira. Saber as causas que levaram pessoas a morar na rua é importante para desenvolver políticas voltadas para prevenir essa situação.

No inverno, a vida nas ruas se torna especialmente perigosa. Pessoas ficam expostas a temperaturas negativas, chuvas e neve e correm o risco de morrer de hipotermia. Atualmente, há na capital alemã cerca de 1,2 mil camas em abrigos para receber moradores de rua durante esse período.

Além disso, estações de metrô costumam ficar abertas à noite, e um ônibus circula pela cidade em busca daqueles que desejam ir para abrigos ou cafés que ficam abertos a noite toda para receber pessoas desabrigadas.

As novas diretrizes da prefeitura devem aumentar o número de vagas disponíveis em abrigos, estabelecer padrões de qualidade obrigatórios nestes locais e criar locais seguros para os sem-teto, onde eles possam viver o ano todo e com acesso à cozinha e banheiro – por exemplo, em terrenos onde possam ser construídas pequenas casas de madeira. A ideia é criar pequenas comunidades onde essas pessoas possam viver com o mínimo de dignidade.

Além disso, Berlim quer aumentar o número de apartamentos destinados a abrigar moradores de rua e desenvolver medidas para evitar que pessoas percam suas casas, como facilitar o processo para que o Estado assuma dívidas de aluguel.

Um sistema deve simplificar também o processo de busca por acomodações para sem-teto, ao listar vagas disponíveis e para quem elas são adequadas – por exemplo, mulheres com crianças, só mulheres ou deficientes físicos.

As diretrizes foram desenvolvidas junto com instituições sociais que prestam auxílio a moradores de rua. Com elas, a prefeitura pretende diminuir ao menos um pouco o sofrimento daqueles que não têm um teto.
Clarissa Neher

Nuvens mudam de forma

O quadro de polarização que o presidente Bolsonaro alimenta com suas agressões e polêmicas quase diárias não o está favorecendo, se levarmos em conta pesquisas de popularidade do DataFolha. Não é apenas a queda, mas o aumento da rejeição do eleitorado que indica, segundo analistas, que a sua situação neste momento do governo é pior, por exemplo, do que a do então presidente Fernando Collor nos mesmos períodos.

A avaliação da esquerda é que essa queda se dá devido à polarização politica. Mas o erro da estratégia de Bolsonaro, e da avaliação da esquerda, é que eles estão jogando na perpetuação da disputa com o PT, esquecendo-se de que o momento político do país é outro e, se é verdade que o antipetismo continua forte, ainda não há a necessidade de se escolher entre ele e o PT, ao contrário do que aconteceu na eleição de 2018. O centro volta a ser um espaço politico possível, embora não concretizado.

Existe um campo para especulações de alternativas políticas, e, portanto, amplo espaço para que se explicite a recusa a seu modo de pensar e agir. Na campanha presidencial, enquanto o centro não se mostrou incompetente para derrotar o PT, havia expectativa de uma fusão de candidaturas, ou duas ou três alternativas, que, no final, não se confirmaram viáveis. E Bolsonaro saiu de cerca de 20% para vencer no segundo turno com mais de 60% dos votos.

Havia outra diferença fundamental: Bolsonaro encarava a nova política e o combate à corrupção. A maioria que queria mudar a situação do país via nele a única alternativa competitiva diante de candidatos do PSDB, do PT, ou apoiados pelo MDB, representantes da “velha política”, que foram ficando pelo caminho. Com exceção de Lula, que liderava as pesquisas e, certamente, levaria Bolsonaro para um segundo turno. Hoje já existe a percepção dos que se enganaram de que o presidente Bolsonaro não é aquele que parecia ser, nem no combate à corrupção, nem na confrontação com a “velha política”.

Depois que seu filho Flavio começou a ser investigado pelo Ministério Público e pela Polícia Federal, acusado de praticas ilegais em seu gabinete de deputado estadual na Assembléia do Rio de Janeiro, Bolsonaro dedicou-se à mais antiga das práticas políticas: aparelhar os órgãos de investigação para controlá-las, boicotar a Operação Lava-Jato, constrangendo seu ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, fazer acordos dentro do Congresso para conseguir aprovar Eduardo como embaixador nos Estados Unidos, indicação, aliás, que desagradou boa parte de seus seguidores.

Os interesses pessoais da família Bolsonaro passaram a ser prioritários em relação aos supostos projetos de governo. Nomeações de autoridades com o beneplácito dos filhos, e de amigos deles, passaram a ser corriqueiras. O presidente do BNDES é amigo de infância, o delegado escalado para substituir o superintendente da Polícia Federal também é bem relacionado com eles. Por tudo isso, a polarização, embora exista, não encontra o mesmo terreno fértil da campanha presidencial.

Comparando-se pesquisas de popularidade do Datafolha sobre os governos Collor e Bolsonaro em três períodos (expectativa antes da posse, após três meses de governo, e depois de seis meses), vê-se que a avaliação de “ótimo e bom” é a mesma, dentro da margem de erro.

O problema começa quando se analisa o regular de Bolsonaro, que é muito menor do que o de Collor na mesma época. Em decorrência, o ruim e péssimo de Bolsonaro é muito maior do que o de Collor. Na politica, as nuvens mudam de forma rapidamente, como ensinava Magalhães Pinto. Analistas admitem que não é possível dizer que a popularidade de Bolsonaro terá a mesma trajetória da de Collor daqui para frente, mas, sem dúvida, a recuperação, caso ocorra, tende a ser mais difícil.

Vamos ajudar o procurador a sair do miserê?

Não é sempre que o país se comove com o apelo sincero de um procurador da Justiça. Leonardo Azeredo dos Santos, do Ministério Público de Minas Gerais, conseguiu essa façanha. Foi gravado quando os procuradores discutiam orçamento para 2020. Ameaça virar mendigo se continuar com o salário “miserê” de R$ 24 mil líquidos. Tem mulher e filho. De janeiro a julho, juntando os penduricalhos, ganhou R$ 560 mil.

Sugiro ao prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, um movimento para interditar os contracheques dos procuradores mineiros, por obscenidade e atentado ao pudor. Nenhuma criança pode ver esses valores ou escutar o áudio de Leonardo, porque atentam contra a dignidade de um Brasil com 13 milhões de desempregados. Podem causar um mal indelével à educação e à infância, estimulando a falta de empatia e o senso de irrealidade.

Daqui a pouco Leonardo vai criar o “Procurador Esperança”. Vamos doar qualquer real a esse brasileirinho, marido e pai, gente como a gente. Afinal, a culpa é nossa porque somos nós, contribuintes, que pagamos o miserê do funcionário público. Peço a todos que guardem esse texto e escutem a voz embargada de Leonardo. Reparem em seu desespero, fiquem condoídos.


“Como é que o cara vai viver com R$ 24 mil? Eu já estou baixando meu padrão de vida bruscamente, mas vou sobreviver. E não é porque eu sou perdulário, não. É para manter o meu patrimônio. O patrimônio que eu conquistei ao longo de 28 anos de carreira. Eu sou perdulário porque pago R$ 4,5 mil de condomínio e IPTU por mês...Eu, infelizmente, não tenho origem humilde. Eu não sou acostumado com tanta, com tanta... limitação”.

“Eu quero saber se nós, ano que vem, vamos continuar nessa situação ou se Vossa Excelência já planeja alguma coisa, dentro da sua criatividade, pra melhorar nossa situação. Ou se nós vamos ficar nesse...nessa...nesse ‘miserê’ aí. Eu já tô fazendo a minha parte. Tô deixando de gastar R$ 20 mil de cartão de crédito. Tô passando a gastar R$ 8 mil. Agora, eu e vários outros já estamos vivendo à base de comprimido, à base de antidepressivo. Alguma coisa tem que ser feita. Nós vamos virar pedinte (sic), quase? Será que eu tô pedindo <br/>muito para o cargo que eu ocupo?”

O procurador geral da Justiça de MG, Antônio Sérgio Tonet, disse que Leonardo tem uma opinião “divorciada” dos demais membros do MPMG e não representa o sentimento da classe. Não basta, Tonet. Agora que ele apelou para “sua criatividade”, corte os penduricalhos dos procuradores. Leonardo sumiu do gabinete e está de “licença médica”. Espero que não tenha aumentado a dose de antidepressivo. Não se sabe por quanto tempo ficará afastado. Viajará para o exterior, talvez.

O doutor procurador sabe o que é “miserê”? Quem ganha menos de US$ 5,50 por dia (hoje R$ 670 por mês) está abaixo da linha da pobreza, segundo o IBGE e o Banco Mundial. São 55 milhões de brasileiros. Muitos catam lixo e comem comida descartada de porcos, não têm banheiro, vivem em barracos, palafitas, passam fome, não têm acesso a nenhum serviço.

Miséria é isso.O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, só perde para o Qatar, emirado árabe absolutista. Desigualdade brasileira bateu recorde: 40% dos mais pobres têm renda média mensal de R$ 376 e 1% recebe por mês R$ 106,3 mil em média. Número também é cultura. Leia de novo antes que se instale a censura.