quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Pensamento do Dia

 


Não se confunda nacionalismo com patriotismo

O patriotismo estriba-se num passado mitificado de um povo ou país e numa ideia de grandeza histórica. Já o nacionalismo remete para a expectativa da hegemonia de um povo sobre os outros. E é assim que surge o MAGA (Make América Great Again), numa fase de perda de influência dos Estados Unidos no mundo, ou o Brexit, inspirado na nostalgia do velho Império Britânico. Se patriotismo é um sentimento de amor à pátria, nacionalismo será a defesa dos interesses particulares de uma nação enquanto espaço exclusivo e identitário, que guarda um território, uma etnia, uma língua e um legado cultural específicos.

Enquanto ideologia política, o nacionalismo presta mais atenção à defesa da integridade e independência do país do que à exaltação dos símbolos patrióticos, embora os utilize com frequência como marca distintiva.

Nascida na sequência da Revolução Francesa, a ideologia nacionalista assumiu grande relevância na organização política dos estados durante todo o século XIX, firmando-se como um conceito desenvolvido para conjugar a ascensão do sentimento de pertença a uma cultura, a uma região geográfica, a uma língua ou a um povo concretos.

Este fenómeno acabou por responder às forças políticas que, apoiadas pelas ideias iluministas, pretendiam rejeitar a lógica da monarquia absolutista. Tal permitiria a construção de estados nacionais de base constitucional e segundo um modelo democrático, no qual a população fosse constituída por cidadãos portadores de direitos e deveres e não por súbditos dum monarca, dependentes dos seus favores.

Ao contrário dos estados nacionais que surgiram no continente europeu nos séculos anteriores, os que emergiram no séc. XIX, e que foram construídos à volta da figura do monarca, optaram mais pela forma republicana do regime, como sucedeu com os processos de unificação da península italiana ou a alemã. Entretanto o regime republicano e o fenómeno das grandes concentrações populacionais nas cidades, devido à revolução industrial, contribuíram para a Grande Guerra e a ascensão dos totalitarismos de caráter nacionalista que dela decorreram, como os regimes nazi e fascista.

No caso alemão, as teorias racistas e defensoras da superioridade da raça ariana de pendor nacionalista, assim como a ideia de que o povo germânico estava destinado a construir o Terceiro Reich, isto é, um império mundial que duraria mil anos, promoveram a catástrofe.

De facto, a ideologia nacionalista tem sido frequentemente utilizada por alguns movimentos para sublinhar diferenças étnicas que servirão de base ao racismo. Uma coisa é ser patriota, isto é, amar a pátria e respeitar os seus símbolos e a sua história. Outra coisa é considerar o povo português superior a qualquer outro, porque sim.

A tendência atual é a cooperação multilateral entre estados com vista ao desenvolvimento económico e social e à promoção da paz. Foi justamente por isso que surgiu a Comunidade Económica Europeia (CEE) através do Tratado de Roma em 1957, que entretanto fez o seu caminho e hoje se designa como União Europeia, e contra a qual os extremistas se levantam tentando fazê-la implodir a partir de dentro. Essa cooperação cada vez mais ampla reforçou-se agora como o recente acordo histórico alcançado entre a União Europeia e o Mercosul.

É por tudo isto que não convém confundir a estrada da Beira com a beira da estrada, ou seja, patriotismo com nacionalismo. O primeiro é uma coisa boa, já o lugar do segundo será no caixote do lixo da História. E quando se mistura nacionalismo com religião (uma tentação muito presente em diversas regiões do mundo) obtém-se uma mistura indigna e altamente destrutiva.

Jesus Cristo não era nacionalista, embora respeitasse a pátria onde nasceu e o seu povo, tal como as respetivas tradições. Nunca foi sicário nem aderiu ao orgulho étnico-religioso dos judeus do seu tempo, os quais perfilhavam uma das mais repugnantes variantes da ideologia nacionalista-religiosa, a ponto de considerarem os gentios como cães. No fundo, o Mestre sabia que o seu reino não era deste mundo, coisa que nem todos os cristãos sabem.
José Brissos-Lino

Encontrando a esperança na era do ressentimento

Esta é minha última coluna para o The New York Times, onde comecei a publicar minhas opiniões em janeiro de 2000. Estou me aposentando do Times, não do mundo, então ainda expressarei minhas opiniões em outros lugares. Mas esta parece uma boa ocasião para refletir sobre o que mudou nesses últimos 25 anos.

O que me impressiona, olhando para trás, é como muitas pessoas, tanto nos EUA quanto em grande parte do mundo ocidental, eram otimistas naquela época e até que ponto esse otimismo foi substituído por raiva e ressentimento.

E não estou falando apenas de integrantes da classe trabalhadora que se sentem traídos pelas elites; algumas das pessoas mais irritadas e ressentidas nos Estados Unidos agora —pessoas que parecem muito almejar ter muita influência com o governo Trump que está por vir— são bilionários que não se sentem suficientemente admirados.



É difícil transmitir o quão bem a maioria dos norte-americanos se sentia em 1999 e no início de 2000. As pesquisas mostravam um nível de satisfação com a direção do país que parece surreal nos padrões atuais. Minha percepção sobre o que aconteceu na eleição de 2000 foi que muitos americanos consideraram a paz e a prosperidade como garantidas, então votaram no cara que parecia ser mais divertido de se conviver.

Na Europa, também, as coisas pareciam estar indo bem. Em particular, a introdução do euro em 1999 foi amplamente saudada como um passo em direção a uma maior integração política e econômica —em direção a um Estados Unidos da Europa, se preferir. Alguns de nós, norte-americanos, tínhamos precauções, mas inicialmente elas não eram amplamente compartilhadas.


Claro, não era tudo flores e arco-íris. Havia, por exemplo, já um bom número de teorias da conspiração do tipo proto-QAnon e até mesmo casos de terrorismo doméstico nos Estados Unidos durante os anos Clinton. Houve crises financeiras na Ásia, que alguns de nós viam como um potencial prenúncio do que estava por vir.

Publiquei um livro em 1999 intitulado "O Retorno da Economia da Depressão", argumentando que coisas semelhantes poderiam acontecer nos EUA; lancei uma edição revisada uma década depois, quando aconteceram.

Ainda assim, as pessoas estavam bastante otimistas sobre o futuro quando comecei a escrever para este jornal.

Por que esse otimismo azedou? Como vejo, tivemos um colapso da confiança nas elites: o público não tem mais fé de que as pessoas que estão no comando sabem o que estão fazendo, ou que podemos supor que estão sendo honestas.

Não foi sempre assim. Em 2002 e 2003, aqueles de nós que argumentaram que o caso para invadir o Iraque era fundamentalmente fraudulento foram alvo de críticas de pessoas que se recusavam a acreditar que o presidente dos EUA faria tal coisa. Quem diria isso agora?

De uma maneira diferente, a crise financeira de 2008 minou qualquer fé que o público tinha de que os governos sabiam como gerenciar economias. O euro como moeda sobreviveu à crise europeia que teve o auge em 2012, levando o desemprego em alguns países a níveis da Grande Depressão, mas a confiança nos eurocratas —e a crença em um futuro europeu brilhante— não resistiu.

Não são apenas os governos que perderam a confiança da população. É surpreendente olhar para trás e ver como os bancos eram vistos de forma muito mais favorável antes da crise financeira.

E não faz muito tempo que bilionários da tecnologia eram amplamente admirados em todo o espectro político, alguns alcançando status de heróis populares. Mas agora eles e alguns de seus produtos enfrentam desilusão e pior; a Austrália até proibiu o uso de redes sociais por crianças menores de 16 anos.

O que me traz de volta ao meu ponto de que algumas das pessoas mais ressentidas na América agora parecem ser bilionários irritados.

Já vimos isso antes. Após a crise financeira de 2008, que foi amplamente (e corretamente) atribuída em parte às manobras financeiras, você poderia esperar que os antigos "Mestres do Universo" mostrassem um pouco de contrição, talvez até gratidão por terem sido resgatados. O que recebemos em vez disso foi a "raiva de Obama", fúria contra o 44º presidente dos EUA por até mesmo sugerir que Wall Street poderia ter sido parcialmente culpada pelo desastre.

Hoje em dia, há muita discussão sobre a guinada à direita de alguns bilionários da tecnologia, de Elon Musk para baixo. Eu argumentaria que não devemos pensar demais nisso, e especialmente não devemos tentar dizer que isso é de alguma forma culpa dos liberais politicamente corretos.

Basicamente, resume-se à mesquinhez dos plutocratas que costumavam se deleitar com a aprovação pública e agora estão descobrindo que todo o dinheiro do mundo não pode comprar amor.

Então, há uma saída para o lugar sombrio em que estamos? Eu acredito que, embora o ressentimento possa colocar pessoas ruins no poder, a longo prazo ele não pode mantê-las lá. Em algum momento, o público perceberá que a maioria dos políticos que criticam as elites na verdade pertencem a essa elite em todos os sentidos que importam e começará a responsabilizá-las por seu fracasso em cumprir suas promessas. E nesse ponto, o público pode estar disposto a ouvir pessoas que não tentam argumentar a partir da autoridade, não fazem promessas falsas, mas tentam dizer a verdade da melhor forma possível.

Talvez nunca recuperemos esse tipo de fé em nossos líderes —a crença de que as pessoas no poder geralmente dizem a verdade e sabem o que estão fazendo— que costumávamos ter. Nem deveríamos. Mas se enfrentarmos a kakistocracia —governo pelos piores— que está emergindo enquanto falamos, podemos eventualmente encontrar nosso caminho de volta para um mundo melhor.

Solilóquio

Vão tirar o terminal do meu ônibus do centro da cidade, vão tirar do centro da cidade o meu ônibus, vão me tirar do centro da cidade?

Vão tirar da cidade o centro da cidade, vão tirar da cidade toda a cidade, vão fazer o que da cidade?

Vão plantar uma cidade nova no lugar da cidade carcomida, vão desistir de manter as ruínas da cidade, vão decretar que cidade não é mais de a gente viver?

Vão fazer ruas de cima para baixo, em forma de cisterna, para o que já se abrem os competentes buracos e se desaconselha andar na superfície para não prejudicar as obras?

Vão me dar passagem entre o tapume e a pista de corridas, entre o poço e a poça de lama, ou não vão deixar mais que use as pernas e os pés por estarem definitivamente fora de moda?

Vão permitir que eu siga o meu itinerário de trabalho sobre a capota dos automóveis, saltando de uma para outra depois de treinado em academia de técnica pedestre, ou vão estatuir que eu e mais nove concidadãos de bom físico carreguemos nas costas o automóvel, a fim de que automóveis e nós possamos chegar a destino, passando no que outrora se chamava de rua?

Vão dizer quantas pessoas podem sair de casa, a quantas horas, por quanto tempo, e por onde será permitido caminhar, durante quantos minutos, para que as turmas seguintes não sejam prejudicadas na regalia de ir e vir na cidade entupida?

Vão acabar com a cidade, todas as cidades, vão acabar com homem e a mulher também, vão fazer o quê, depois que eles mesmos acabarem?

Carlos Drummond de Andrade, "Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica"

Os sequestradores do Orçamento e da Constituição seguem chantageando o país

O Congresso chantageia o país a céu a aberto. Põe a faca no pescoço dos brasileiros e diz: “Ou as emendas ou a vida”. Valentes parlamentares — não todos, é claro! — ameaçam a estabilidades, apostam no impasse, exigem que a Constituição seja violada, cobram que uma decisão unânime do Supremo seja ignorada e, parafraseando Tarcísio de Freitas, anunciam: “Não estamos nem aí…” A recompensa pela pistolagem é boa. Fala-se aqui de muitos bilhões.


Antes que siga, uma constatação: vocês sabem quanta porrada levou o governo do valente colunismo nativo — quase uma unanimidade — porque o pacote de corte de gastos, afinal, não propôs enforcar miserável com tripa de aposentado, ainda que atinja, sim, também os mais pobres. O “erro”, disseram os corajosos sabujos “duzmercáduz”, foi misturar isenção de Imposto de Renda para quem recebe até R$ 5 mil — medida neutralizada, se e quando aprovada, com a elevação do IR para quem recebe dividendos acima de R$ 50 mil — com ações de contenção de despesas. Teria passado a impressão de que Lula tentou uma compensação.

Ainda que fosse assim, qual o problema? Ou é uma conversa de gente disfuncional ou é papo-furado de safados. Como o dólar tem fechado acima de R$ 6, adivinhem… Se o Copom der uma pancada de um 1 ponto percentual na taxa de juros, talvez os “patriotas” se acalmem um tantinho. Já andei lendo aqui e a ali: só 0,75% de elevação da Selic não vai acalmar a sede dos canibais. Eles querem um copo de sangue maior, para lembrar personagem da Revolução Francesa. Os mesmos que fazem projeções catastrofistas haviam antevisto um crescimento de 1,5% neste ano. É uma gente que erra todas, mas sempre em seu próprio benefício. De volta ao pacote de corte de despesas e às emendas.

É mentira — pura e simplesmente assim: mentira — que as “exigências” do ministro Flávio Dino para a liberação de emendas ignore o texto votado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Lula sem vetos. A verdade está precisamente no oposto. Foi o Congresso que ignorou o que se havia acertado na conversa entre os Três Poderes, como Dino deixa claro em sua decisão, cuja íntegra está aqui.

O que o ministro pede de tão formidável que o Congresso não pode entregar? Que se saiba quem assina as emendas de bancada? Que exista um plano de trabalho para as emendas pix e que os gastos sejam supervisionados pelo TCU? Que ONGs nababescas tenham um site para demonstrar em que gastam as verbas multimilionárias que recebem? Estamos falando de fontes permanentes de escândalos, de aberrações.

Uma entidade levou R$ 90 milhões para promover jogos eletrônicos em escolas, e o custo do aluguel por 10 meses de seus laptops é de R$ 35 mil, quando a aquisição de um aparelho novo no mercado vale um sexto. Uma outra levou R$ 137 milhões para cursos de qualificação profissional de maquiadores, cabeleireiros e designers de sobrancelhas. Entre os contratados, há professores de boxe, jiu-jitsu e futebol. É uma esbórnia. Mas, claro!, Dino exigir que tais cabeças de porco digam onde gastam os bilhões dos contribuintes parece mesmo uma coisa acintosa. Cadê a indignação dos nossos jacobinos dos gastos, da evolução da dívida pública, do equilíbrio fiscal? Essa gente não é contra a lambança, mas contra o governo.

O regime que está em curso no Brasil não é presidencialista, não é parlamentaristas, não é semipresidencialista… Vivemos sob um regime “sequestrista”. O Congresso resolveu sequestrar o Orçamento e se comporta, diante do Executivo, como uma espécie de organização criminosa. Ou o presidente Lula dá um jeito de liberar ao menos R$ 8 bilhões em emendas, ou não tem pacote fiscal, como se o prejuízo de não se votarem as medidas fosse exclusivamente do governo.

Pior: uma tese conspiracionista se espalha — com auxílio de certa prática que lembra remotamente jornalismo, mas que é só um braço do banditismo —, segundo a qual Dino estaria operando em parceria com o governo federal, o que é escandalosamente falso. A ADPF do PSOL — que resultou na liminar que suspendeu as emendas, ora liberadas, mas com critérios — nunca teve vínculo com o Planalto. Ao contrário: houve até uma indiscreta insatisfação oriunda de certas áreas do governo porque, afinal, ele sabe muito bem com quem está lidando. A AGU, note-se, recorreu contra a decisão do ministro, mas teve rejeitado o seu pleito.

Atenção! A Consultoria do Senado elaborou uma nota técnica, cuja íntegra está aqui, deixando claro que o Projeto de Lei Complementar para conferir “transparência” às emendas não atendia às exigências feitas pelo STF e acordadas entre os Três Poderes. Lá se lê:

“O projeto não responde a praticamente nenhuma das exigências colocadas por essas duas fontes normativas: de 14 critérios e parâmetros identificados, apenas 3 deles são atendidos substancialmente pelos dispositivos do projeto, e, ainda assim, esses 2 quesitos já constam dos normativos vigentes”.

Mais ainda:

“Todos os demais requisitos não foram atendidos, quer por ausência completa de menção a eles no projeto, quer por dispositivos do projeto que, aparentando abordar o requisito, terminam por negar-lhe cumprimento.”.

O regime Sequestrista vigente no Brasil entende que os senhores parlamentares não estão sujeitos às exigências de transparência no gasto do dinheiro público, conforme exige a Constituição.