segunda-feira, 4 de março de 2024
A vida tem marchado
A vida tem marchado como um desfile militar,
com seus horários,
com seus uniformes,
com suas armas de guerra
apontadas para a plateia,
que aplaude esse
sangue
que
não
é
seu.
Mas poderia.
Diego Ruas, "A Fome é a Mãe de Todas as Bombas"
com seus horários,
com seus uniformes,
com suas armas de guerra
apontadas para a plateia,
que aplaude esse
sangue
que
não
é
seu.
Mas poderia.
Diego Ruas, "A Fome é a Mãe de Todas as Bombas"
Como Israel perdeu a sua 'vitória total' em Gaza
A “vitória total”, ao que parece, é algo como o equivalente israelita ao Santo Graal do Rei Artur. O cálice, sagrado e mágico, com o suposto poder de conceder ao seu detentor força, riqueza, honra e estatuto – e no caso israelita, muitos legisladores da coligação que poderão manter os seus assentos no Knesset – desapareceu.
Todos estão em busca do Graal da vitória – o exército e o governo, os partidos e facções, a direita e a extrema direita, os indiciados e os suspeitos. Eles estão procurando e não conseguiram encontrar. Há pouco mais de cinco meses, parecia estar ao seu alcance, mas a sua estupidez afastou-o.
Isto foi no dia 8 de outubro, um dia após o ataque às comunidades fronteiriças de Gaza (ou talvez na noite de 7 de outubro), quando Israel entrou em guerra, não só com os terroristas do Hamas, mas uma guerra total.
O porta-voz das Forças de Defesa de Israel, um robô falante, relatou naquele dia sobre “milhares de vítimas em Gaza – 426 alvos atacados, túneis, infraestruturas militares, dezenas de edifícios terroristas [nada menos] com 10 andares de altura, e mais e mais. A Força Aérea iniciou nesse mesmo dia a sua campanha de morte e destruição que não teve interrupção até hoje.
Assim, em 36 horas, sem um pingo de preparação e planeamento, sem qualquer ideia sobre qual era o seu propósito ou uma estratégia de saída, Israel embarcou numa guerra selvagem – uma guerra ditada pela bílis, delírios de grandeza, um ego ferido e a sua nudez. expor. Um país são não iria para uma guerra assim. É assim que você conduz um linchamento.
No dia seguinte, 9 de Outubro, o Ministro da Defesa Yoav Gallant anunciou um “bloqueio total” de Gaza – nem água, nem comida, nem eletricidade, nem medicamentos chegariam até lá. Este foi o momento em que nos privamos para sempre da “vitória total”.
Se Israel tivesse demonstrado um mínimo de bom senso, teria contido as suas paixões violentas. Ter-se-ia baseado na moderação demonstrada por Golda Meir após o massacre de Munique, pelo presidente dos EUA, George Bush, após o 11 de Setembro e até mesmo pelos iranianos, que respondem com um lacónico “responderemos no momento e no lugar apropriados” após cada “assassinato” israelita. ” ou outra operação contra eles.
Se tivéssemos agido corretamente, Israel teria se encontrado na sua posição favorita de todos – a vítima, o perseguido, o sofredor, o infeliz. E desta vez, para variar, também teria havido bastante justiça nisso. O mundo inteiro teria sentido a nossa dor e nos inundado de amor. Teríamos sido convidados com prazer para a Eurovisão . O Hamas teria sido considerado um mal absoluto; Israel, o melhor absoluto.
Mas Israel não é dado ao bom senso. Seus instintos levaram a melhor novamente. Era mais importante estimular o ego, distrair todos do desastre, deliciar as massas com uma grande dose de vingança. Não é assim que você alcança a “vitória total”, mas sim como você adquire a marca de Caim.
E à medida que a montanha de cadáveres palestinianos e de casas arruinadas cresce cada vez mais, também cresce a marca de Caim na testa de Israel. E quando atingimos dezenas de milhares de vítimas, mais de metade das quais crianças e mulheres, Israel juntou-se ao clube dos países condenados ao ostracismo, marcados e leprosos, alvo de indignação, protestos e sanções, um país indesejável na sociedade educada.
Hoje, não podemos sequer sonhar com a “vitória total” (na verdade, qualquer vitória) decorrente deste mal ou ainda mais desta estupidez.
E o auge do grotesco é que o “Estado Judeu”, que durante anos se irritou com o silêncio do mundo cruel durante o Holocausto, está agora a exigir em voz alta que o mundo se mantenha quieto e não interfira no nosso trabalho.
Todos estão em busca do Graal da vitória – o exército e o governo, os partidos e facções, a direita e a extrema direita, os indiciados e os suspeitos. Eles estão procurando e não conseguiram encontrar. Há pouco mais de cinco meses, parecia estar ao seu alcance, mas a sua estupidez afastou-o.
Isto foi no dia 8 de outubro, um dia após o ataque às comunidades fronteiriças de Gaza (ou talvez na noite de 7 de outubro), quando Israel entrou em guerra, não só com os terroristas do Hamas, mas uma guerra total.
O porta-voz das Forças de Defesa de Israel, um robô falante, relatou naquele dia sobre “milhares de vítimas em Gaza – 426 alvos atacados, túneis, infraestruturas militares, dezenas de edifícios terroristas [nada menos] com 10 andares de altura, e mais e mais. A Força Aérea iniciou nesse mesmo dia a sua campanha de morte e destruição que não teve interrupção até hoje.
Assim, em 36 horas, sem um pingo de preparação e planeamento, sem qualquer ideia sobre qual era o seu propósito ou uma estratégia de saída, Israel embarcou numa guerra selvagem – uma guerra ditada pela bílis, delírios de grandeza, um ego ferido e a sua nudez. expor. Um país são não iria para uma guerra assim. É assim que você conduz um linchamento.
No dia seguinte, 9 de Outubro, o Ministro da Defesa Yoav Gallant anunciou um “bloqueio total” de Gaza – nem água, nem comida, nem eletricidade, nem medicamentos chegariam até lá. Este foi o momento em que nos privamos para sempre da “vitória total”.
Se Israel tivesse demonstrado um mínimo de bom senso, teria contido as suas paixões violentas. Ter-se-ia baseado na moderação demonstrada por Golda Meir após o massacre de Munique, pelo presidente dos EUA, George Bush, após o 11 de Setembro e até mesmo pelos iranianos, que respondem com um lacónico “responderemos no momento e no lugar apropriados” após cada “assassinato” israelita. ” ou outra operação contra eles.
Se tivéssemos agido corretamente, Israel teria se encontrado na sua posição favorita de todos – a vítima, o perseguido, o sofredor, o infeliz. E desta vez, para variar, também teria havido bastante justiça nisso. O mundo inteiro teria sentido a nossa dor e nos inundado de amor. Teríamos sido convidados com prazer para a Eurovisão . O Hamas teria sido considerado um mal absoluto; Israel, o melhor absoluto.
Mas Israel não é dado ao bom senso. Seus instintos levaram a melhor novamente. Era mais importante estimular o ego, distrair todos do desastre, deliciar as massas com uma grande dose de vingança. Não é assim que você alcança a “vitória total”, mas sim como você adquire a marca de Caim.
E à medida que a montanha de cadáveres palestinianos e de casas arruinadas cresce cada vez mais, também cresce a marca de Caim na testa de Israel. E quando atingimos dezenas de milhares de vítimas, mais de metade das quais crianças e mulheres, Israel juntou-se ao clube dos países condenados ao ostracismo, marcados e leprosos, alvo de indignação, protestos e sanções, um país indesejável na sociedade educada.
Hoje, não podemos sequer sonhar com a “vitória total” (na verdade, qualquer vitória) decorrente deste mal ou ainda mais desta estupidez.
E o auge do grotesco é que o “Estado Judeu”, que durante anos se irritou com o silêncio do mundo cruel durante o Holocausto, está agora a exigir em voz alta que o mundo se mantenha quieto e não interfira no nosso trabalho.
Dia infame
A última entrega de alimentos da ONU aos famintos da cidade de Gaza fora no dia 23 de janeiro. Perto de 250 mil civis palestinos vagavam entre as ruínas de suas vidas passadas havia 37 dias e 37 noites. Todo vestígio de comando ou estrutura administrativa havia sido erradicado pelos bombardeios e pela ocupação militar israelense. Mais de 1 milhão de famílias já haviam sido desterradas a fórceps para o sul. Os que permaneceram formavam um amontoado humano em meio ao nada, sem amanhã. O fundo do poço era ali: muitos alimentavam os filhos com ração animal, enquanto cães igualmente errantes se alimentavam de pedaços de carne humana entre destroços.
Foi nessas condições que Gaza chegou às primeiras horas da madrugada de quinta-feira, 29 de fevereiro deste ano bissexto. Dia infame.
Quando 39 caminhões da agência humanitária UNRWA foram percebidos adentrando a principal via litorânea, a notícia rastilhou na escuridão desértica. E o comboio que deveria levar a preciosa carga até o depósito de abastecimento, para distribuição in loco, se viu cercado por massas esfomeadas. Como não saquear?
— Trocamos a alma por um saco de farinha — resumiu o médico palestino Yehia Al Masri no New York Times.
A 250 metros de distância havia dois tanques israelenses; e um pouco mais adiante, uma base avançada das forças de ocupação. Foi das armas desses militares, segundo porta-vozes do próprio comando israelense, que partiram os disparos. Teriam sido “defensivos, só ocorreram porque a multidão se moveu de forma a colocar em perigo os soldados”. Não para o resto do mundo, nem para boa parte de judeus não radicalizados pelo desgoverno Netanyahu. A extinção de vidas que já dura quase cinco meses é consequência do ódio — ódio ao palestino. Palestino terrorista ou palestino civil, de esquerda ou de direita, homem, mulher ou criança, esse estorvo de gente que teima em se dizer palestino nem sequer deveria existir.
Ao final do dia sangrento em que se misturaram mortos a tiros, sufocados na multidão e atropelados pelos caminhões em fuga, restaram indagações cruciais. O comando militar de Israel divulgou imagens de vídeo feitas por drones, sem áudio, em que se percebe claramente haver cortes, edição — dos fragmentos divulgados não constam imagens anteriores ao momento em que as massas humanas se põem a correr para longe dos caminhões. Há pessoas se arrastando no chão, buscando proteção ao abrigo de muros. Fugiam do quê?
A fuzilaria virou gatilho para desencadear cobranças, pedidos de investigação e acusações por parte de aliados históricos de Israel, repentinamente mais impacientes com Netanyahu que os países-irmãos árabes. Por ora, o presidente francês Emmanuel Macron é quem está em situação mais confortável, tem direito a arroubos tonitruantes. Ele é o único chefe de Estado que, desde o final do ano passado, tem um porta-helicópteros anfíbio da Marinha ancorado no litoral de Gaza, atendendo a feridos da invasão israelense. Também são franceses os aviões que despejam sobre Gaza suprimentos que nem sempre chegam a quem mais precisa deles — toda guerra, assim como a paz, tem seus atravessadores. Mas ao menos tentativas são feitas.
Nem isso o governo de Joe Biden tinha coragem de tentar até semana passada. Compreende-se: é de fato incongruente conciliar uma ação humanitária dos Estados Unidos para palestinos, quando estes são estraçalhados por armamentos israelenses financiados por Washington. Por três vezes desde o atentado terrorista do Hamas contra Israel, a embaixadora dos EUA na ONU ergueu o braço para votar no Conselho de Segurança. Por três vezes desde o atentado terrorista do Hamas contra Israel, a embaixadora dos Estados Unidos na ONU ergueu o braço direito para votar no Conselho de Segurança. Nas três vezes ela, Linda Thomas-Greenfield, vetou as diferentes propostas de cessar-fogo em Gaza, começando pela do Brasil. Receberá julgamento da História semelhante ao do ex-secretário de Estado do governo George Bush que forneceu dados falsos à ONU para favorecer a invasão do Iraque pelos americanos em 2003.
Quantos civis palestinos não precisariam ter morrido nestes quatro meses e 27 dias sem cessar-fogo? Quantos mais morrerão de fome, doenças, pisoteados ou a tiros antes que o mundo, envergonhado, force Israel a parar a insânia? Já são perto de 30 mil (e 70 mil feridos), segundo dados do Hamas que até mesmo o governo Biden aceita — mesmo número de soldados ucranianos mortos em dois anos de guerra. Melhor nem pensar por enquanto no que escondem os escombros de Gaza.
P.S.: Recomenda-se aqui um pequeno livro de grande utilidade para abrir mentes desarmadas, interessadas no viver alheio: “Tornar-se Palestina”, de Lina Meruane. Nascida no Chile e residente em Nova York, a escritora de ascendência palestina convida o leitor a acompanhá-la na compreensão do que é ser palestino. Para quem não quer perder tempo com introitos, pode começar a viagem no capítulo II. Será uma viagem civilizatória que não necessita de concordância. Basta ser humano.
Foi nessas condições que Gaza chegou às primeiras horas da madrugada de quinta-feira, 29 de fevereiro deste ano bissexto. Dia infame.
Quando 39 caminhões da agência humanitária UNRWA foram percebidos adentrando a principal via litorânea, a notícia rastilhou na escuridão desértica. E o comboio que deveria levar a preciosa carga até o depósito de abastecimento, para distribuição in loco, se viu cercado por massas esfomeadas. Como não saquear?
— Trocamos a alma por um saco de farinha — resumiu o médico palestino Yehia Al Masri no New York Times.
A 250 metros de distância havia dois tanques israelenses; e um pouco mais adiante, uma base avançada das forças de ocupação. Foi das armas desses militares, segundo porta-vozes do próprio comando israelense, que partiram os disparos. Teriam sido “defensivos, só ocorreram porque a multidão se moveu de forma a colocar em perigo os soldados”. Não para o resto do mundo, nem para boa parte de judeus não radicalizados pelo desgoverno Netanyahu. A extinção de vidas que já dura quase cinco meses é consequência do ódio — ódio ao palestino. Palestino terrorista ou palestino civil, de esquerda ou de direita, homem, mulher ou criança, esse estorvo de gente que teima em se dizer palestino nem sequer deveria existir.
Ao final do dia sangrento em que se misturaram mortos a tiros, sufocados na multidão e atropelados pelos caminhões em fuga, restaram indagações cruciais. O comando militar de Israel divulgou imagens de vídeo feitas por drones, sem áudio, em que se percebe claramente haver cortes, edição — dos fragmentos divulgados não constam imagens anteriores ao momento em que as massas humanas se põem a correr para longe dos caminhões. Há pessoas se arrastando no chão, buscando proteção ao abrigo de muros. Fugiam do quê?
A fuzilaria virou gatilho para desencadear cobranças, pedidos de investigação e acusações por parte de aliados históricos de Israel, repentinamente mais impacientes com Netanyahu que os países-irmãos árabes. Por ora, o presidente francês Emmanuel Macron é quem está em situação mais confortável, tem direito a arroubos tonitruantes. Ele é o único chefe de Estado que, desde o final do ano passado, tem um porta-helicópteros anfíbio da Marinha ancorado no litoral de Gaza, atendendo a feridos da invasão israelense. Também são franceses os aviões que despejam sobre Gaza suprimentos que nem sempre chegam a quem mais precisa deles — toda guerra, assim como a paz, tem seus atravessadores. Mas ao menos tentativas são feitas.
Nem isso o governo de Joe Biden tinha coragem de tentar até semana passada. Compreende-se: é de fato incongruente conciliar uma ação humanitária dos Estados Unidos para palestinos, quando estes são estraçalhados por armamentos israelenses financiados por Washington. Por três vezes desde o atentado terrorista do Hamas contra Israel, a embaixadora dos EUA na ONU ergueu o braço para votar no Conselho de Segurança. Por três vezes desde o atentado terrorista do Hamas contra Israel, a embaixadora dos Estados Unidos na ONU ergueu o braço direito para votar no Conselho de Segurança. Nas três vezes ela, Linda Thomas-Greenfield, vetou as diferentes propostas de cessar-fogo em Gaza, começando pela do Brasil. Receberá julgamento da História semelhante ao do ex-secretário de Estado do governo George Bush que forneceu dados falsos à ONU para favorecer a invasão do Iraque pelos americanos em 2003.
Quantos civis palestinos não precisariam ter morrido nestes quatro meses e 27 dias sem cessar-fogo? Quantos mais morrerão de fome, doenças, pisoteados ou a tiros antes que o mundo, envergonhado, force Israel a parar a insânia? Já são perto de 30 mil (e 70 mil feridos), segundo dados do Hamas que até mesmo o governo Biden aceita — mesmo número de soldados ucranianos mortos em dois anos de guerra. Melhor nem pensar por enquanto no que escondem os escombros de Gaza.
P.S.: Recomenda-se aqui um pequeno livro de grande utilidade para abrir mentes desarmadas, interessadas no viver alheio: “Tornar-se Palestina”, de Lina Meruane. Nascida no Chile e residente em Nova York, a escritora de ascendência palestina convida o leitor a acompanhá-la na compreensão do que é ser palestino. Para quem não quer perder tempo com introitos, pode começar a viagem no capítulo II. Será uma viagem civilizatória que não necessita de concordância. Basta ser humano.
Os malabaristas
O convívio intenso e longo com o poder gera poderoso efeito narcotizante. Transforma seres mortais, pessoas simples e humildes, gente com histórias iguais a de seus semelhantes, em “divindades”. A que se deve essa distorção? À armadilha do falso retrato, da autocontemplação, que prende os homens públicos à paisagem de Narciso, aquele que foi condenado pelos deuses a se apaixonar pela própria imagem. Como conta a lenda, ele tomou-se de amores pela imagem quando se contemplava nas águas transparentes de uma fonte. Obcecado pelo reflexo, Narciso não mais se afastava da água, definhando até a morte.
O Brasil está recheado de narcisistas, pessoas fascinadas pelo próprio brilho, um brilho ilusório, porque muitas perderam poder, não o orgulho. Que tipo de mal os narcisistas cometem contra si mesmos e contra a sociedade? O maior dos males é a inação, a inércia, a perda do sentido de realidade. Presos no simulacro do poder, exibem um prestígio falso, que frequentemente conduz ao ócio. Aliás, praestigium, do latim, significa nada mais nada menos que artifício, ilusão, malabarismo. Os malabaristas da política, conscientes ou não, acabam promovendo a mistificação das massas, fazendo-as crer que seu discurso é a ação, o verbo é tão importante como a verba, a palavra é a extensão da verdade. O falatório no oceano da política é intenso. Cada qual com sua onda.
O brasileiro tem predileção pela cultura oral, uma das tradições mais ricas do país. Um passeio pela monumental obra do insuperável Luís da Câmara Cascudo, potiguar boêmio, bonachão e denso, que produziu a mais fecunda obra sobre a cultura popular brasileira, nos propicia abrangente visão. A tradição de oralidade penetrou profundamente nas veias, mentes e corações da representação política, a ponto de se atribuir, por muito tempo, a grandeza dos homens públicos não aos projetos e feitos empreendidos, mas ao domínio do verbo no palanque ou na tribuna parlamentar.
Duas historinhas mostram as faces da peroração tradicional da política. A primeira é a do baiano, embevecido com a retórica complicada, cheia de palavras difíceis de seu candidato, em um comício numa pequena cidade interiorana. Não se cansou de bater palmas, concluindo categórico: “não entendi nada do que o homem falou, mas falou bonito; vai levar meu voto”. A segunda historinha é a do candidato a deputado, que, arrebatado, enérgico, espumando de civismo, discorria sobre o valor da liberdade. Argumentava que um povo livre sabe escolher seus caminhos, seus governantes, eleger os seus representantes, fazer as melhores escolhas. Para entusiasmar a multidão, levou um passarinho numa gaiola, que deveria ser solto no clímax do discurso.
No momento que julgou oportuno, puxou o passarinho da gaiola, e com ele na mão direita, gritou para a massa: “a liberdade é o sonho do homem, o desejo de construir seu espaço, sua vida, com orgulho, sem subserviência, sem opressão; Deus (citar Deus é um recurso muito usado) nos deu a liberdade para fazermos dela o instrumento de nossa dignidade; quero que todos vocês, hoje, aqui e agora, comprometam-se com o ideal do homem livre. Para simbolizar esse compromisso, vamos aplaudir a soltura deste belo canário, que vai ganhar o céu da liberdade”. Ao abrir a mão, viu que esmagara o passarinho, sem perceber a mão contraída. Quanta decepção. A frustração por ter matado o bichinho acabou com a euforia e as vaias substituíram os aplausos. Um desastre. É sempre assim quando não se controla a emoção. O discurso político atira, frequentemente, na razão.
Juntando-se, então, o narcisista e o demagogo, o verborrágico e o reizinho cheio de empáfia, obtém-se a receita do perfil que pretende ser o modelo de representação das massas. É a junção do ruim com o péssimo, de Narciso com Justo Veríssimo, canhestro personagem do saudoso Chico Anísio. Quando essa moldura aparece na parede, a política volta a ser aquilo que Paul Valéry mais temia: “a arte de impedir que as pessoas cuidem do que lhes dizem respeito”. Nesses tempos de redes sociais, de surgimento de novas fontes de poder, de intercomunicação entre os influenciadores da sociedade, urge ter cuidado. O discurso com firulas pode arruinar os atores. Não se engana mais como antigamente; os atores são flagrados quando escondem o lixo debaixo do tapete; ou, ainda, quando a maquiagem expressiva procura disfarçar a deficiência do pensamento.
Criar adornos populistas nas falas de palanques, carregar passarinhos em gaiolas para soltá-los em comícios, enfim, enfeitar o verbo com dribles linguísticos já não puxam a aclamação das multidões. Promessas mirabolantes não entram na cachola do eleitor. Esse é um alerta para o ano eleitoral em curso.
O Brasil está recheado de narcisistas, pessoas fascinadas pelo próprio brilho, um brilho ilusório, porque muitas perderam poder, não o orgulho. Que tipo de mal os narcisistas cometem contra si mesmos e contra a sociedade? O maior dos males é a inação, a inércia, a perda do sentido de realidade. Presos no simulacro do poder, exibem um prestígio falso, que frequentemente conduz ao ócio. Aliás, praestigium, do latim, significa nada mais nada menos que artifício, ilusão, malabarismo. Os malabaristas da política, conscientes ou não, acabam promovendo a mistificação das massas, fazendo-as crer que seu discurso é a ação, o verbo é tão importante como a verba, a palavra é a extensão da verdade. O falatório no oceano da política é intenso. Cada qual com sua onda.
O brasileiro tem predileção pela cultura oral, uma das tradições mais ricas do país. Um passeio pela monumental obra do insuperável Luís da Câmara Cascudo, potiguar boêmio, bonachão e denso, que produziu a mais fecunda obra sobre a cultura popular brasileira, nos propicia abrangente visão. A tradição de oralidade penetrou profundamente nas veias, mentes e corações da representação política, a ponto de se atribuir, por muito tempo, a grandeza dos homens públicos não aos projetos e feitos empreendidos, mas ao domínio do verbo no palanque ou na tribuna parlamentar.
Duas historinhas mostram as faces da peroração tradicional da política. A primeira é a do baiano, embevecido com a retórica complicada, cheia de palavras difíceis de seu candidato, em um comício numa pequena cidade interiorana. Não se cansou de bater palmas, concluindo categórico: “não entendi nada do que o homem falou, mas falou bonito; vai levar meu voto”. A segunda historinha é a do candidato a deputado, que, arrebatado, enérgico, espumando de civismo, discorria sobre o valor da liberdade. Argumentava que um povo livre sabe escolher seus caminhos, seus governantes, eleger os seus representantes, fazer as melhores escolhas. Para entusiasmar a multidão, levou um passarinho numa gaiola, que deveria ser solto no clímax do discurso.
No momento que julgou oportuno, puxou o passarinho da gaiola, e com ele na mão direita, gritou para a massa: “a liberdade é o sonho do homem, o desejo de construir seu espaço, sua vida, com orgulho, sem subserviência, sem opressão; Deus (citar Deus é um recurso muito usado) nos deu a liberdade para fazermos dela o instrumento de nossa dignidade; quero que todos vocês, hoje, aqui e agora, comprometam-se com o ideal do homem livre. Para simbolizar esse compromisso, vamos aplaudir a soltura deste belo canário, que vai ganhar o céu da liberdade”. Ao abrir a mão, viu que esmagara o passarinho, sem perceber a mão contraída. Quanta decepção. A frustração por ter matado o bichinho acabou com a euforia e as vaias substituíram os aplausos. Um desastre. É sempre assim quando não se controla a emoção. O discurso político atira, frequentemente, na razão.
Juntando-se, então, o narcisista e o demagogo, o verborrágico e o reizinho cheio de empáfia, obtém-se a receita do perfil que pretende ser o modelo de representação das massas. É a junção do ruim com o péssimo, de Narciso com Justo Veríssimo, canhestro personagem do saudoso Chico Anísio. Quando essa moldura aparece na parede, a política volta a ser aquilo que Paul Valéry mais temia: “a arte de impedir que as pessoas cuidem do que lhes dizem respeito”. Nesses tempos de redes sociais, de surgimento de novas fontes de poder, de intercomunicação entre os influenciadores da sociedade, urge ter cuidado. O discurso com firulas pode arruinar os atores. Não se engana mais como antigamente; os atores são flagrados quando escondem o lixo debaixo do tapete; ou, ainda, quando a maquiagem expressiva procura disfarçar a deficiência do pensamento.
Criar adornos populistas nas falas de palanques, carregar passarinhos em gaiolas para soltá-los em comícios, enfim, enfeitar o verbo com dribles linguísticos já não puxam a aclamação das multidões. Promessas mirabolantes não entram na cachola do eleitor. Esse é um alerta para o ano eleitoral em curso.
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