terça-feira, 8 de setembro de 2020

'O país ideal do bolsonarismo é o mesmo dos integralistas dos anos 30'

Pouco mais de dois anos atrás, quando o diretor da Editora Planeta no Brasil, Cassiano Elek Machado, propôs ao jornalista Pedro Doria que este escrevesse um livro sobre o movimento integralista brasileiro, Jair Bolsonaro – então deputado federal, conhecido por suas posições reacionárias – era apenas um pré-candidato à Presidência da República.

Durante o processo de pesquisa e redação, Doria observou as semelhanças entre o ascendente bolsonarismo e aquelas ideias fascistas do Brasil dos anos 1930. Foi quando o experiente jornalista – autor de outros três livros de história do Brasil, fundador da startup Canal Meio e colunista dos jornais O Estado de S. Paulo, O Globo e da rádio CBN – se viu, em suas palavras, tendo de enfrentar seus "próprios fantasmas".

"Foi ficando claro que Bolsonaro iria ser presidente da República, e eu tive meio que um bloqueio", diz à DW Brasil. "Eu estava imaginando como explicar a atração de algo como o fascismo. Porque hoje é evidente que aquilo foi uma coisa horrorosa, mas na década de 1930 aquilo era extremamente sedutor para a juventude. De repente, tudo o que começou a ocorrer ao nosso redor foi esse espírito agressivo, aquele jeito tão encantado com a morte de fazer política estava ressurgindo."

Assim, segundo o autor, o recém-lançado livro Fascismo à Brasileira foi escrito "sobre um espírito de tempo tão complicado" e, ao mesmo tempo, "vivendo um espírito de tempo muito similar". "Para mim, foi muito angustiante e mexeu comigo", comenta.



O livro trata da Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento ultranacionalista, conservador e de extrema direita fundado pelo jornalista Plínio Salgado (1895-1975) em 1932 e dissolvido em 1937. Mas acabou ganhando um subtítulo que resume suas muitas reflexões sobre os tempos atuais: "como o integralismo, maior movimento de extrema direita da história do país, se formou e o que ele ilumina sobre o bolsonarismo".

"O reacionarismo brasileiro remete às suas características: um país de base agro, a organização familiar nuclear – o homem manda, a mulher rege a casa, os filhos obedientes –, a relação forte com a Igreja. Quando Plínio Salgado fala de um Brasil ideal, essas coisas estão profundamente presentes. [...] Nesse sentido, o ideal do bolsonarismo é o mesmo de Plínio. Eles estão falando com o mesmo estereótipo de brasileiro, que na essência podemos chamar de mais puro reacionarismo brasileiro", afirma em entrevista à DW Brasil.

Logo no prefácio do livro Fascismo à Brasileira, você afirma que a AIB foi o maior movimento popular de direita da nossa história, "ao menos até o surgimento de Jair Bolsonaro". Já é possível afirmar que o bolsonarismo superou o integralismo?

Existe uma razão fundamental para podermos dizer que Bolsonaro é maior que a AIB: Jair Bolsonaro chegou ao poder, Plínio Salgado não conseguiu. Plínio era um cara muito mais sofisticado do que Bolsonaro. Mas ele calhou de viver em um tempo em que existia Getúlio Vargas, e Getúlio é provavelmente o político mais completo, mais talentoso que o Brasil já teve. A AIB era muito mais organizada, muito mais estruturada do que esse movimento do Bolsonaro.

Você afirma que uma diferença basilar entre o integralismo e o bolsonarismo é justamente a falta de base intelectual-filosófica do segundo em relação ao primeiro. De certa forma, ao conferirem uma "formação" aos bolsonaristas, figuras como Olavo de Carvalho e seus seguidores não se configurariam a base de pensamento da nova direita brasileira?

O Olavo de Carvalho é justamente o braço fascista do bolsonarismo. Plínio Salgado, quando estava negociando com Getúlio a sua entrada no governo do Estado Novo, queria o MEC – o Ministério da Educação e da Cultura. Quais são as áreas que o olavismo quis quando foi entrar no governo Bolsonaro? O Ministério da Educação e a Secretaria da Cultura. Por que essas duas? Porque a lógica fascista é uma lógica de doutrinação. Você tem de literalmente doutrinar crianças, adolescentes e mesmo adultos a respeito de uma determinada visão de país, de história. Você tem de impor aquela filosofia.

Mas é preciso destacar o fato de que eles [os de hoje] são muito atrapalhados, incompetentes e, nesse sentido, são muito diferentes dos fascistas anteriores. Quando você pega, por exemplo, todo mundo que passou pela Secretaria da Cultura ou mesmo o [ex-ministro da Educação, Abraham] Weintraub, não fizeram nada, absolutamente nada. Nem essa máquina de doutrinação eles conseguiram sequer chegar próximos de empregar, provavelmente porque não sabem fazer mesmo.

Quais são as principais semelhanças entre o bolsonarismo e o integralismo, o fascismo brasileiro dos anos 1930?

O movimento fascista tem essa característica muito peculiar que é de ser simultaneamente revolucionário e reacionário. Plínio Salgado cria esse passado épico brasileiro a partir das suas raízes, um homem do interior de São Paulo. Baseia-se nos bandeirantes, os homens que desbravaram o Brasil. O reacionarismo brasileiro remete às suas características: um país de base agro, a organização familiar nuclear – o homem manda, a mulher rege a casa, os filhos obedientes –, a relação forte com a Igreja. Quando Plínio Salgado fala de um Brasil ideal, essas coisas estão profundamente presentes. Como é o Brasil ideal de Jair Bolsonaro? Percebe-se que seu olhar está muito mais para o agronegócio do que para o Brasil das grandes cidades. Quando vemos figuras como o ministro [do Meio Ambiente, Ricardo] Salles dizendo que é preciso explorar a Amazônia, ele está falando essencialmente de um Brasil bandeirante. Nesse sentido, o ideal do bolsonarismo é o mesmo de Plínio. Eles estão falando com o mesmo estereótipo de brasileiro, que na essência podemos chamar de mais puro reacionarismo brasileiro.

No Brasil dos anos 1930, o "inimigo comunista" era usado para justificar um discurso de extrema direta. No mundo contemporâneo, contudo, o que baliza tais discursos?

O discurso é criado em cima de uma explicação paranoide de realidade. Para eles, existe o perigo comunista. E o que eles chamam de comunismo e de marxismo cultural é a ampliação dos direitos civis, dos direitos individuais. Estamos falando de uma sociedade que se preocupa em tratar de forma equivalente todos os seus cidadãos e, por isso, usa o Estado para interferir de certa forma nas regras do jogo para corrigir distorções, para fazer com que todo mundo tenha direitos iguais. Só que aí há essa confusão ideológica, e o que termina por acontecer é que esse troço começa a ser chamado de esquerda. Só que essa história de certa forma colou, e o ponto é que cada vez menos pessoas enxergam a realidade como ela é.

Em seu livro, você detalha o encontro ocorrido entre Plínio e Benito Mussolini e como isso mudou a vida do brasileiro. Pelo que se tornou Bolsonaro hoje, acredita que podemos apontar um episódio da vida dele que também tenha significado uma consolidação de seu rumo?

Não apontaria um episódio específico, mas a biografia de Jair Bolsonaro. Ele nasceu no interior de São Paulo, de família humilde, trabalhou desde cedo, tem muito esse ethos do interior paulista, de que homem é homem, mulher é mulher. Isso é muito claro na maneira como ele fala, inclusive.

Então, ele se formou no Exército em meados dos anos 1970, no auge dos anos de chumbo. Mas dentre as pessoas que se formaram no auge dos anos de chumbo, ele não foi um cara que cresceu para se tornar um major, um coronel, um general. Não, ele teve a carreira interrompida e passou para a reserva no posto de capitão. Assim, não estamos falando de alguém que tenha se desenvolvido intelectualmente dentro do Exército. A formação dele é no pico da paranoia do Exército com a ameaça comunista. Ele vê comunista por tudo quanto é parte. Na reabertura, ele acha que o Exército está afrouxando quando começa a arrumar para a democracia.

Desde o início, a gente percebe que ele não é alguém que acredita na democracia, sempre deixou isso muito claro. Quando chega a leitura meio paranoide do Olavo de Carvalho a ele, aquela leitura de que os comunistas perderam nas armas mas conquistaram na cultura, a gente vê nitidamente que o Bolsonaro era o cara pronto para comprar aquela história. É o caso de toda a formação dele. Ele se tornou a peça que se encaixa com muita facilidade nesse esquema paranoide de ver o mundo que vem dessa nova direita mundial.

Imagem do Brasil

 


O movimento Real Resiste, de ocupação com cartazes das ruas do Rio, está espalhando este outdoor, de 2x3 metros, de um caixão de defunto com o agouro de que 130 mil mortes pela Covid-19 vão puxar o pé do presidente, A obra é do artista Marcos Chaves

Crime sem castigo

Teve um tempo em que acreditei na Justiça. Ou melhor, nas justiças, na dos homens e na divina. Parecia-me razoável que cada pecado cometido fosse devidamente punido. Que cada desobediência implicasse algum castigo. Claro que isso me custou muito sofrimento. Aquele dia em que me isolei no quarto alegando necessidade de estudar e fiquei jogando botão (quem nem botão era, mas plásticos rijos que cobriam relógios de pulso) a tarde toda, e no dia seguinte me saí muito mal na prova de latim. O outro em que briguei com um colega de escola, rolei com ele na terra aos socos e pontapés, entrei quietinho em casa, me lavei, joguei a camisa rasgada e encardida no cesto de roupa suja e fui almoçar sem contar nada aos meus pais (desta vez não tive muita sorte, o olho roxo e as escoriações no joelho me traíram miseravelmente). Os castigos me pareceram razoáveis: uma semana passa depressa, embora eu adorasse jogar bolinha de gude com a turma da Vila Gagliardi, rua sem saída, nosso empoeirado parque e praça esportiva improvisada.

A vida, à época, fazia sentido: a cada pecado, uma punição. Uma das coisas que eu fazia, esporadicamente, era dar uns sopapos no meu irmão “do meio” (éramos três meninos) sempre que ele, sob qualquer pretexto, agredia o caçula. Quando eu me entusiasmava nos sopapos e o chorão abria o berreiro, o cinto do meu pai fazia o papel de juiz, entrava na contenda e meu traseiro ganhava algumas faixas avermelhadas. Meu pai averiguava, julgava e aplicava o castigo, sem delongas. Já o castigo divino... Desse eu tinha mais medo, mas devo reconhecer, por outro lado, e à distância, que era bem menos eficiente. Eu me lembro até hoje da vez que fiquei um tempão tentando espiar uma freguesa, quando ela provava blusas na loja do meu pai. A moça ficou muito tempo experimentando cores, modelos e tamanhos diferentes, enquanto eu, nos meus heroicos nove anos, rondava a porta do provador improvisado. Um pirralho como eu certamente não representava ameaça alguma ao pudor dela.


Mesmo assim, e mesmo não tendo tido nenhum sucesso na minha precoce atividade de voyeur, eu sabia que havia pecado. Talvez o sexto mandamento, ou outro qualquer, mas alguma lei de Deus. Esperei conformado o castigo, ficando em troca apenas com o azul-claro do enorme sutiã que vislumbrara. Mas o castigo nunca veio. Bem diferente de um colega de colégio, que ao confessar ao padre a prática da masturbação, foi aconselhado a se autopunir para ficar limpo. O resultado da queimadura que J.B. provocou em si próprio o acompanhou até sua morte precoce.

Já adulto me dei conta de que a Justiça tem cor, sexo e leva em conta fatores que, anteriormente, nunca imaginei que pudessem influenciar na decisão de quem julga. Algumas pessoas são julgadas logo, outras nunca. Alguns têm ótimos defensores em todas as numerosas instâncias, outros mal conseguem defensores razoáveis e se dão mal por erros técnicos, esquecimento de prazos legais para apresentar a defesa, má vontade dos cartórios e até dos próprios juízes. A lei, embora nominalmente coloque todos os cidadãos no mesmo patamar de direitos e obrigações, é muito mais generosa com uma parte da população, os que têm poder. Um complexo e lento sistema de defesa composto de numerosas etapas tem a função de protelar qualquer julgamento definitivo e respectiva punição. Recursos infindáveis, muito bem apresentados por equipes afiadas, lideradas por advogados muito hábeis, fazem com que o medo de punição não atemorize criminosos conhecidos. E, se algum juiz do andar de baixo comete a “irresponsabilidade” de sugerir prisão a um figurão, corre o risco de cair em desgraça. Não importa o que diz a constituição sobre igualdade de direitos. Temos uma cultura estabelecida e ai de quem ousar questioná-la.

Uma amiga, promotora em São Paulo, me disse uma vez que a justiça de classe no Brasil nunca permitiria que tivéssemos um verdadeiro país de cidadãos. Ela tinha razão. Olhamos os iguais, ou supostos iguais, de modo distinto do que fazemos com pessoas “diferentes”, seja por sua origem social, cor da pele, religião, grau de instrução, tipo de roupa que usam. Isso é uma flagrante violação à letra e ao espírito da Constituição Brasileira, à democracia e à cidadania. Deixar o tempo passar para que os crimes prescrevam, colocar ricos em prisão domiciliar, mesmo quando cometeram crimes horríveis, enquanto abandonamos dezenas de milhares de pobres presos sem julgamento, é comum por aqui.

Aos iguais tudo, aos demais a força da lei.
Jaime Pinsky

A hipocrisia do amor ao povo

Estes amam o povo, mas não desejariam, por interesse do próprio amor, que saísse do passo em que se encontra; deleitam-se com a ingenuidade da arte popular, com o imperfeito pensamento, as superstições e as lendas; vêem-se generosos e sensíveis quando se debruçam sobre a classe inferior e traduzem, na linguagem adamada, o que dela julgam perceber; é muito interessante o animal que examinam, mas que não tente o animal libertar-se da sua condição; estragaria todo o quadro, toda a equilibrada posição; em nome da estética e de tudo o resto convém que se mantenha.

Há também os que adoram o povo e combatem por ele mas pouco mais o julgam do que um meio; a meta a atingir é o domínio do mesmo povo por que parecem sacrificar-se; bate-lhes no peito um coração de altos senhores; se vieram parar a este lado da batalha foi porque os acidentes os repeliram das trincheiras opostas ou aqui viram maneira mais segura de satisfazer o vão desejo de mandar; nestes não encontraremos a frase preciosa, a afetada sensibilidade, o retoque literário; preferem o estilo de barricada; mas, como nos outros, é o som do oco tambor retórico o último que se ouve.


Só um grupo reduzido defende o povo e o deseja elevar sem ter por ele nenhuma espécie de paixão; em primeiro lugar, porque logo reprimiriam dentro em si todo o movimento que percebessem nascido de impulsos sentimentais; em segundo lugar, porque tal atitude os impediria de ver as soluções claras e justas que acima de tudo procuram alcançar; e, finalmente, porque lhes é impossível permanecer em êxtase diante do que é culturalmente pobre, artisticamente grosseiro, eivado dos muitos defeitos que trazem consigo a dependência e a miséria em que sempre o têm colocado os que mais o cantam, o admiram e o protegem.

Interessa-nos o povo porque nele se apresenta um feixe de problemas que solicitam a inteligência e a vontade; um problema de justiça econômica, um problema de justiça política, um problema de equilíbrio social, um problema de ascensão à cultura, e de ascensão o mais rápida possível da massa enorme até hoje tão abandonada e desprezada; logo que eles se resolvam terminarão cuidados e interesses; como se apaga o cálculo que serviu para revelar um valor; temos por ideal construir e firmar o reino do bem; se houve benefício para o povo, só veio por acréscimo; não é essa, de modo algum, a nossa última tenção.
Agostinho da Silva

'Criança, não verás reforma alguma num país como este!', diria Olavo Bilac, decepcionadíssimo

Recordar é viver! No caso do jornalista, escritor e poeta carioca Olavo Bilac, ele merece ser eternamente lembrado pelos brasileiros, não só pelos versos inesquecíveis que deixou, mas também pelo nacionalismo, que o levou a defender a criação do serviço militar obrigatório e o aprimoramento do ensino público. Entre um verso e outro, o jornalista preocupava-se com a qualidade da educação, como está marcado em seu poema infantil mais famoso, “A Pátria”.

Bilac viveu em outra época, em que se podia sonhar. Certamente estaria muito decepcionado com a realidade de hoje, que transformou o Brasil num país antes lembrado por suas belezas, mas hoje caracterizado por uma insana disputa de poder que desconhece os verdadeiros interesses nacionais.

A nação que Olavo Bilac antevia e ansiava é hoje conhecida como o pais da impunidade das elites. É o único no mundo, entre os 193 membros da Organização das Nações, onde réus de corrupção, lavagem de dinheiro, improbidade administrativa, peculato e enriquecimento ilícito têm liberdade garantida até a quarta instância (Supremo), enquanto na maioria dos países nem existe quarta instância.

O que realmente revoltaria Bilac era saber que no Congresso, no Planalto e no Supremo não há a menor movimentação para mudar esse estado de coisas, graças a um pacto tácito existente entre os três Poderes da República.


Bilac lutou pela República como poucos, jamais poderia imaginar que a proclamação fosse transformar o Brasil no reino da criminalidade.

O brilhante jornalista e poeta também não conseguiria entender que um país rico como o Brasil tivesse se tornado um dos mais endividados, a ponto de um banqueiro ter se tornado ministro da Fazenda para dar um basta nos empréstimos ao governo, criando a “regra de ouro”, que está prestes a se tornar uma lei vacina, daquelas que não “pegou”.

Com raras e honrosas exceções, como se dizia nos tempos de Bilac, os governos federal, estaduais e municipais estão quebrados, tornaram-se impotentes, impassíveis e indiferentes, com o povo abandonado em suas necessidades de habitação, saneamento, educação e saúde.

Não há pudor, reina a desfaçatez, Bilac se revoltaria ao ver que o Brasil é um dos países de maior desigualdade social, onde a riqueza total tenta conviver com a miséria absoluta, enquanto a classe média se esconde atrás das grades e dos muros da hipocrisia.

É uma país que necessita desesperadamente de reformas, precisa economizar os gastos públicos para enfim conseguir atender ao cidadão.

Mas é tudo uma farsa, um conchavo entre as classes dominantes e a nomenklatura do serviço público, para manter os privilégios de cada categoria, pois não se fala em reduzir nenhum benefício de magistrado, parlamentar, governante, dirigente de estatal e servidor civil ou militar de primeira linha.

E o notável Olavo Bilac, no desespero, pensará que está bêbado, como naquela tarde em que perdeu o controle de seu carro na Estrada da Tijuca, saiu da pista e bateu numa árvore, no primeiro acidente de automóvel no Brasil. Revoltado, modificará seu mais famoso poema, para alertar às crianças que não vai haver reforma alguma.

A montanha pariu um rato

Ao longo desta caminhada maluca que parece não ter fim, chegamos a setembro. A música do compositor Beto Guedes nunca fez tanto sentido: “Quando entrar setembro e a boa nova andar nos campos…”. Nas notas e letra, a esperança vem a reboque: “… Não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer Sol de Primavera…”.

Neste ano de pandemia, setembro nunca foi tão desejado. Os infectologistas haviam anunciado previsões de que este mês seria uma espécie de marco na queda de número de casos da covid-19. E isso fez com que o período fosse muito desejado. O bom é que a tendência se confirmou.

A diminuição na média de casos de pessoas infectadas, diziam os especialistas, viria acompanhada de um certo “novo normal”. Ainda que não soubéssemos com exatidão o que isso queria dizer, ouvíamos (no auge da pandemia), essas duas palavras, como se elas significassem um renascimento.

E a frase, com diversas conotações, foi dita à exaustão por políticos, empresários e até mesmo pelo pessoal descolado, que gosta de conceitos de autoajuda.

Alcançamos o “mês da esperança”. Olho a realidade com atenção, fico meio encabulado, não quero ser o chato da vez, mas simplesmente não identifico um comportamento comum que dê para classificar qualquer coisa como padrão de futuro. Para mim, a expressão morre com esta crônica: a montanha pariu um rato.


Juro que, quando começou essa viagem de novo normal, eu pensei que se tratava da construção de uma realidade diferente. Hoje, nos diversos setores que foram liberados para a convivência social, fica valendo aquela frase da época de Napoleão: “Tudo como dantes no quartel de Abrantes”.

Reconheço que o virtual se aproximou do cotidiano. E isso é tudo. Aumentaram o home office, as ligações telefônicas por meio de vídeo, live disso, live daquilo, aula por videoconferência, todas essas inovações que já líamos nos quadrinhos de ficção científica dos Jetsons. Há alguns anos, convém deixar esclarecido, essas novidades tecnológicas já estavam aí para quem quisesse usar.

A não ser que se pretenda dizer que o aumento (repetindo: o aumento) do uso das plataformas digitais é o novo normal, ainda assim, vamos combinar, é uma narrativa forçada. Coisa de marketing. Tipo criar uma nova situação de mercado. É história para boi dormir. Lenga-lenga.

Em termos de comportamento sanitário, também não vejo grandes alterações na sociedade. Por exemplo, as aglomerações proliferam, em desrespeito às normas de distanciamento recomendadas pelas autoridades de saúde. Aglomeração, sim, como antes da pandemia. Velho normal.

É certo que muita gente adquiriu o hábito de usar máscaras, outras comungam com a necessidade do álcool gel, ou ambas as coisas. Mas, também, o que se vê, é que grande parte das pessoas tem preocupação zero em relação aos cuidados com a contaminação. Desrespeito total às autoridades sanitárias. Desrespeito, sim, como antes da pandemia. Velho normal.

Enquanto isso, a sobrevivência, a continuidade da vida, e a segurança da humanidade continuam ameaçadas. O vírus ainda está aí rondando o nosso cotidiano. Não dá para chamar de normal se não existe um comportamento comum para ser apresentado como unidade. E se não há novidade, elementar, meu caro Watson, não existe nada de novo.

Novo normal, para mim, é uma questão de reciprocidade. Enquanto nós não nos perguntarmos a nós mesmo o que há no outro que eu identifico em mim, enquanto não for possível essa resposta, essa relação de irmandade, esqueça o papo.

Fica difícil de estabelecermos um novo momento e uma nova época sem a cumplicidade fraterna. E nós estamos precisando mesmo de um novo normal, pautado pela solidariedade, pelo amor ao próximo. Somente nesse caso, faria sentido falarmos de setembro como mês de renascimento, de empatia, de reinícios.

Inclusive a música de Beto Guedes propõe isso: “Já choramos muito. Muitos se perderam no caminho. Mesmo assim não custa inventar uma nova canção”.