sábado, 1 de junho de 2024

Pensamento do Dia

 


As cidades e as águas


1.

A tragédia das inundações das cidades do Rio Grande do Sul nos lança com força a pergunta: quais são as manifestações da questão ambiental nas cidades e como entendê-las? O sofrimento das populações, em sua maioria urbanas, atingidas por um desastre desta monta clama por ação e também por reflexão. Afinal qual é a dimensão especificamente ambiental das cidades?

O entendimento corrente a este respeito parece ainda insuficiente. A dimensão ambiental do urbano, dizem alguns, estaria na presença da natureza na cidade. Esta natureza, normalmente associada ao rural, poderia ser observada também nas cidades. Ou então, dizem outros, trata-se apenas de um “ambiente construído”, pois, não sendo natural, o ambiente das cidades é puro artifício e a natureza seria relegada ao espaço do campo. Em ambos os casos, este tipo de resposta faz uma separação de domínios entre ambiente e sociedade ou, então, vê um ambiente cortado ao meio – parte natureza, parte artifício social.

Tentemos situar no tempo histórico a noção de ambiente urbano e sua gênese, procurando não separar ambiente e sociedade. Isto porque no campo, como nas cidades, o ambiente é sempre apropriado material e simbolicamente pelos diferentes atores sociais. Certos autores cuidam, ademais, de nos lembrar: trata-se de uma problemática construída em um momento histórico determinado. Foi apenas em um dado momento do conhecimento científico e do debate público que as paisagens, no campo como nas cidades, passaram a ser vistas sob uma nova ótica – ambiental; a “ecologia” dirigiu o olhar para o modo como são feitas as ligações entre as partes – entre plantas e solos, rios e margens, edificações e morros.

E, sobretudo, para as ligações entre os diferentes modos de usar rios, lagoas, solos, atmosfera etc. Seria preciso, por exemplo, nos dizem os especialistas, alargar o olhar sobre as cidades para abranger toda a bacia hidrográfica onde elas se inserem. A questão urbana foi, assim, sendo“ambientalizada” pela formulação de novas percepções e interpretações dos problemas urbanos, em particular pela atenção dada às ligações e impactos recíprocos entre as diferentes formas de ocupação dos espaços.

Não se trata, por outro lado, apenas da questão dos ecossistemas onde se inscrevem as cidades, mas do conjunto de ideias e concepções mediante as quais se foram construindo os problemas socioecológicos urbanos e seus modos de tratamento.

A noção de “ambientalização” surgiu, assim, para designar o modo pelos qual os atores sociais passaram a avaliar a pertinência e legitimidade das práticas de ocupação do espaço, classificando-as em ambientalmente danosas ou ambientalmente benignas.[ii] Assim foi que certos modos de apropriação e uso do espaço, nas cidades e fora delas, passaram a ser percebidos e apontados como geradores de impactos indesejáveis sobre as condições ecológicas de existência e trabalho de terceiros.

2.

E qual teria sido o histórico desta ambientalização da questão urbana? Sabemos que, em sua origem, a cidade moderna foi entendida como portadora de uma questão populacional. Os estatísticos que mediam os fatos urbanos, no século XIX, eram vistos como “técnicos de populações”. Eles apontavam o aglomerado populacional como responsável pelos males materiais e morais na cidade. Temas malthusianos invadiram então o debate público: a transpiração da cidade e a exalação de vapores em proveniência de uma grande quantidade de homens e animais eram vistos como problemas próprios aos bairros mais povoados.

Era nessas localidades, diziam eles, que se situavam as oficinas ruidosas e poluentes, as ditas patologias morais da criminalidade e da prostituição. A concentração populacional unificava as dimensões materiais e morais da recém conhecida expansão urbana. E mesmo quando os estatísticos verificavam uma distribuição desigual da taxa de mortalidade entre bairros, a relação quantitativa entre o número de indivíduos e o espaço ocupado pelo bairro era apontada como responsável pela desigualdade diante da morte – a atmosfera de massas, os miasmas, a falta de ar…

Não se incluía nas análises de então outros tipos de processos de concentração, além dos efeitos de aglomeração de gente: pouco se discutiu, por exemplo, a concentração de poder sobre o espaço urbano e seus recursos, como tampouco a concentração da capacidade de certos atores sociais afetarem – dentro e fora das cidades – os demais por via do impacto de suas práticas na fisíco-química atmosférica, nas águas, nos solos e sistemas vivos.

Enquanto o capitalismo foi criado juntamente com a privatização da terra, tornada, a partir de então, uma pseudomercadoria, apresenta-se a nós a pergunta seguinte: o que teria acontecido com os demais elementos de uso compartilhado como as águas e o ar? O historiador Alain Corbin dá elementos para caracterizar o que hoje podemos considerar uma dimensão ambiental avant la lettre do urbano: com relação aos males associados à grande indústria, prevaleceram, a partir de então, diz ele, o otimismo tecnológico e a naturalização da poluição.

O que passou a vigorar, nos usos sociais das águas e da atmosfera, foram relações de força; ou seja, o exercício da potência de certos proprietários disporem livremente dos espaços compartilhados por todos. Friedrich Engels, por sua vez, falava, de forma bem mais genérica, de uma capitalização de tudo: “os capitalistas se apropriam de tudo, enquanto, ao grande número, não resta senão a própria vida”.

A industrialização, dizem os historiadores, gerava ansiedades públicas. Ou seja, ela trazia consigo um problema político: o da prevalência de um determinado uso privado dos espaços não-mercantis do ar e das águas sobre os demais usos. Uma questão política que foi, porém, silenciada. Atos de força que foram naturalizados, despolitizados. Dada a nova escala de operação das práticas produtivas e a forma concentrada do exercício do poder de manejo dos espaços e recursos, criou-se uma divisão social desigual da capacidade das práticas espaciais se impactarem reciprocamente; no campo, nas cidades e, por certo, entre o campo e as cidades.

As práticas dominantes da grande indústria e da agricultura em grande escala impuseram, assim, de fato, seus usos privados aos espaços comuns do ar e dos cursos d´água, neles lançando os produtos não vendáveis da produção de mercadorias (resíduos, efluentes, emissões) ou, no caso da agricultura comercial, desmatando margens e compactando solos, impactando – e eventualmente comprometendo – o exercício de outras práticas espaciais não dominantes.

Podemos chamar essa configuração de uma “proto-ambientalidade” do capitalismo – ou seja um padrão “ambiental” próprio ao regime de acumulação de riqueza que começou a operar muito antes que uma questão ambiental propriamente dita tivesse sido formulada como um problema público. Certos autores fazem menção ao que teria sido uma “primeira política pública ambiental” europeia quando, em 1806, as manufaturas de Paris foram classificadas em categorias de “cômodas e incômodas”, umas sendo afastadas da aglomeração, outras toleradas.

Ora, tais medidas não davam propriamente tratamento às indústrias como fonte de poluição ambiental a ser restringida e regulada; as fábricas tornaram-se apenas objeto de políticas espaciais de localização dos incômodos.

3.

Saltemos um século: é nos anos 1960, que pudemos observar o surgimento de lutas sociais através das quais se fez a denúncia – como “males ambientais” – dos processos de dominação privada, de fato, dos espaços comuns, que vinha sendo praticada desde os primórdios do capitalismo; ou seja, a imposição, a cidadãos supostamente livres, do consumo forçado – via cursos d´água e atmosfera – de produtos invendáveis da produção mercantil: resíduos sólidos, efluentes líquidos e gasosos.

Questionamentos foram feitos igualmente ao manejo arbitrário das matas e cursos d´água pela grande agricultura químico-mecanizada, com suas consequências danosas para a alimentação, a biodiversidade e os solos. O que se buscou fazer então foi politizar um debate antes silenciado, iniciando um processo de ambientalização das lutas sociais que incluiu, por certo, questões urbanas.

Inicialmente, a partir dos movimentos sociais contraculturais de crítica ao consumismo e ao modelo agrícola monocultural que, vemos hoje, tem consequências dramáticas sobre bacias hidrográficas, com inundações de áreas urbanas, mediadas ou não por mudanças climáticas; em seguida, por instituições multilaterais, UNESCO, HABITAT e Banco Mundial, com a assim chamada “agenda marrom” relativa a uma ambientalização do saneamento; por fim, por governos, que criaram suas secretarias e ministérios de meio ambiente, em grande parte como resposta a movimentos sociais e pressões internacionais e com pouca incidência sobre as cidades, embora, mais recentemente, evocando a necessidade de adaptação das cidades às mudanças climáticas.

Mas, para além dos usos correntes do senso comum, que considera o ambiente urbano como a soma das questões do saneamento, da poluição do ar e da água, da impermeabilização e contaminação dos solos, em termos analíticos, poderíamos ainda perguntar: como se foi conceituando, de forma um pouco mais sistemática, a “dimensão ambiental do urbano”? Como foram sendo unificados processos aparentemente tão dispares?

Observando a literatura sobre meio ambiente urbano, verifica-se uma ampliação do debate convencional do urbano para aspectos físico-químicos e biológicos da configuração das cidades. Os autores que vieram animando este debate referem-se, via de regra: (a) ao modo como, nas cidades, se consome, transforma e deterioram os “bens coletivos, como água, ar, solo”; (b) ao fato que estes bens coletivos passaram a ser vistos como mediadores/transmissores de riscos de comprometimento das condições ecológicas da vida nas cidades, em função dos diferentes modos sociais de apropriação de que eles são objeto; (c) à necessidade de se considerar a diferenciação social no processo de mudança socioecológica: a saber, que os riscos urbanos são distribuídos desigualmente; o que favorece a um grupo social pode prejudicar a outro.

Assim, “a natureza urbanizada reuniria bens materiais e simbólicos atravessados por conflitos sociais urbanos em torno a seu controle, configurando padrões espaciais desigual de distribuição das amenidades e males ambientais”.

Articulando-se as considerações destes autores, a noção de “meio ambiente urbano” designaria o espaço de vigência de riscos urbanos associados aos modos de apropriação e consumo de bens coletivos como ar, água e solo, assim como elementos dos sistemas vivos portadores de microorganismos, vírus, bactérias etc., pelos quais certas práticas espaciais (em geral de empreendimentos capitalistas de grande impacto) afetam as práticas de terceiros (em geral grupos despossuídos e racializados), em contexto de padrões socialmente desiguais e conflituais de distribuição de danos e amenidades urbanas.

Estamos longe, portanto, dos simples efeitos populacionais aglomerativos do século XIX, mas, sim, confrontados aos efeitos indesejáveis de determinadas práticas espaciais desenvolvidas nas cidades ou fora delas, mas com impactos sobre elas.

4.

O governo do “ambiente urbano” remete, assim, à regulação política dos riscos desigualmente distribuídos decorrentes dos modos dominantes de apropriação dos espaços materiais compartilhados e não-mercantis da cidade ou fora das cidades, com consequências dentro delas. Não se trata, com efeito, somente da gestão de ecossistemas, mas da regulação de práticas espaciais e das disputas em torno à definição de quais delas são ou não portadoras de riscos e para quem.

A este propósito, é gritante a concomitância entre as cheias desastrosas nas cidades e a flexibilização de códigos florestais (o caso de Santa Catarina, em 2011, é disto emblemático), indicando a força do negacionismo aplicado a relações causais e à (des)responsabilização dos tomadores de decisões geradoras de riscos. Exemplo recente é o de um vereador do Rio Grande do Sul que culpou as árvores pelos deslizamentos de encostas, entre outros contrasensos.

Ou então a conhecida campanha de imprensa dizendo que as favelas deveriam ser removidas por sua definição como “problema ambiental” das cidades.[ix] Ora, a moradia precária é, na realidade, uma, entre muitas, das manifestações do padrão desigual de distribuição dos riscos ambientais urbanos. Evidências empíricas mostram, a propósito, a vigência de uma lógica discriminatória de localização de equipamentos portadores de risco, sendo as populações negras, indígenas e de baixa renda expostas, de forma mais que proporcional, a seus impactos ambientais, assim como às dinâmicas inigualitárias do mercado de terras, à distribuição desigual de infraestrutura de saneamento, ao insuficiente acesso a moradia segura etc.

As situações assim configuradas de desigualdade ambiental são aquelas, portanto, que exprimem processos de concentração do poder, por parte dos agentes das práticas espaciais dominantes, de impactar a terceiros – os promotores de práticas espaciais não dominantes – e de não serem por eles impactados. Por esta razão, as grandes corporações, inclusive as imobiliárias urbanas, justificam no plano discursivo, licenças ambientais pouco criteriosas, flexibilização de normas e regressão de direitos. Impactos danosos e riscos serão alocados sistematicamente, de forma mais que proporcional nos espaços ocupados por grupos sociais despossuídos.

Em paralelo, a condição de vulnerabilidade experimentada pelos grupos despossuídos e racializados resulta da subtração de suas condições de resistência à imposição de agravos, inclusive climáticos, quando vigoram relações desiguais de poder nas dinâmicas espaciais de localização e de mobilidade urbana. A condição de vulnerabilidade exprime, assim, o fato de o Estado deixar de assegurar proteção igual para todos os seus cidadãos – como defesa contra enchentes, ilhas de calor, deslizamentos etc.

Em debates acadêmicos em torno à definição do objeto de estudos da disciplina da História Ambiental, certos pesquisadores conclamaram seus colegas a não se ocuparem das cidades, por elas serem supostamente expressão da cultura, estranhas ao objeto natureza. Os defensores da pertinência do tema do ambiente urbano retrucaram, por sua vez, que seria impossível estudar a natureza sem levar em conta aquilo que há dois séculos representou seu maior desafio: a urbanização em massa e a industrialização.

Excluir a cidade como construção cultural, dizem eles, suporia, ademais, desconsiderar que as paisagens agrárias também o são.[x] Poderíamos acrescentar mais um argumento: a vigência de desigualdades ambientais na distribuição dos riscos urbanos indica que a gestão do ambiente das cidades é uma incontornável e específica questão política. Consequentemente, caso se queira garantir proteção ambiental para todos e evitar situações críticas como as que abalaram as cidades do Rio Grande do Sul, será preciso não apenas cuidar da manutenção das estruturas hidráulicas construídas ao longo dos cursos de água, mas também regular as práticas espaciais urbanas e extra-urbanas – no caso em pauta, da grande monocultura desmatadora – através de leis e normas que sejam resistentes aos esforços negacionistas de flexibilização, desmontagem e retrocesso.

Carta a uma jovem sobre o século XXI

Uma ideia não me saiu da cabeça desde que, na semana passada, ouvi uma mãe em situação de rua chamar sua filha. Andava pela avenida Paulista e via o cenário de crescimento da pobreza urbana que ganhou uma enorme magnitude a partir da pandemia - e da forma desastrosa que o Brasil lidou com ela. Não consegui compreender bem qual era o nome da menina, mas sonhei com a cena e no meu devaneio noturno ela se chamava Esperança. Daí em diante senti a necessidade de lhe falar sobre o presente nebuloso que gera um futuro incerto, quase um não futuro. Na minha impotência, o que me sobrou foi escrever uma carta:

“Querida Esperança,

Não tive tempo ou coragem para te conhecer direito. Mas a cena em que vi você com sua mãe nas ruas de São Paulo me fez pensar sobre o mundo que nos rodeia. Sei que sua vida é muito mais complicada do que a minha ou do que a de outras crianças, como a minha filha de 15 anos, que tem as oportunidades retiradas de um conjunto enorme de meninos e meninas brasileiras. Não conheço sua trajetória, nem posso avaliar em detalhes suas carências. O que tenho condições de falar é sobre o momento que passamos, tentando abrir alguma janela de esperança a quem tem esse nome e talvez tenha dificuldades de usufruir desse sentimento.

Há períodos na história em que o futuro se torna muito incerto e nebuloso. Até nos contos de fadas, a que nem sei se teve acesso, príncipes e princesas passam por maus bocados. E parece que o mundo está entrando num desses momentos, com a emergência de vários fatores que tornaram a vida mais perigosa e complexa no planeta. Gera-se um clima de triunfo dos pesadelos sobre os sonhos. Alguns chamam isso de distopia, que é o contrário do mundo ideal. Muita coisa ruim ou complicada está se espalhando, e a humanidade não está conseguindo sair desse buraco.

Os problemas atuais são imensos, mas não são incontornáveis, nem o desfecho está definido de antemão. Existe um espaço para alterar o rumo da história, e para fazermos isso é preciso conhecer quais são as principais barreiras e soluções para se construir um futuro melhor para todos. É preciso frisar esta expressão: um futuro melhor para todos. Porque o que está acontecendo hoje são duas coisas que dificultam esse ideal coletivo.

A primeira é o crescimento das desigualdades - de renda, racial, de escolaridade, de gênero e territorial. Sabe, Esperança, o mundo teve muitas melhoras para muita gente entre o fim do século XX e o começo do século XXI. Isso também ocorreu no Brasil a partir da redemocratização, com uma nova Constituição, que, pela primeira vez em nossa história, disse que todos somos iguais, e especialmente no período em que dois presidentes, Fernando Henrique e Lula, conseguiram ser muito bem-sucedidos num projeto de mudanças.

Claro que as diferenças sociais não deixaram de existir, mas elas se reduziram em muitos lugares, e em São Paulo havia menos população que vivia na rua do que há hoje. Se tivesse nascido um pouco antes, talvez você não tivesse que pedir junto com a sua mãe a sobra dos outros. Mais do que isso: havia a sensação de que poderíamos criar um país no século XXI que paulatinamente aumentaria as oportunidades para todo mundo. Esse sentimento se enfraqueceu nos últimos anos. De todo modo, não me sinto confortável nem feliz com o fato de que o futuro de muitos esteja cada vez mais distante das condições futuras de poucos.

Só que o século XXI trouxe um problema maior do que as desigualdades que marcam nossa história, porque agora todos podem entrar no mesmo barco da desesperança. O que está em jogo é o futuro do planeta, da humanidade como espécie. Tratamos muito mal a natureza nas últimas décadas. O relógio do descaso humano acelerou-se e o castigo vem na forma de desastres naturais cada vez mais frequentes. A tragédia inominável no Rio Grande do Sul é um exemplo do que pode vir pela frente. Lá, muita gente que tinha casa, comida e roupa lavada está em condições similares às que você e sua mãe conhecem muito bem: a tristeza das carências cotidianas e a imprevisibilidade sobre o dia de amanhã.

Não há mais tempo para brincarmos de deuses inconsequentes em relação ao meio ambiente. Tudo o que construímos durante séculos, usando nossa criatividade e suor, pode ser colocado em jogo. Grupos poderosos e líderes mentirosos têm evitado que comecemos um processo de defesa do planeta. Eles continuam dizendo que os desastres naturais sempre aconteceram. São os mesmos que culpam os pobres pela pobreza e gostariam que voltássemos ao tempo da escravidão, quando havia senhores e escravizados, e não direitos iguais para todos.

Talvez essas grandes questões estejam muito longe da sua dura realidade cotidiana, Esperança. Porém, os grandes problemas são a fonte das injustiças. Não sei se frequenta a escola, mas lá seria o lugar ideal para você aprender como superar nossas mazelas, tendo um olhar crítico sobre os erros dos seres humanos, como também sobre as possibilidades de correção. A educação é o melhor caminho para termos menos gente morando na rua, menos presídios, mais diálogo entre as pessoas que pensam diferente e mais chances de termos uma sociedade solidária.

Como um adulto que teve a sorte de ter tido oportunidades educacionais, mesmo que em escolas públicas da periferia de São Paulo, me sinto no dever de lhe contar quais são as incertezas do século XXI que tornam mais incerto o futuro para todos. Em primeiro lugar, no topo das preocupações, está a questão ambiental. Se não fizermos imediatamente a lição de casa para desacelerarmos a mudança climática, se não cuidarmos melhor das nossas florestas, rios e oceanos, e se, em suma, não tomarmos consciência de que nossos atos importam na regulação do planeta, há grandes chances de muita gente passar pela experiência de viver em escombros, e não nos lindos prédios que você, Esperança, admira ao viver nas ruas e não poder usufruir do conforto do lar.

Tal cenário pode parecer um exagero, como muitos poderiam retrucar. Mas, quem, honestamente, teria previsto há alguns meses que o Rio Grande do Sul viveria a situação em que está hoje? Na verdade, não temos ideia do que a natureza rebelada por nossas atitudes irresponsáveis pode fazer nos próximos anos. O futuro se tornou mais incerto do que em qualquer outra época da história.

O mundo também se tornou mais perigoso com a disputa das grandes potências e com os recentes conflitos na Ucrânia e nos territórios de Israel e Faixa de Gaza. A Europa, como berço da civilização ocidental, está em risco com o projeto expansionista russo. O conflito no Oriente Médio tem sido recorrente, mas ganhou um ar de crueldade recíproca que coloca em jogo a estabilidade da região e a crença de que tenhamos aprendido com os massacres do passado. Para piorar, as duas mais poderosas nações, Estados Unidos e China, entraram numa rota de colisão que pode nos levar a um conflito mundial, com proporções ainda desconhecidas.

A tecnologia é sempre admirada por todos nós, e você deve sonhar com os celulares dos que passam por ti em meio à carência material de sua situação de rua. Não se envergonhe disso, Esperança, porque quase todas as crianças e jovens são aficionadas por máquinas novas de comunicação e entretenimento. Entretanto, aquilo que deveria ter apenas um uso positivo tem gerado muitas preocupações e angústias. Duas são as principais. Uma é o uso cada vez mais frequente das redes sociais para produzir ódio e divisão entre as pessoas. Veja que triste: em meio a uma tragédia como a do Rio Grande do Sul, a internet foi utilizada para espalhar mentiras que atrapalham o auxílio dos que necessitam de ajuda. Alguns chamam isso de liberdade de expressão. Eu chamo isso de crueldade criminosa, um atentado contra a humanidade.

Outro temor trazido pela tecnologia no século XXI é a possibilidade, cada vez maior, de ela se tornar incontrolável pelos seres que a criaram. A veracidade das informações e a substituição dos homens pelas máquinas são duas enormes preocupações. Mentiras podem se tornar mais difíceis de serem combatidas e a autoria das ideias ficar mais obscura, atingindo a nossa grande liberdade que é a criatividade. Pior: milhões de empregos podem ser destruídos e, assim, talvez você tenha mais vizinhos de rua no futuro, tornando ainda mais selvagem a vida de quem não tem onde morar e o que comer.

Meu temor maior sobre o século XXI é o crescimento das desigualdades. Me assusta como meu círculo social aceita que uma menina como você, Esperança, possa viver com sua mãe numa condição indigna para um ser humano. E me amedronta ainda mais saber que, em vez de estarmos caminhando para resolver esse problema, talvez estejamos indo na rota contrária.

Não sei se a encontrarei ou se terei coragem de entregar essa carta. No fundo, espero que os que leiam lembrem de você como a expressão de muita gente que não tem um futuro pela frente. Se não posso resolver sozinho as suas carências, querida Esperança, continuarei lutando para melhorar, no que me cabe, o mundo que nos circunda. E não vou me esquecer de seu nome porque é ele que me guia mesmo nos piores dias”.

O conceito de moderno

O conceito de moderno é relativamente difuso nas ciências sociais. Surge em meados do século XIX, mais como uma manifestação de partes da população contra os então valores tradicionais ainda da Igreja e dos resquícios da Idade Média, na sua superação pela industrialização e o capitalismo. Na moda, estes conceitos são mais presentes, na sucessiva mudança de hábitos e costumes que diferenciam as classes e grupos sociais. Nas artes, principalmente na pintura, com Picasso e tantos outros, toma corporeidade devido à sua referência a um movimento bem específico e determinado no tempo. Assim como na literatura.

Nas ciências sociais, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman propõe o termo “modernidade líquida”, como o saldo que diferencia sociedades mais desenvolvidas de outras. O conceito de modernidade, entretanto, é altamente imbuído de juízo de valor, nem sempre eficaz ou preditivo de tendências.

Muitos conceituam a modernidade como aquilo que vem depois. Trata-se, entretanto, de termo, quando mal aplicado, infrutífero e até mesmo pernicioso, no que possa expressar tendências nefastas sob o manto da terminologia. Hitler e o nazismo teriam sido modernos por vir após a República de Weimar? Bolsonaro, quando aparece no Brasil, foi moderno ou retrógrado? Viktor Órban, o que representa? Seria moderno o futuro sombrio do apocalipse que se apresenta à crise ambiental?

Como disse Shakespeare, “há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”. Não é o que vem depois que legisla sobre o que há de certo no amanhã.

Os Cães

– Mas, enfim, que pretendes fazer agora? perguntou-me o Quincas Borba, indo pôr a xícara vazia no parapeito de uma das janelas.

– Não sei; vou meter-me na Tijuca; fugir aos homens.

Estou envergonhado, aborrecido. Tantos sonhos, meu caro Borba, tantos sonhos, e não sou nada.

– Nada! interrompeu-me o Quincas Borba com um gesto de indignação.

Para distrair-me, convidou-me a sair; saímos para os lados do Engenho Velho. Íamos a pé, filosofando as coisas.

Nunca me há de esquecer o benefício desse passeio, que me restituiu o sossego e a força. A palavra daquele grande homem era o cordial da sabedoria. Disse-me ele que eu não podia fugir ao combate; se me fechavam a tribuna, cumpria-me abrir um jornal. Chegou a usar uma expressão menos elevada, mostrando assim que a língua filosófica podia, uma ou outra vez, retemperar-se no calão do povo. Funda um jornal, disse-me ele, e “desmancha toda esta igrejinha”.

– Magnífica ideia! Vou fundar um jornal, vou escachá-los, vou...

– Lutar. Podes escachá-los ou não; o essencial é que lutes. Vida é luta. Vida sem luta é um mar morto no centro do organismo universal.


Daí a pouco demos com uma briga de cães; fato que aos olhos de um homem vulgar não teria valor. Quincas Borba fez-me parar e observar os cães. Eram dois. Notou que ao pé deles estava um osso, motivo da guerra, e não deixou de chamar a minha atenção para a circunstância de que o osso não tinha carne. Um simples osso nu. Os cães mordiam-se, rosnavam, com furor nos olhos... Quincas Borba meteu a bengala debaixo do braço, encostou o queixo no costão e parecia em êxtase.

– Que belo que isto é! dizia ele de quando em quando.

Quis arrancar-me dali, mas não pude; ele estava arraigado ao chão, e só continuou a andar, quando a briga cessou inteiramente, e um dos cães, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte. Notei que ficara sinceramente alegre, posto contivesse a alegria, segundo convinha a um grande filósofo. Fez-me observar a beleza do espetáculo, relembrou o objeto da luta, concluiu que os cães tinham fome; mas a privação do alimento era nada para os efeitos gerais da filosofia.

Nem deixou de recordar que em algumas partes do globo o espetáculo é mais grandioso; as criaturas humanas é que disputam aos cães os ossos e outros manjares menos apetecíveis; luta que se complica muito, porque entra em ação a inteligência do homem, com todo o acúmulo de sagacidade que lhe deram os séculos, etc.
Machado de Assis, "Memórias Póstumas de Brás Cubas"

O calor cozinha nossos miolos?

O clima tropical "amoleceu" os brasileiros, como sugeriu Albert Einstein em seus politicamente incorretos diários de viagem? O pai da Teoria da Relatividade foi aqui um gênio presciente ou apenas preconceituoso?

A viagem de Einstein à América do Sul ocorreu em 1925. À época não havia estudos rigorosos que pudessem amparar suas observações sobre os efeitos do clima na inteligência, de modo que o físico alemão apenas ecoava o determinismo geográfico de tons racistas que era moeda corrente à época.


Ocorre que, a partir de 1945, começam a surgir pesquisas que apontam efeitos negativos do calor sobre a cognição, não em caráter essencialista, do tipo que produziria povos irremediavelmente ignorantes, mas de forma aguda. O mesmo indivíduo tem performance melhor ou pior de acordo com a temperatura.

Valho-me aqui de informações constantes em "The Weight of Nature", de Clayton Page Aldern, livro que ainda vou resenhar, mas do qual já dou uma palhinha. No que provavelmente é o primeiro estudo controlado, Norman Mackworth mostrou que o desempenho de soldados da Real Força Aérea na transcrição de código Morse piorava nitidamente com o aumento dos termômetros. A partir dos 33ºC a diferença se tornava dramática.

Hoje há uma profusão de trabalhos nessa linha. Eles não só corroboram o vínculo como indicam que ele pode ser fonte de desigualdades. Na China, já se mostrou que estudantes das regiões mais quentes são injustamente penalizados no vestibular unificado do país, o "gaokao", que ocorre no verão.

Em Nova York, apenas dois terços das escolas públicas têm ar-condicionado. Obviamente, são as dos distritos mais pobres as que não têm. A climatização explica 5% da diferença de desempenho entre as crianças negras e não negras.

Não é coincidência que, quando questionado sobre o segredo do sucesso de Singapura, Lee Kuan Yew, o ditador que fundou o país, tenha respondido: ar-condicionado.