domingo, 24 de março de 2019

Contra a velha política surge uma nova balbúrdia

Há algo de suicida no comportamento de Jair Bolsonaro. O doutor Paulo Guedes, homem forte da Esplanada, informa que, sem a reforma da Previdência, sobrevirá o Apocalipse. O governo só dará certo, portanto, se entregar a reforma. Na Câmara, exigem-se 308 votos. Para obtê-los, é preciso adotar três providências: dialogar, dialogar e dialogar. Mas Bolsonaro prefere fazer cara de nojo. Se continuar agindo assim, Dilma Rousseff vai acusá-lo de plágio.

Bolsonaro escolheu governar no mundo das redes sociais. É muito parecido com o País das Maravilhas. Ali, quem ousa mostrar o mundo real é acusado de conspirador. É isso o que está acontecendo com Rodrigo Maia. Grão-tuiteiro do reino, Carlos Bolsonaro foi ao país do cristal líquido para instruir os navegadores a cortarem a cabeça do presidente da Câmara. Após intensa refrega, Maia aconselhou Bolsonaro, o pai, a dedicar mais tempo à Previdência do que ao Twitter. Foi como se o deputado ecoasse Alice: "Vocês não passam de um baralho de cartas".

No país de Alice, a honestidade de Bolsonaro tornou-se uma virtude negativa. À medida que seu governo vai penetrando o caos legislativo, o presidente vai enumerando os mandamentos de sua honra. Todos começam com não. Coisas assim: Não colocarei bandido no ministério, não farei o toma-lá-dá-cá, não farei concessões à velha política, não isso, não aquilo.

No gogó, tudo soa muito lindo. Entretanto, no mundo das coisas práticas, um presidente que se escora no vocábulo da negação fica muito parecido com o sujeito que leva a família ao restaurante, acomoda-se numa mesa e, na hora de pedir a comida, enumera para o garçom todos os pratos que não deseja experimentar. A família volta para casa com fome e o filho do meio vai às redes para falar mal do estabelecimento.

Não existe velha nem nova política. Existe a boa política e a cleptopolítica. A Lava Jato demonstrou que, nos últimos anos, o índice de corrupção não aumentou no Brasil. Continua nos mesmos 100%. O presidente faz bem em tomar distância do modelo em que a governabilidade é obtida na base do "uma mão suja a outra". Mas é uma tolice negar a evidência de que não há política sem escambo.

É natural que os congressistas sejam portadores de demandas do seu eleitorado. Bolsonaro dispõe de uma vacina capaz de imunizá-lo contra a radioatividade da formação de consórcios partidários. Basta comunicar aos integrantes da sonhada maioria parlamentar: "Não me peçam nada que subverta o interesse público. No meu governo, não se toma e não se dá nada que não possa ser exposto na vitrine".

Fora disso, a retórica do combate à velha política não serve senão para abrir o caminho que conduz a uma nova balbúrdia. Jair Bolsonaro e sua dinastia sempre poderão correr às redes sociais para acusar o Congresso de bloquear as propostas do governo. Mas já ficou entendido que esse tipo de fuga serve para criar crises, não para evitar o Apocalipse de que fala Paulo Guedes.

Está no ar a barafunda Bolsonaro

Jair Bolsonaro superou as marcas de impopularidade de seus antecessores no início do primeiro mandato. Com viés de piora, esse desempenho deve-se em parte a um processo de autocombustão, mas nem tudo pode ser atribuído a Bolsonaro. Ele teve a ajuda de ministros civis e militares.

Resolveram fazer uma reforma da Previdência. Poderiam ter seguido a sugestão do economista Paulo Tafner, fatiando-a. Mandariam primeiro o corte dos privilégios dos marajás e depois cuidariam dos miseráveis. Resolveram juntar as duas brigas. Vá lá.


É elementar que a profissão e a Previdência dos militares nada têm a ver com as dos servidores civis. Poderiam ter separado as duas questões. Não só juntaram os debates, como decidiram botar no combo um projeto de reestruturação da carreira militar, coisa que não tem nada a ver com a Previdência.

Todas essas decisões embaralham o debate e dificultam a aprovação de algo parecido com o projeto original do governo. Como alguma reforma haverá de ser aprovada sempre se poderá cantar vitória. Afinal, Fernando Henrique Cardoso e Lula também fizeram reformas da Previdência. Nenhum deles atritou-se com o presidente da Câmara.

A barafunda vai além da reforma. O ministro Sergio Moro resolveu peitar Rodrigo Maia com mais uma de suas jeremíadas. Tomou umtranco e ficou em paz. Durante a visita de Bolsonaro a Washington, o ministro das Relações Exteriores foi humilhado, um filho do presidente disse que os brasileiros que vivem nos Estados Unidos sem documentação são “vergonha nossa” e o condestável da Economia informou que gosta de Coca-Cola e da Disneylândia. (Quem passava dias sozinho na Disney era o professor Mário Henrique Simonsen, mas ele nunca anunciou isso a uma plateia de empresários.)

Se tudo isso fosse pouco, Bolsonaro disse na Casa Branca que acredita “piamente” na reeleição de Donald Trump. Sentiu cheiro de banana e foi procurar a casca para escorregar. Os dois presidentes que mais ajudaram a ditadura brasileira foram Lyndon Johnson e Richard Nixon. Um encantou-se com o marechal Costa e Silva, o outro com Emilio Médici. Ambos foram eleitos com memoráveis maiorias e acabaram naufragando. Amaldiçoado, Johnson desistiu da reeleição. Acuado, Nixon renunciou. Os presidentes brasileiros não disseram coisa parecida. Trump nunca teve a força de qualquer um desses antecessores.

A Lei de Murphy diz que, se uma coisa pode dar errado, errado ela dará. O governo do capitão parece disposto a enriquecê-la: Se uma coisa pode dar certo, trabalham para que dê errado.

Brasil sem privilégios


'Mito' liberal era fake news

A campanha de 2018 fabricou um novo Jair Bolsonaro. Ele se dizia convertido ao liberalismo, embora admitisse não entender nada de economia. Ao ser questionado sobre algum tema concreto, escapava com um gracejo: “Vou perguntar lá no Posto Ipiranga”. Era uma referência a Paulo Guedes, anunciado como futuro ministro da Fazenda.

O aval do banqueiro bastou para convencer o mercado. Com os parceiros habituais em apuros, empresários e investidores arrastaram todas as fichas para a candidatura do “Mito”. Agora eles começam a se perguntar se fizeram a aposta certa.


Nos últimos dias, Bolsonaro indicou que não está tão empenhado em entregar o que prometeu. “Eu, no fundo, não gostaria de fazer a reforma da Previdência”, disse, na quinta-feira. Ele acrescentou que seria “irresponsável” não mexer nas aposentadorias, mas a primeira frase foi a que soou mais sincera.

Não é só com palavras que o presidente mostra a que (não) veio.

Na quarta-feira, ele levou ao Congresso um projeto de reforma para as Forças Armadas. Em vez de cortar privilégios, incluiu benesses como o reajuste dos soldos e o aumento da gratificação no fim da carreira. Até o líder do PSL, Delegado Waldir, reclamou do truque.

“Não tem como explicar esse tratamento diferenciado”, resumiu. O episódio mostra que Bolsonaro continua a pensar como chefe do sindicato dos militares. Sua versão liberal era fake news de campanha, assim como o kit gay, a ameaça comunista e a conspiração para fraudar as urnas eletrônicas. Na viagem ao Chile, o presidente deu novos tiros contra a reforma.

Questionado sobre a prisão de Michel Temer, culpou os “acordos políticos em nome da governabilidade”. Os parlamentares entenderam o recado: ele não está disposto a fazer concessões para mexer nas aposentadorias.

Com o ambiente político em chamas, o segundo-filho Carlos Bolsonaro resolveu jogar mais gasolina na fogueira. “Por que o presidente da Câmara está tão nervoso?”, provocou nas redes sociais, referindo-se à prisão de Moreira Franco.

O ex-ministro é sogro de Rodrigo Maia, que passou uma descompostura no chefe do clã:

“Ele precisa ter mais tempo pra cuidar da Previdência e menos tempo cuidando do Twitter”. Há duas semanas, o ministro Guedes disse que só faltariam 48 votos para aprovar a reforma. A declaração irritou líderes partidários, que traçam um cenário muito mais complicado. A paciência do mercado também começou a se esgotar, mas quem comprou o “Mito” em 2018 sabia estar diante de um papel de alto risco.

Só 'vontade de Deus' não basta

Cada dia que passa é um dia a menos que o governo tem para articular sua base com vista a aprovar a reforma da Previdência, mas o Palácio do Planalto e seus operadores políticos parecem longe de compreender a urgência do problema. As advertências de deputados e senadores ao governo deixaram de ser apenas murmuradas e passaram a frequentar discursos e entrevistas em que as queixas são expostas de maneira explícita. Hoje parece haver um consenso segundo o qual o presidente Jair Bolsonaro precisa mudar o modo como negocia o apoio para a reforma, sob o risco, cada vez mais concreto, de ser derrotado.


A questão central é que os parlamentares que apoiam a reforma e se dispõem a liderar o esforço por sua aprovação estão cada vez mais descontentes com o fato de que o próprio Bolsonaro não se apresenta para defender com vigor a proposta. Não são poucos os que temem arcar sozinhos com o ônus político da reforma enquanto o presidente hesita ante a natural impopularidade do tema – quinta-feira passada, por exemplo, Bolsonaro disse que, “no fundo, não gostaria de fazer a reforma da Previdência”, embora reconheça que seja necessária.

O fato é que Bolsonaro parece raciocinar ainda como deputado, condição que o tornaria mais suscetível à pressão de suas bases, e não como presidente, que deve governar para o conjunto da sociedade, com coragem para tomar medidas que podem eventualmente desagradar a seus eleitores.

A julgar pela desorganização de sua articulação política – até mesmo um dos filhos do presidente, o vereador carioca Carlos Bolsonaro, diz ter sido designado para fazer contatos com deputados em nome do pai –, soa otimista a previsão oficial de que a reforma da Previdência possa ser votada ainda no primeiro semestre e de que faltariam pouco menos de 50 votos para aprová-la, como disse o ministro da Economia, Paulo Guedes.

O governo dá a impressão de apostar que Bolsonaro, por ter sido eleito pela “vontade de Deus”, como disse na recente visita aos Estados Unidos, aprovará no Congresso todas as pautas de seu interesse sem necessidade de negociação. Não é o que pensam, contudo, os principais parlamentares empenhados na aprovação da reforma. Para esses políticos, só a “vontade de Deus” não basta quando se trata de convencer três quintos da Câmara a aprovar uma emenda constitucional, especialmente a que endurecerá as regras para a aposentadoria.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, por exemplo, alertou que a Casa “não tem 320 liberais” e que será preciso convencer até 280 deputados que não foram eleitos com a agenda da reforma da Previdência.

Se já não seria tarefa simples mesmo para experimentados articuladores, essa empreitada tende a ser muito mais complicada se o governo não se dispõe a fazer política. Até deputados da chamada bancada evangélica têm reclamado da falta de diálogo. Ademais, quando o presidente da República se reúne com parlamentares para ouvir reivindicações com vista a obter apoio à reforma e em seguida vai às redes sociais se queixar de que “a velha política” está “querendo nos puxar para fazer o que eles faziam antes”, manda uma mensagem ambígua sobre sua disposição para negociar.

Ao dar a entender que todas as demandas dos parlamentares são fisiológicas, o presidente colabora para criar um clima de fricção com o Congresso. Não surpreenderá se alguns dos parlamentares que hoje colaboram abertamente com o governo para costurar apoio à reforma da Previdência passarem a ficar reticentes, à espera de um suporte mais explícito do presidente. O próprio presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ameaça abandonar a articulação se continuar sob ataque das milícias virtuais bolsonaristas e dos filhos de Bolsonaro, sob o olhar complacente do pai.

Não basta a Bolsonaro dizer que a aprovação da reforma da Previdência vai acontecer só porque seu governo adotou “uma maneira diferente de negociar”, em que “o sentimento patriótico e a busca do consenso são fundamentais”, como escreveu em artigo publicado no jornal Valor. Como deveria saber qualquer iniciante na vida política, apelos patrióticos podem até animar eleitores e militantes, mas não costumam ser suficientes para arregimentar apoio no Congresso, ainda mais quando o presidente da República pede votos a favor, mas age como se fosse contra.

Deserto de ideias

Qual é o projeto do governo Bolsonaro, fora a Previdência? Fora o projeto do ministro Moro? Não se sabe. Qual é o projeto de um partido de direita para acabar com a extrema pobreza? Criticaram tanto o Bolsa Família e não propuseram nada até agora no lugar. Criticaram tanto a evasão escolar de jovens e agora a gente não sabe o que o governo pensa para os jovens e para as crianças de zero a três anos. O governo é um deserto de ideias
Rodrigo Maia, presidente da Câmara .

Reflexões sobre um voto a mais

A Lava Jato fez cinco anos com impressionantes números internos e grandes repercussões na política continental, algo que não se destaca muito aqui, no Brasil. Mas na semana do aniversário sofreu uma derrota: por 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que crimes conexos ao caixa 2 vão para a Justiça Eleitoral.

Os políticos acusados de corrupção terão um alívio. A Justiça Eleitoral não está aparelhada para investigar, dificilmente colherá provas. Alívio maior ainda é saber que, mesmo com excesso de provas, como no julgamento da chapa Dilma-Temer, ela decide absolver.


Há um novo marco adiante: a votação da prisão em segunda instância. Se o grupo que resiste à Lava Jato vencer, trará alívio não só para investigados, como também para os presos.

A Lava Jato vinha de uma semana difícil com a história da fundação que usaria R$ 2,5 bilhões para combater a corrupção. Era dinheiro da Petrobrás a ser devolvido ao Brasil pelos Estados Unidos. Os procuradores compreenderam rápido que era melhor recuar da ideia e deixar que o dinheiro seja usado de acordo com prioridades democraticamente definidas. Mas os adversários souberam aproveitar o tropeço.

O ministro Gilmar Mendes chegou a afirmar que havia intenções eleitorais na decisão dos procuradores de usar o dinheiro contra a corrupção. E levou o nível da tarde ao de um programa do Chaves, chamando os procuradores de gentalha.

Creio que os ministros perceberam que derrotar a Lava Jato ia custar a todos uma certa oposição social. E de fato houve reação nas redes e na rua. Algumas reportagens indicavam que era uma reação de bolsonaristas contra o STF. Penso que transcende um grupo determinado.

Dias Toffoli compreende que está diante de uma situação grave. As sessões são públicas, a rede comenta e ataca os ministros. No entanto, sua reação de determinar inquérito no Supremo e escolher um delegado para conduzi-lo deu a impressão de estar com medo e isolado.

Com medo porque, de fato, o nível de agressividade aumenta, até com posições que fariam Rui Barbosa virar no túmulo: acabar com o STF. Isolado porque o Supremo é um órgão superior, existem estruturas judiciárias próprias para isso. Por que desprezá-las? Elas só desenvolvem inquéritos sobre acusações específicas, não uma hostilidade difusa contra os ministros.

Na verdade, Toffoli deu uma carteirada. Como em toda carteirada no Brasil, no princípio as pessoas ficam meio surpresas. Em seguida, pensando bem, conseguem ver as coisas nas dimensões legais.

O inquérito determinado por Toffoli pode ser contestado legalmente e, sobretudo, no campo político. Até que ponto procuradores e parlamentares que preparam uma CPI da Lava Toga não podem interpretar isso como uma tentativa de intimidação?

Não será o fim do mundo entregar os crimes conexos ao caixa 2 à Justiça Eleitoral, muito menos acabar com a prisão após julgamento em segunda instância. Se vão fazer isso, aguentem o tranco, sem apelar para saídas autoritárias. Quem anda pelas ruas não ouve críticas ao STF apenas de seguidores de Bolsonaro. Há algo mais amplo e potencialmente agressivo. E se a reação for essa que Toffoli lançou, as coisas podem ficar muito piores. Em vez de as pessoas lutarem contra juízes que veem apenas como cúmplices dos políticos, eles vão ser vistos também como autoritários e antidemocráticos.

Algumas previsões eleitorais temiam passos autoritários do governo. O Supremo e o Parlamento seriam contrapesos democráticos. Se o próprio Supremo avança o sinal, aumenta uma percepção de insegurança. Não creio que os parlamentares se vão intimidar.

O caminho escolhido por Dias Toffoli agrava a situação. Abre-se uma perspectiva para uma luta mais áspera ainda. Já chegamos ao nível do programa vespertino Chaves com a gentalha, gentalha de Gilmar. No programa, gentalha é um achado; no diálogo institucional, uma barbárie.

A Lava Jato continuará com apoio popular. A entrada de Sergio Moro no governo ainda é uma incógnita. Ela é baseada no propósito de ampliar o trabalho da operação, levá-la além dos seus limites com um conjunto de leis e uma nova atitude do Executivo. Todavia não é garantido que os parlamentares respaldem majoritariamente suas propostas. E parece haver no governo uma luta interna com potencial desagregador. As notícias que vieram de Washington, sobretudo a entrevista de Olavo de Carvalho, revelam uma linguagem também corrosiva, em especial quanto aos militares.

Se a maioria ocasional entre os ministros prevalecer e derrotar de novo a Lava Jato, certamente haverá reações. Toffoli mostrou-se um pouco sem norte nesta primeira etapa. Se insistir nesse tipo de resposta, tende a sair enfraquecido.

Uma nova derrota da Lava Jato também terá repercussões no Congresso e, pelo que ouço, o tom lá contra alguns ministros do STF tem a mesma carga emocional das ruas. Uma CPI da Lava Toga tem o potencial de trazer uma grande pressão, criar tensões institucionais. A luta ainda está longe do desfecho, mas vejo que pode ser áspera, com os políticos estimulados pelas ruas. O aspecto delicado é que ela tem o potencial de pôr em confronto, ainda que parcialmente, duas instituições com que contávamos como contrapeso democrático.

Será preciso muita maturidade para avançar daqui para a frente, máxime neste momento crucial de luta entre diferentes maneiras de tratar a corrupção. Não deveriam ser tão excludentes. Quando um ministro se coloca como inimigo da Lava Jato, perde a isenção, propõe, na verdade, um duelo com a maioria da sociedade e parte substancial do Congresso.

Tomar sucessivas decisões impopulares com um estilo de briga de botequim é uma escolha. O próprio STF, instituição destinada a resolver conflitos, transformou-se num núcleo conflitivo. Uma fábrica de crises entre um e outro chá.

Paisagem brasileira

Mariana (MG), Roberval Cunha 

Em nome de Deus

A vulgaridade que se espalha por todos os cantos passou a invocar o nome de Deus como se fosse um produto nas prateleiras dos supermercados. Não se trata sequer do ignorante, mas respeitoso temor reverencial de séculos atrás, quando os raios e trovões faziam tremer por ser “a ira divina”. Agora se invoca Deus a granel, na política ou no dia a dia, até para os atos mais diabólicos...

Quando, porém, o papa e a Igreja Católica buscam estudar e analisar a progressiva degradação do planeta, muitos se esquecem de que a vida é a obra suprema. O próximo sínodo dos bispos sobre a Amazônia, a realizar-se em Roma, é o exemplo concreto da preocupação que deveria abarcar toda a sociedade, não apenas os católicos e os luteranos tradicionais, mas, mesmo assim, é atacado.

A devastação da Amazônia é um horror concreto, agravado nas últimas décadas pela mineração e pelo desmatamento predatórios, que competem entre si sobre quem degrada mais… A região em que chovia todos os dias (e as reuniões se marcavam para “antes” ou “depois” da chuva) agora já padece de seca, numa antevisão do deserto. A maior bacia hidrográfica do planeta abrange nove países sul-americanos e os bispos da região (não só do Brasil) analisarão ações e estratégias para enfrentar o que se agrava a cada dia com o desmatamento e com rios e igarapés contaminados pelo mercúrio da mineração.

No Brasil, porém, o ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (sucessor do antigo SNI dos tempos ditatoriais), está preocupado com o sínodo e o considera uma afronta ao governo Bolsonaro e à própria soberania do Brasil. “Nós não damos palpite sobre o Deserto de Saara ou o Alasca”, disse, adiantando que o governo pretende neutralizar as conclusões que surjam do sínodo...

Por que “neutralizar”, se a reunião será em outubro e nem se sabe o que recomendará?

Convocado pelo papa Francisco em 2017, um ano antes da eleição de Bolsonaro, o sínodo é uma reunião interna da Igreja e só a ela cabe definir os próprios rumos. O bispo de Marajó, dom Evaristo Spengler, um dos relatores do encontro (junto a prelados de outros oito países) lembra que a Igreja “não pode ser neutra ou impassível” diante de um crime causado pela visão de lucro fácil. Está em risco um exuberante bioma que se estende das montanhas do Peru, junto ao Oceano Pacífico, até o Atlântico.

O ministro do Gabinete de Segurança Institucional foi comandante militar na Amazônia brasileira e hoje é a figura mais influente do governo, mas se equivocou ao não entender a missão da Igreja. Amar o planeta não será, antes de tudo, amar a humanidade? No equívoco teve até a companhia de alguns que – alheios à realidade interna da Igreja – fantasiaram situações ou divisões há muito inexistentes no catolicismo ou entre os membros do Conselho Mundial de Igrejas.

O sínodo sobre a Amazônia será, de fato, o desdobramento concreto da encíclica Laudato Si’, do papa Francisco, sobre “os cuidados com a casa comum”, nosso planeta. Lançada em maio de 2015, é o mais importante documento do século. Profundo, analítico e didático, alerta sobre a responsabilidade de cada um na vida no planeta. Denuncia a horda brutal da cobiça que, alegando um falso “progresso”, entende que a natureza é algo a destruir e malbaratar, a desrespeitar e odiar. E que tudo, até o horror, é válido em nome do lucro...

A encíclica deu nova dimensão à luta pela preservação ambiental. Ao superar as ribombantes frases declaratórias dos governos e governantes, saltou dos discursos para a consciência dos indivíduos, a partir do conceito de vida.

O meio ambiente surgiu (ou ressurgiu) como tema teológico, ligado umbilicalmente à vida na Terra ou à nossa existência e ao que nos rodeia. Anos antes, em 2008, o papa Bento XVI havia definido quatro novos “pecados capitais” – a poluição ambiental foi um deles, ao lado da manipulação genética, das drogas e da exploração econômica que provoca a desigualdade social.

Mas na voraz sociedade de consumo (que naturalmente nos conduz ao hedonismo e ao prazer) a ideia de “pecado” já não tem a profundidade de séculos atrás. Hoje, se não somos capazes de dominar os sete pecados capitais da tradição bíblica – gula, luxúria, avareza, ira, soberba, vaidade e preguiça –, como incorporar os quatro apontados no século 21?

A encíclica sobre “os cuidados com a casa comum” abriu nova reflexão a respeito da responsabilidade não só dos governantes ou dos empresários, mas de cada um de nós em torno da vida no planeta. O sínodo busca encontrar caminhos para concretizar o que a encíclica aponta.

A Igreja não é um ente etéreo. Historicamente, está comprometida com a defesa da vida. Aquilo que a teologia chama de eternidade é, em essência, a manutenção da vida tal qual foi estabelecida pelo Deus criador, seja ele qual for – o “fiat lux” da Bíblia ou o “big-bang” da ciência.

Só há eternidade se houver o planeta. Sem ele, é o nada!

Afinal, por que defender o meio ambiente apenas nas grandes conferências de chefes de Estado e, logo, relegar as palavras a plano inferior?

A Eco-92, realizada há 27 anos no Rio de Janeiro, elaborou a Agenda 21 como cartilha a adotar no novo século para nos salvar da hecatombe próxima. Em 2012, também no Rio, nos 20 anos da reunião anterior, nova reunião de cúpula dos chefes de governo reiterou a advertência, sem que o essencial houvesse mudado. O aquecimento global continuou, sem medidas urgentes de reversão.

Agora, porém, quando o sínodo dos bispos sobre a Amazônia busca saídas para mitigar e extirpar o horror numa região sensível do planeta, há quem use até “o nome de Deus” para se opor à iniciativa...
Flávio Tavares

Bolsonaro sem noção

Movem-se as placas tectônicas da política brasileira, e pode vir daí um terremoto de vastas proporções. A reforma está com problemas pela desarticulação do governo, e o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, que é (ou era) o grande aliado para dar andamento à aprovação da reforma da Previdência, acha que essa desarticulação faz parte de uma estratégia do próprio Bolsonaro, que só sabe governar na base da confrontação.

Para o presidente da Câmara, o presidente Jair Bolsonaro “não tem noção, nem da gravidade da situação, nem da importância de governar com o Congresso numa democracia”. Há uma diferença entre governar como o PT fazia, e como a Angela Merkel (chanceler alemã) faz, destaca o Rodrigo Maia. “Eu vou continuar atuando a favor da reforma da Previdência, mas não em nome do governo”. Maia diz que quem tem que atuar dentro do Congresso é o articulador político do governo, o Onix Lorenzoni. E, especialmente, o próprio presidente Bolsonaro.

“Eu não tenho capacidade para conseguir os votos necessários para aprovar a reforma. Posso até, pelo meu convencimento, arranjar uns 50, 60 votos. Mas faltarão mais cerca de 250, que o governo vai ter que buscar”. Para tanto, ressalta Maia, tem que fazer política, e isso eles não querem fazer.

“Querem ficar com o bônus de serem os protetores do povo, e o Congresso assumirá o ônus de ter aprovado uma matéria impopular, embora necessária”. O governo Bolsonaro, desde o início, tenta se desvencilhar da dependência do Congresso, o que é um contrasenso num regime necessariamente de coalizão em que o presidente nunca tem a maioria parlamentar, mesmo que tenha a maioria popular.

Nos Estados Unidos, o candidato, como Trump, pode ser eleito pelo Colégio Eleitoral e perder na votação popular. Em regimes como o nosso, nem sempre acontece que um presidente popular tenha o apoio da maioria no Congresso, mas não consegue governar sem ele. Aconteceu com Collor, com Dilma e está acontecendo com Bolsonaro.


Com a agravante para Bolsonaro de que sua popularidade está em decadência muito antes de terminar do período de graça dos governos. Nos 100 primeiros dias, o presidente eleito historicamente conseguia tudo no Congresso. Não mais. Além disso, o governo, em campanha permanente, queima suas pontes com potenciais aliados porque só se interessa em cultivar a parte do eleitorado que o elegeu, a que fala mais diretamente a seus valores conservadores.

O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, que se dispunha a ajudar na aprovação da reforma da Previdência, está recuando sua defesa para fazer frente a uma série de ataques, uns provocados por inexperiência, como o do ministro Sérgio Moro; outros, propositais para incensar os radicais bolsominions nas redes sociais.

O vereador Carlos, o filho 02, que se distrai fazendo política no twitter, publicou no Instragam, no dia da prisão de Moreira Franco, sogro de Rodrigo Maia: “Por que o presidente da Câmara está tão nervoso?”, numa clara insinuação irônica. E retuitou uma mensagem do ministro Sérgio Moro com críticas indiretas a Maia.

Moro enviara de Washington uma mensagem pelo WhattsUp reclamando que Rodrigo Maia havia criado uma comissão para analisar o projeto anticrime do governo juntamente com outros projetos já em tramitação na Câmara, inclusive um que foi coordenado pelo atual ministro do Supremo Alexandre de Moraes. Considerou isso o descumprimento de um suposto acordo.

Rodrigo Maia, de fato, deixou o projeto para entrar na pauta no segundo semestre, pois acha que discutir os dois, esse e o da Previdência, ao mesmo tempo vai dispersar os votos. E combinou a estratégia com Bolsonaro. O presidente da Câmara mandou a resposta, exigindo que Moro o respeitasse como presidente do Poder Legislativo.

O ministro da Justiça, Sérgio Moro, retrucou no twitter, que foi replicado por Carlos Bolsonaro: "Talvez alguns entendam que o combate ao crime pode ser adiado indefinidamente, mas o povo brasileiro não aguenta mais.".

Maia desabafa: “Se o filho do presidente me ataca publicamente, e ele não faz nada, quer dizer que pensa como o filho”. O governo não quer a reforma da Previdência, especula Rodrigo Maia. “Ou melhor, quer, mas jogando a responsabilidade para o Congresso. Bolsonaro posa de bonzinho, e nós somos os contra o povo”.

A era dos reptilianos

Estes são tempos de lagartos. Basta olhar ao nosso redor: a Austrália recusou-se a dar o visto ao polêmico David Icke, negacionista do Holocausto e criador de teorias conspiratórias sobre reptilianos humanoides. Icke daria palestras sobre governantes reptilianos, manipulação e controle mental governamental.

O YouTube anunciou há menos de dois meses que mudará seus algoritmos para que deixem de recomendar tantos vídeos de teorias da conspiração. O Facebookb acaba de anunciar a contratação do Newtraly e Maldita.es para combater as notícias falsas em sua plataforma. A agência France Presse também estenderá à Espanha seu acordo de verificação com o Facebook, que já tem em outros 15 países. A BBC decidiu vetar em seus debates as pessoas que defendam posições negacionistas em relação a teorias que têm um consenso científico universal. A Netflix mostra, no documentário A Terra É Plana, um dos fenômenos contemporâneos que está se expandindo com maior rapidez: os terraplanistas.

Parece, então, que aceitamos que estamos cercados de teorias conspiratórias e que elas representam enormes perigos sociais e políticos. Como chegamos até aqui em tão pouco tempo? Quando nos acostumamos com histórias de conspiração que agora é necessário deter?


Como Chris French explicou à BBC News, as teorias conspiratórias “são transversais em termos de classe social, gênero e idade”, e pressupõem a falácia de que os dois lados de uma disputa científica, social ou política devem ter a mesma veracidade. Se somarmos a isso que uma teoria conspiratória tem, como norma, a capacidade narrativa de criar padrões regulares, podemos compreender que sejam objeto de sedução. Nosso presente parece ter acelerado o poder das conspirações: são cada vez mais frequentes as ideias tóxicas sobre elites que controlam o mundo ou planos delirantes para a introdução de migrantes de origem muçulmana com ajudas governamentais.

Até muito recentemente, pressupunha-se que a bucha de canhão para as teorias da conspiração era uma massa uniforme de ignorantes e caipiras capaz de sucumbir às mais absurdas teorias sem nenhuma base em relação à origem do universo, à mudança climática, ou ao atentado das Torres Gêmeas. Mas um artigo recente de Julia Ebner no The Guardianalertou sobre os perigos para a democracia que representam não apenas as teorias conspiratórias, mas também sua construção material, seu arcabouço. Ebner citou o exemplo da comunidade Qanon, que começou no fórum 4chan, e com claros paralelos com as redes de ação de movimentos de extrema direita como o a Liga da Defesa Inglesa e o Pegida. Nos últimos tempos, Qanon cooptou manifestações dos coletes amarelos e promoveu as campanhas da linha mais dura pró-Brexit. O relatório The Battle for Bavaria (A Batalha pela Baviera), do Institute for Strategic Dialogue, do qual Ebner fez parte, usa um estudo de caso: as eleições bávaras. Nele se detalha como a comunidade internacional de extrema direita se mobilizou, principalmente a favor da ultradireitista Alternativa para a Alemanha, e revelou quais são as novas comunidades transnacionais de extrema direita que emergem na Europa e como participaram ativamente da eleição da Baviera, difundindo teorias de conspiração e desinformação com aliados transatlânticos.

Ebner explica como, ao injetar narrativas conspiratórias nesses movimentos, seus membros podem aproveitar as redes existentes e alterar sua direção política. Uma tática usada é combinar hashtags conspiratórias com as de campanhas virais e temas que são trending topic nas redes. O ruído que gera é suficiente para distorcer a percepção pública.

Talvez se deva deixar de entender essa narrativa de desinformação como algo antropologicamente curioso, típico de uma massa desinformada risível, e entender que se trata de um exercício de tentativa e erro. Se se é capaz de criar canais para que alguém pense que um reptiliano bebe o seu sangue e controla o seu voto, ou que vivemos em um gigantesco terrário, é muito mais fácil de implantar e naturalizar que os imigrantes recebem mais ajudas do Estado do que o resto, ou que a mudança climática é uma enorme teoria da conspiração.

Teremos que fiscalizar essas narrativas, e também verificar quão reais são as tentativas das grandes plataformas de detê-las. Por exemplo, dois dos grandes criadores de conteúdo do YouTube, Logan Paul e Shane Dawson, publicaram vídeos flertando com teorias da conspiração – o terraplanismo e a orquestração dos incêndios na Califórnia. O vídeo de Dawson ultrapassou 62 milhões de visitas. Diante da pergunta do The Verge ao YouTube sobre se as novas regulamentações anunciadas pela empresa seriam aplicadas a esses vídeos, o YouTube não esclareceu sua decisão. Mas respondeu que ao vídeo sobre terraplanismo não será acrescentada informação refutando a teoria.

Oh, sim. Estes são tempos de lagartos.
Luzia Lijtmaer