quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Brasil da 'nova' política

 


Estupro culposo: 'O que é isso?'

Eu gostaria de viver em um mundo onde mulheres e meninas não fossem estupradas. Queria que a palavra estupro sequer existisse. Infelizmente, não é assim. A cada oito minutos no Brasil, uma mulher ou menina é estuprada. Se as vítimas não pronunciam a palavra “estupro” em hospitais ou tribunais é porque o medo da perseguição as emudece. E, não sem razão, nos mostrou a cena de interrogatório em que Mariana Ferrer é uma vítima de estupro confrontada em um tribunal de homens. O réu, acusado da violência sexual, é o empresário André de Camargo Aranha. 

A cena é um extrato do que aconteceria entre portas nos tribunais. Com as audiências virtuais, vítima, algoz, promotor, juiz e advogado estão em um mesmo quadro. E as imagens nos fazem testemunhas do que antes seria descrito como um lamento das vítimas sobre os maus tratos do Judiciário. No extrato que assisti, até mesmo sua posição na tela é de desamparo—a única mulher, abaixo de quatro homens. Um deles a interpela com a voz do patriarca que tem o poder de mando absoluto: exibe fotos, descreve suas poses e posições como “ginecológicas”, altera a voz e a repreende nas lágrimas. Descreve sua angústia como “choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”, insinua ser Mariana uma mulher vulgar. Ele é o advogado do acusado. 

Mariana implora ao representante máximo da decência—ou do justo, se quiserem—na cena: “Eu estou implorando, Excelentíssimo”, diz ela, “eu estou implorando por respeito”. 

O juiz pergunta se Mariana quer beber água para se recompor. O que fez o juiz imaginar que a vítima tinha sede? Talvez, um trejeito dos homens que ignoram a verdadeira dor de quem sofre. 


Os quatro homens da cena são matéria idêntica em confronto àquela mulher tão jovem: eles estão ali para proteger o algoz, mas também em aliança silenciosa com outros homens. São homens de poder e mando, brancos no corpo e embranquecidos nos valores, com direito à voz de mando e a quem a espoliação dos corpos das mulheres e das meninas se fez como regra naturalizada da vida.

Ao que se sabe, e aqui repito as evidências transcritas em reportagens sobre o caso, há evidências de materialidade de estupro, algumas delas até mesmo inoportunas, como o fato de Mariana ser virgem (laudo pericial indica que o hímen foi rompido na ocasião). Importa repetir que a verdade da vítima se submeteu aos testes de veridição da polícia e do Judiciário —mas nem assim aqueles homens aquietaram-se diante da dor da vítima. 

Era preciso aniquilá-la em qualquer tentativa de atestar a culpa de um dos homens tão parecidos a qualquer um deles presente à cena. Houve uma divisão de tarefas, talvez silenciosa, mas tácita entre eles. É assim que se atualiza o patriarcado. Ao advogado coube a brutalidade da agressão verbal; ao algoz, o silêncio foi oportuno a um rosto escondido pela máscara. O promotor e o juiz foram os arquitetos do conluio de “estupro culposo”. Há palavras que não se reinventam.

Esse é o caso de estupro. Para os que têm dúvidas, explico: estupro é um crime de violência sexual. Em geral, de homens contra mulheres, meninas ou crianças. A vítima dos homens é sempre uma pessoa vulnerável, seja porque tem medo, porque é dependente ou porque se encontra em situação fragilizada. Não há “estupro culposo”, um neologismo de homens no poder que se arvoram inaugurar palavras e interpretações jurídicas para proteger outros iguais a si mesmos.

Na fantasia patriarcal, o estupro seria “culposo” quando o agressor não teria a intenção de violentar sexualmente sua vítima ou quando ignoraria a vulnerabilidade da vítima. Para o promotor, o algoz estuprou a vítima, mas foi incapaz de discernir que ela não consentiu. Descreveu a violência como “estupro culposo”, tese que o juiz acolheu para inocentar o acusado por “falta de provas”. 

Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, descreveu as cenas do interrogatório como “estarrecedoras”, extratos de “tortura e humilhação”. Mariana expressou seu estarrecimento, se dirigindo ao juiz e perguntando “o que é isso?”. 

Ela estava atordoada pelo espetáculo de violência naturalizada pelos representantes do poder. É como se ela sentisse que algo de muito equivocado estivesse em curso na cena. Em uma retórica desesperada das vítimas comparou-se a outros ainda mais miseráveis expostos ao poder: “nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus”, disse ela. 

Tristemente, Mariana estava errada — ela era, sim, a acusada para aquele tribunal de homens. Como ousava nomear um deles de estupro, ainda mais publicamente? Sua ousadia seria silenciada pela sentença de inocência do algoz sob a chancela de “estupro culposo”.

Tudo mudou para sempre

O mundo em geral, e a América em particular, estão em crise. Temos o grande problema verdadeiro que todos devemos enfrentar, que é a mudança climática. Está chegando rápido. É como um asteroide tremendo que vem do espaço e vai destruir grande parte da Terra. Se não agirmos já, será tarde demais. E o sofrimento nas gerações vindouras será espantoso. Já vemos os primeiros sinais neste país, os piores incêndios e os piores furacões que tivemos em nossa história. E é só o começo. Vai implicar uma nova forma de vida. As pessoas se irritam por usar máscaras na pandemia, imagine os tipos de mudanças que teremos que fazer para reduzir as emissões. Depois há o sistema capitalista norte-americano, que criou uma sociedade tão injusta e tão favorável aos ricos que, a não ser que essas questões sejam abordadas, o país continuará piorando 
Paul Auster

Ler importa!

Foi preciso um policial branco asfixiar um negro, para o mundo despertar para o lema “vidas negras importam”. O grito de “não consigo respirar” ecoou em todas as partes. Pena que um analfabeto não grite o mesmo e de seu grito surja um movimento com o lema: “ler importa”. As pessoas não percebem que o analfabeto não respira plenamente, uma vez que, além de comida e oxigênio, o ser humano se alimenta de conhecimento e estes chegam, sobretudo, pela leitura.



A falta de leitura asfixia pessoas e sociedade. Lutar contra o racismo exige luta contra o analfabetismo. Até porque 10 dos nossos 12 milhões de analfabetos são descendentes de escravos. Fala-se que “vidas negras importam” esquecendo-se que a falta de importância às vidas negras decorre em parte do abandono escolar a que os jovens negros são condenados, por serem pobres. O racismo produz analfabetismo entre os negros deixados sem escola, e acirra o racismo estrutural na sociedade.

Ao lado dos esqueletos sociais da escravidão, o analfabetismo é o berço do preconceito, a causa maior da exclusão social e do racismo. A luta contra o racismo conseguiu fazer com que os negros brasileiros já não se sintam inferiores aos brancos, como ocorria até recentemente, mas negros ou brancos sentem-se inferiores quando são analfabetos. Apesar disso, os que, corretamente, lutam contra o racismo com leis que criminalizam este comportamento, não lutam contra o analfabetismo que produz o racismo. Até lutam para que um pequeno número de negros entre na universidade, mas não para que todos os negros saiam do analfabetismo.

“Ler importa” não se refere apenas à chaga do analfabetismo total, mas também à necessidade de abolir o analfabetismo funcional que atinge quase 100 milhões de brasileiros. “Ler importa” não apenas para decifrar o que uma combinação de letras quer dizer em uma palavra, mas também para saber o que as palavras querem dizer combinadas entre elas em textos longos, em livros de literatura e de filosofia. “Ler importa” não apenas para decifrar as letras na bandeira do Brasil, mas também como aquelas palavras chegaram ali, identificar a base filosófica delas, por que os republicanos as escreveram logo depois da proclamação da República - e até hoje, 131 anos depois, ainda não entendemos que “ler importa”.

Apesar de todos os nossos avanços sociais e econômicos, temos em 2020 duas vezes mais adultos analfabetos do que em 1889. Não percebemos que a liberdade de expressão deve significar mais do que liberdade para alguns escreverem o que pensam, mas também a possibilidade de todos lerem o que está escrito. Por mais liberdade que tenha, não é livre a imprensa em um país com 12 milhões de adultos analfabetos plenos e 100 milhões de analfabetos funcionais.

“Ler importa” para todos e para ler tudo.

Recentemente, a proposta de aumentar impostos sobre livros foi rejeitada pelos que compram livros, mas eles não se mobilizaram para que todos pudessem ler; não houve luta contra o imposto infinito que pesa sobre os analfabetos, plenos e funcionais, que não lerão os livros, mesmo que distribuídos gratuitamente. A compra do livro é o primeiro passo, mas sua aquisição só ocorre pela leitura. Houve um movimento no sentido de “livro importa” para quem sabe ler, mas não de “ler importa” para todos.

“Ler importa” porque a leitura não é apenas um direito de cada pessoa, é um motor para o progresso de todos. Sem conhecer a história do Brasil, sem ler as propostas dos candidatos, o eleitor pode ser enganado mais facilmente; sem literatura acessível a todos, fica difícil formar a consciência nacional de um povo. “Ler importa” porque entre dois bons médicos, dois bons cientistas, dois bons engenheiros, aqueles que leem jornais, revistas, literatura, serão melhores que os outros.

É na educação de base que, além de alfabetizar, formam-se leitores. De todas as falhas de nossa educação de base, além de não alfabetizar todos na idade certa, não ensinar matemática e ciências, não auxiliar na prática das artes, não ensinar um ofício a cada jovem, nossas escolas não formam leitores em nosso idioma, e ainda menos em idiomas estrangeiros - porque “ler importa” tanto que é preciso ler em mais de um idioma.

“Vidas negras importam” e “ler importa” também. Por isso, “educação importa”.

O sonho da pátria armada

O deputado federal Eduardo Bolsonaro usou as redes sociais no domingo para decretar que “o tiro também é cultura”. Só faltou completar: em vez de livro, por que não um fuzil? Na postagem, o parlamentar se referiu à visita que fez ao Bope (Batalhão de Operações Especiais) do Distrito Federal, onde teve aula de tiro ao alvo, acompanhado do secretário especial de Cultura do Ministério do Turismo, Mario Frias, e do secretário nacional de incentivo e fomento à cultura, André Porciúncula.

Depois do treinamento, ele e seus companheiros, todos armados de revólver e fuzil, posaram ao lado da imagem de uma caveira, símbolo do batalhão e, por extensão, da cultura como o Zero Três a vê. Filho e pai são defensores do liberou geral, da flexibilização das leis sobre o porte e a posse de arma, e os dois fizeram do tema promessa de campanha. A novidade é o filho aparecer agora com esse disfarce, para dar a impressão de que atirar é um divertimento intelectual.



O pai sempre foi mais direto nas suas declarações, nunca escondeu seus objetivos, nunca disfarçou seu projeto ou sonho. Disse com todas as letras: “Eu quero todo mundo armado”, “Só um povo armado é forte e livre”, “Povo armado jamais será escravizado”.

A propósito, está sendo relançado o clássico “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, sobre uma sociedade distópica em que os livros são proibidos. Mantê-los em casa é considerado crime, e os donos são punidos como criminosos. E a missão dos bombeiros não é apagar incêndios, mas atiçá-los. O 451 do título é a temperatura, em graus Fahrenheit, em que o papel pega fogo e queima.

Taí um livro que, se fossem chegados à leitura, Jair e Eduardo Zero Três deveriam ler e, se possível, entender que se trata de uma crítica ao obscurantismo.

Enquanto isso, a Amazônia e o Pantanal continuam pegando fogo.

No mais, é como se diz em Frei Paulo, terra do Ancelmo, sobre o que vem por aí: “God bless America e... a nós também”.

Pensamento do Dia

 


Aposta de alto risco

O presidente Jair Bolsonaro ontem, nas redes sociais, voltou a apostar todas as fichas na reeleição do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, além de denunciar suposta interferência externa na política norte-americana, sem dizer de quem. Ao mesmo tempo, o mundo aguarda em suspense o resultado do pleito, no qual o democrata Joe Biden é favorito nas pesquisas de opinião. Como escrevo antes da contagem dos votos, vou aguardar o resultado final da apuração; mesmo que, eventualmente, o presidente Trump autoproclame a sua vitória, na festa que organizou na Casa Branca para 400 convidados.

Aqui no Brasil, teríamos o resultado final da eleição, com precisão, no dia de votação, graças à urna eletrônica, à prova de fraudes, nossa melhor jabuticaba política, testada e aprovada. Nos Estados Unidos, com um sistema de votação anacrônico, que leva vários dias, inclusive com voto por correspondência, a apuração é mais complicada. Pode até gerar uma crise institucional, se Trump se declarar eleito e, depois, a contagem dos votos mostrar que o vitorioso é Baden. Como se sabe, o fato de o presidente ser eleito num colégio de delegados dos estados permite, inclusive, que o vitorioso não seja o mais votado nas urnas.

No dia da eleição, a maioria dos chefes de Estado manteve silêncio obsequioso sobre o pleito. Os líderes das democracias ocidentais, porém, torcem pelo democrata Biden, quando nada porque são confrontados pelo republicano Trump em todos os fóruns internacionais, até mesmo na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o pacto de defesa do Ocidente. Entretanto, ninguém pode acusar Bolsonaro de incoerência. Como disse o chanceler Ernesto Araujo, com a atual política externa, o Brasil optou por ser “um pária” no cenário mundial. Sem Trump, porém, essa linha de atuação se tornará insustentável, devido ao isolamento diplomático quase absoluto. Somente os governos de extrema direita, como o de Victor Orban, na Hungria, e os tiranos árabes mais sanguinários restarão como aliados, do Brasil nos fóruns internacionais, se Biden vencer o pleito.

A não ser que Bolsonaro se reposicione. O alinhamento automático com os Estados Unidos, de imediato, não muda o posicionamento do Brasil nas cadeias de comércio mundial, nas quais nosso principal parceiro é a China. A ideia de um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, grande aposta de Araujo e do ministro da Economia, Paulo Guedes, não é exequível a curto prazo. Não era com Trump, muito menos com Biden. No segundo caso, para avançar nessa direção, o Brasil teria que mudar radicalmente sua política interna em relação aos direitos humanos e ao meio ambiente, além do posicionamento nos fóruns internacionais em relação aos mesmos temas.

Um momento de viragem na política norte-americana ilustra uma situação desse tipo: a eleição do presidente Jimmy Carter, que governou de 1977 a 1981. No seu governo, o Departamento de Estado deu uma guinada em relação às ditaduras da América do Sul, todas implantadas com forte apoio norte-americano. Carter pressionou muito o governo do general Ernesto Geisel, por causa das torturas e dos assassinatos de oposicionistas nos quartéis, o que ajudou a oposição a vencer as eleições de 1978 e resultou na anistia de 1979. Como naquela ocasião, a vitória de Biden pode ser um momento de viragem na política brasileira. Bolsonaro tem dificuldades para aceitar essa mudança, mas em torno dele esse assunto está em pauta, haja vista as declarações do vice-presidente Hamilton Mourão, que manteve distância regulamentar das eleições norte-americanas.

Um outro fator recomenda mais cautela de Bolsonaro quanto ao resultado do pleito: a nossa situação econômica. O Palácio do Planalto se prepara para uma segunda onda da pandemia de corona vírus da pior forma possível, ao fomenta dúvidas quanto a eficácia e a necessidade das vacinas contra o COVID-19, o que é péssimo. Também empurra as reformas com a barriga para não contrariar interesses corporativos e empresariais. A base parlamentar do governo retarda a aprovação do Orçamento da União para não ter que anunciar cortes de despesas antes das eleições. O ministro da Economia, Paulo Guedes, sonha com a prorrogação da “economia de guerra” para 2021, com o propósito de agradar o presidente Bolsonaro e criar o Renda Cidadã. É uma aposta de jogador compulsivo, que perde todos os bens e a família, acreditando na sorte grande.

O governo não tem prioridades, se movimenta de forma errática. A dívida publica brasileira, que já se aproxima de 100% do PIB, está sendo rolada a prazo de dois anos, com juros acima de 4,5%, o que é muito perigoso. Se a estratégia do governo for prorrogar a “economia de guerra”” por mais seis meses, a inflação vai disparar e a dívida pública crescerá mais ainda, vertiginosamente. Ontem, houve uma reunião dos governadores com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para discutir uma estratégia de vacinação contra a Covid-19, maneira de evitar uma segunda onda da pandemia no Brasil e a prorrogação da economia de guerra”. Quem deveria estar liderando isso é o Ministério da Saúde.

Marcha da insensatez

Hoje se tem o país com recordes mundiais de morte por Covid, uma política econômica errática que assusta o mercado, o avanço das organizações criminosas por todos os poros da República, sem nenhum referencial racional para impedir o desmanche

A mentira contra a vida

Pós-verdade foi a palavra do ano de 2016. Como manda a tradição, o dicionário “Oxford” anunciou a escolha em dezembro. Um mês antes, Donald Trump havia sido eleito o 45º presidente dos Estados Unidos.

Na era da pós-verdade, os fatos importam pouco. O que conta são as versões, que podem ser fabricadas para confirmar crenças, preconceitos ou visões de mundo.

Trump usou uma mentira deslavada para se lançar na política. Ele ajudou a propagar a falsa tese de que Barack Obama teria nascido no Quênia. Isso o tornou popular entre os radicais do Partido Republicano, que não se conformavam com a presença de um negro na Casa Branca.

Na campanha, o magnata continuou a espalhar lorotas. Ele inventou que o crime não parava de crescer (as estatísticas mostravam o contrário), que os mexicanos estavam invadindo os EUA (havia mais gente saindo que entrando no país) e que Obama teria fundado o Estado Islâmico (essa dispensa comentários).




Ao assumir o poder, Trump transformou o embuste em arma cotidiana. Em julho, o jornal “The Washington Post” informou que ele já havia divulgado 20 mil informações falsas ou distorcidas.

Como todo mitômano, o republicano se apresenta como portador da verdade. Quem ousa contestá-lo é acusado de produzir fake news. Assim ele mina a confiança na ciência, na imprensa e nas universidades.

A pandemia ensinou que a indústria da pós-verdade, alimentada por populistas como Trump, pode provocar danos ainda maiores que a corrosão da democracia. “Mentiras e desinformação, conspiração e ódio não prejudicam apenas o debate democrático, mas também a luta contra o coronavírus”, afirmou na semana passada a chanceler alemã Angela Merkel.

A conservadora fez o alerta após ser vaiada por deputados do partido de extrema direita AfD, que se opõe às medidas de combate à Covid. “Não é apenas o debate democrático que depende do nosso compromisso com os fatos e a informação. As vidas humanas dependem disso também”, prosseguiu Merkel.

A frase ajuda a explicar o que está em jogo na eleição americana de 2020.

Um governo que atua contra si mesmo

Em uma dinâmica normal, o governo atua politicamente para que o Congresso aprove as medidas de seu interesse. Esse movimento de coordenação dos partidos da base aliada é ainda mais lógico em relação àquelas medidas que, mais do que mera conveniência política, asseguram a governabilidade. No entanto, não se observa essa comezinha lógica na atuação do governo de Jair Bolsonaro. Os partidos da base aliada do governo estão obstruindo a pauta de votação da Câmara dos Deputados, o que impede o andamento de temas que afetam diretamente o governo federal.

Em entrevista no dia 27, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), pediu aos partidos da base do governo que sejam responsáveis e acabem com a obstrução. “Espero que a responsabilidade prevaleça. Se o governo não tem interesse nestas medidas provisórias, eu não tenho o que fazer. Eu pauto, a base obstrui e eu cancelo a sessão”, disse Rodrigo Maia.


A obstrução feita pelos partidos da base aliada tem obviamente consequências no calendário das votações, com graves efeitos sobre o ano que vem. Um dos temas mais urgentes, que condicionam o andamento de vários assuntos, é a PEC Emergencial, integrante de um pacote de três propostas apresentadas pelo próprio governo federal no fim do ano passado, no chamado Plano Mais Brasil. “Sem a PEC Emergencial, vai ter muita dificuldade de aprovar o Orçamento”, advertiu o presidente da Câmara.

Em relação ao Orçamento de 2021, o Congresso tem de votar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). Nenhuma foi aprovada ainda. Sem a aprovação da LDO até o fim do ano, o governo não terá base legal para realizar gastos discricionários em 2021. A LDO prevê, por exemplo, a possibilidade de o governo executar, de forma provisória, a duodécima parte das despesas, em caso de não aprovação da LOA. Ou seja, sem a LDO, o governo enfrentaria uma brutal paralisia, a afetar até mesmo as despesas obrigatórias.

Em relação à LOA, há previsões de que sua votação ocorra apenas em março de 2021, o que seria prejudicial em primeiro lugar para o próprio governo. Já houve vezes em que a LOA não foi aprovada até quase meados do ano. Absolutamente inusitada, a novidade é a contribuição do próprio governo para o atraso.

Além de prejudicar o funcionamento do poder público e dificultar a saída da crise social e econômica, a obstrução das votações atinge também a aprovação das medidas provisórias – que, em tese, deveriam interessar ao Palácio do Planalto, autor das medidas. “Cabe à base avançar com as medidas provisórias pelo menos”, lembrou o presidente da Câmara.

Diante dessa estranha imobilidade, surgem críticas contra o Congresso, como se os parlamentares estivessem dificultando o andamento de temas politicamente sensíveis; por exemplo, as privatizações. Na entrevista do dia 27, Rodrigo Maia mostrou que falta fundamento a essas críticas. “Quem obstrui a pauta é a base do governo”, disse.

A ratificar a disfuncionalidade da atual situação, chama a atenção o motivo pelo qual a base aliada do governo vem obstruindo as votações do plenário da Câmara. O objetivo é colocar na presidência da Comissão Mista de Orçamento (CMO) um nome alinhado ao deputado Arthur Lira (AL), líder do PP na Câmara e um dos nomes fortes do Centrão. Segundo acordo feito em fevereiro entre os partidos da base, o presidente da CMO neste ano seria o deputado Elmar Nascimento (DEM-BA). Além de obstruir a pauta, o modo de agir dos partidos do Centrão traz dificuldades para o funcionamento da própria CMO. “Se o acordo não vai ser cumprido, difícil a CMO funcionar”, reconheceu Rodrigo Maia.

Ao longo dos últimos dois anos, o Congresso foi alvo de muitos ataques do bolsonarismo. Nessas campanhas, Rodrigo Maia foi frequentemente apresentado como o grande coordenador do Centrão, a dificultar o andamento das reformas. Não há dúvida de que o Legislativo merece várias críticas. Mas é de justiça reconhecer que Jair Bolsonaro tem conseguido a proeza de fortalecer o que há de pior e mais disfuncional no Congresso.

Por onde anda o humor?

Se há hoje um insumo escasso (ou mesmo ausente) na vida brasileira, sobretudo na política, não há dúvida de que é o humor. Nem sempre foi assim. Crises, de variados tamanhos, nunca faltaram ao país, mas o humor as permeava, mesmo nos seus piores momentos. É sua missão moral, física e metafísica. Não importa a ideologia, todos os que adentram a vida pública se expõem, gostando ou não, à Sua Excelência, o Humor. Uma caricatura vale mais que um editorial e diz mais da realidade que um tratado sociológico. Tem a síntese e a contundência de um poema gráfico. E o detalhe: não há humor a favor. É a mais ferina ferramenta crítica que Deus inseriu na Criação.

Todos gostam de rir… dos outros. Só o sábio ri de si mesmo. Mas sabedoria e política raramente se encontram.

Por isso, quando o tempo fecha – isto é, quando a democracia faz as malas e sai de cena -, os primeiros a entrar em cana são os humoristas. Vamos aqui falar de um deles.

Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly (1895-1971), o Barão de Itararé, pontificou na imprensa dos anos 20 aos anos 60. Não obstante sua longevidade, é nome esquecido. Gaúcho de Rio Grande, iniciou-se no âmbito regional, mas, com a ocupação gaúcha do Rio de Janeiro, consolidada após a Revolução de 30, veio para a então capital federal.

Veio, porém, na contramão de seus conterrâneos getulistas, que o perseguiriam – e o levariam mais de uma vez à prisão.



Criou um jornal de humor que, já no título, parodiava outro; havia “A Manhã”, do jornalista e polemista Mário Rodrigues (pai do Nélson Rodrigues), e o Barão criou “A Manha”, que geraria o “Almanhaque”, hoje preciosidade de bibliófilos.

Em pleno Estado Novo, “A Manha” publicou, na primeira página, foto de um bebê gorducho pelado, com a legenda: “GG quando BB”. GG era o apelido de Getúlio, mas ditaduras não gostam de intimidades. A polícia invadiu o escritório do Barão e deu-lhe uma surra. Ele então colocou uma placa na porta: “Entre sem bater”.

Inicialmente, assinava Apporely, abreviação de seu extenso nome. Mas acabou chegando ao pseudônimo que o consagrou a partir da conjunção de dois acontecimentos. O primeiro, a anistia à família imperial, no governo Epitácio Pessoa, anos 20.

Descendentes dos antigos nobres do Império, que escondiam sua origem, decidiram exibi-la. Já não havia riscos e tornou-se chique, fonte de prestígio. Apareceram, como era de se prever, os falsos nobres e os barões de araque, como se dizia.

Mais adiante, na revolução de 30, aguardava-se o embate sangrento – o início de uma guerra civil sem precedentes – entre as forças revolucionárias de Getúlio Vargas e as tropas federais, aliadas do presidente Washington Luiz. O confronto se daria no município paranaense de Itararé. Mas acabou não acontecendo. Houve acordo.

E o termo Itararé – “a batalha que não houve” – associou-se a algo que inexistiu. Dizia-se: “A festa do fulano? Foi uma festa de Itararé, uma festa de nada”. Surge então o barão inexistente: o Barão de Itararé, cujo brasão, de uma antinobreza total, era um prato, com um frango assado e talheres cruzados.


Após a Intentona Comunista, de 1935, o Barão, que já estivera algumas vezes na prisão, para lá voltou. Ele e um imenso contingente de artistas, intelectuais e ativistas. A pretexto do acontecido, o governo Vargas, como preâmbulo do Estado Novo, que viria dois anos depois, iniciou uma série de prisões por todo o país.

Entre outros, lá estava o escritor alagoano Graciliano Ramos, ainda desconhecido. Sujeito seco e sisudo, de sorriso escasso, não resistiu ao Barão. E o incluiu em suas “Memórias do Cárcere” (recém-reeditadas pela Editora Record). No ambiente depressivo da prisão, a chegada do Barão (recorda Graciliano) alegrou a todos.

Ele criou a “Rádio Libertadora”, com uma “programação em grade”, narrada de dentro da cela. E não apenas fez Graciliano rir, como levar o riso às “Memórias”, com a “Teoria das Duas Hipóteses”.

Ei-la, como Graciliano a recordou:

“Apporely sustentava que tudo ia muito bem. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida.

Ali, onde vivíamos, Apporely afirmava, utilizando o seu método, que não havia motivo para receio. Que nos poderia acontecer?

Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo.

Se não nos processássemos, bem: à falta de provas, cedo ou tarde, nos mandariam embora.

Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor esperaríamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com pena leve, muito bem: descansaríamos algum tempo, sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua.

Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados ou não. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí.”

O Barão tinha suas vítimas prediletas. Uma delas, Plínio Salgado, o líder do Integralismo, cujo lema era “Deus, Pátria e Família”. Por um lapso auditivo, disse ele, quase se filiou àquela corrente ideológica: “Entendi Adeus, Pátria e Família”.

O mal de certos políticos não é a falta de persistência. É a persistência na falta
Barão de Itaraé

Outro de seus alvos era o governador de São Paulo, Adhemar de Barros, um dos ícones do fisiologismo político de então, cujos aliados, orgulhosos, proclamavam: “Rouba, mas faz”.

Adhemar candidatou-se à Presidência da República em 1960. E um de seus aliados foi pedir ao Barão uma quadrinha para uso na campanha. E o Barão saiu-se com esta:


“Deus fez o homem do barro/do barro bom e batuta/mas esse Adhemar de Barros/que barro filho da puta!”.

A contribuição não foi aceita.

O senso de improviso é um dom dos humoristas. O repórter perguntou ao Barão como ele interpretava a Teoria da Relatividade, de Albert Einstein. E ele: “O quebra-noz é bom pra nós – e ruim pra noz”. Sua definição de anistia: “ato pelo qual o governo perdoa generosamente as injustiças e crimes que ele mesmo cometeu”. E de orçamento: “conta que o governo faz para saber onde aplicar um dinheiro que ele já gastou”.

E gostava de inverter ditos populares: “de onde menos se espera… daí é que não sai nada”. Ou então” “Tempo é dinheiro? Paguemos nossas dívidas com o tempo”.

Foi candidato a vereador pelo Rio – e se elegeu. Seu compromisso de campanha: “Farei na vida pública tudo o que faço na privada”. O Barão faz falta, sobretudo num momento como este.

Ruy Fabiano