A cena é um extrato do que aconteceria entre portas nos tribunais. Com as audiências virtuais, vítima, algoz, promotor, juiz e advogado estão em um mesmo quadro. E as imagens nos fazem testemunhas do que antes seria descrito como um lamento das vítimas sobre os maus tratos do Judiciário. No extrato que assisti, até mesmo sua posição na tela é de desamparo—a única mulher, abaixo de quatro homens. Um deles a interpela com a voz do patriarca que tem o poder de mando absoluto: exibe fotos, descreve suas poses e posições como “ginecológicas”, altera a voz e a repreende nas lágrimas. Descreve sua angústia como “choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”, insinua ser Mariana uma mulher vulgar. Ele é o advogado do acusado.
Mariana implora ao representante máximo da decência—ou do justo, se quiserem—na cena: “Eu estou implorando, Excelentíssimo”, diz ela, “eu estou implorando por respeito”.
O juiz pergunta se Mariana quer beber água para se recompor. O que fez o juiz imaginar que a vítima tinha sede? Talvez, um trejeito dos homens que ignoram a verdadeira dor de quem sofre.
Os quatro homens da cena são matéria idêntica em confronto àquela mulher tão jovem: eles estão ali para proteger o algoz, mas também em aliança silenciosa com outros homens. São homens de poder e mando, brancos no corpo e embranquecidos nos valores, com direito à voz de mando e a quem a espoliação dos corpos das mulheres e das meninas se fez como regra naturalizada da vida.
Ao que se sabe, e aqui repito as evidências transcritas em reportagens sobre o caso, há evidências de materialidade de estupro, algumas delas até mesmo inoportunas, como o fato de Mariana ser virgem (laudo pericial indica que o hímen foi rompido na ocasião). Importa repetir que a verdade da vítima se submeteu aos testes de veridição da polícia e do Judiciário —mas nem assim aqueles homens aquietaram-se diante da dor da vítima.
Era preciso aniquilá-la em qualquer tentativa de atestar a culpa de um dos homens tão parecidos a qualquer um deles presente à cena. Houve uma divisão de tarefas, talvez silenciosa, mas tácita entre eles. É assim que se atualiza o patriarcado. Ao advogado coube a brutalidade da agressão verbal; ao algoz, o silêncio foi oportuno a um rosto escondido pela máscara. O promotor e o juiz foram os arquitetos do conluio de “estupro culposo”. Há palavras que não se reinventam.
Esse é o caso de estupro. Para os que têm dúvidas, explico: estupro é um crime de violência sexual. Em geral, de homens contra mulheres, meninas ou crianças. A vítima dos homens é sempre uma pessoa vulnerável, seja porque tem medo, porque é dependente ou porque se encontra em situação fragilizada. Não há “estupro culposo”, um neologismo de homens no poder que se arvoram inaugurar palavras e interpretações jurídicas para proteger outros iguais a si mesmos.
Na fantasia patriarcal, o estupro seria “culposo” quando o agressor não teria a intenção de violentar sexualmente sua vítima ou quando ignoraria a vulnerabilidade da vítima. Para o promotor, o algoz estuprou a vítima, mas foi incapaz de discernir que ela não consentiu. Descreveu a violência como “estupro culposo”, tese que o juiz acolheu para inocentar o acusado por “falta de provas”.
Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, descreveu as cenas do interrogatório como “estarrecedoras”, extratos de “tortura e humilhação”. Mariana expressou seu estarrecimento, se dirigindo ao juiz e perguntando “o que é isso?”.
Ela estava atordoada pelo espetáculo de violência naturalizada pelos representantes do poder. É como se ela sentisse que algo de muito equivocado estivesse em curso na cena. Em uma retórica desesperada das vítimas comparou-se a outros ainda mais miseráveis expostos ao poder: “nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus”, disse ela.
Tristemente, Mariana estava errada — ela era, sim, a acusada para aquele tribunal de homens. Como ousava nomear um deles de estupro, ainda mais publicamente? Sua ousadia seria silenciada pela sentença de inocência do algoz sob a chancela de “estupro culposo”.
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