terça-feira, 20 de outubro de 2020

Pensamento do Dia

 


A pandemia vai começar

Quase 20 milhões de brasileiros foram salvos de cair na pobreza neste ano com o auxílio emergencial. Outros 10 milhões saíram temporariamente dela em 2020 por conta do benefício. São algo como 30 milhões de pessoas em risco com o seu fim em 31 de dezembro. O auxílio segurou os efeitos devastadores que a pandemia poderia ter no sustento das famílias mais pobres: com o seu fim abrupto, parte desses efeitos terão sido meramente adiados.

Os dados do parágrafo anterior foram calculados para o mês de julho pelo pesquisador Rogério Barbosa, do Centro de Estudos da Metrópole. Ele estimou também haver uma taxa de desemprego oculto de quase 40% entre os mais pobres. Esse número não é captado nas formulações tradicionais (taxa de desemprego aberta), porque inclui os trabalhadores que gostariam de um emprego, mas não procuraram um no isolamento. A partir de 1.º de janeiro, uma multidão sem renda deve passar a procurar ativamente emprego, o que pode provocar uma alta expressiva nos números oficiais de desocupação.

Em 2021, um terço dos brasileiros poderá estar vivendo com menos de meio salário mínimo – projeta Marcelo Neri, da FGV Social. Barbosa, Letícia Bartholo, Monica de Bolle e Pedro Souza estimaram proporção semelhante, mas para o número de cidadãos com renda inferior a um terço do mínimo.

Por isso, é extremamente preocupante a abordagem conformista externada pelo ministro da Economia em live da XP Investimentos, na sexta-feira. Diante das dificuldades de financiar um programa permanente para substituir o auxílio emergencial, afirmou que “é melhor voltar ao Bolsa Família do que fazer um movimento louco e insustentável”.

É preciso ficar claro: o Bolsa Família já estava em crise antes da crise. Apesar da retomada do PIB, havia 3 milhões de pessoas habilitadas para o programa em uma espécie de fila de espera por falta de orçamento. Se a fila fosse física, iria de Brasília a São Paulo. Para além disso, o programa convivia com valores muito modestos tanto no tocante aos valores pagos quanto aos dos critérios para receber o benefício.




Vejamos: uma mãe com renda de R$ 300 por mês vivendo com um filho recebeu R$ 1.200 por mês no auxílio emergencial. No Bolsa Família, seriam R$ 41 mensais. Se a renda dela fosse um pouco maior, de R$ 400, o valor recebido no Bolsa seria zero: a família não seria pobre o suficiente para receber qualquer valor. Frise-se que para receber o auxílio emergencial essa família de duas pessoas poderia ter renda de até R$ 1.000.

É evidente que um benefício generoso como o auxílio emergencial é atualmente impagável, o que não quer dizer que os valores envolvidos no Bolsa Família não sejam draconianos. Como Rogério Barbosa mostra, os números do Bolsa estão há anos muito atrás da inflação (o pico do valor médio foi em 2014, e o da linha de pobreza em 2010).

Existem muitas possibilidades de avançar. Uma em voga nas últimas semanas é a proposta do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP), que propõe fazer mais com a mesma quantidade de recursos empregadas hoje em programas como o abono salarial. No entanto, exigiria que o presidente da República voltasse atrás quanto a sua negativa para a reforma do abono.

Uma possibilidade, mais progressiva do ponto de vista da distribuição de renda, foi a levantada na última semana pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Gastos com benefícios de servidores e militares poderiam ser suspensos para fortalecer a política social. Exigiria que o presidente revisse o posicionamento de que os atuais servidores não devem ser afetados por mudanças.

Há ainda um conjunto de propostas no Congresso com interpretações menos conservadoras sobre o teto de gastos, admitindo a possibilidade de que a despesa com um programa como o Bolsa Família possa ultrapassar o teto – compensado por ganhos de arrecadação sobre os mais ricos.

É intuitivo que os padrões de distanciamento social nos próximos meses vão ditar a magnitude da alta do desemprego e da pobreza com o fim do auxílio. Por ora, o aumento parece inevitável: trabalhos como o de ambulantes não se adaptam ao Zoom.

Dez milhões de pessoas deixaram de trabalhar em 2020 e é improvável que com o encerramento dos programas temporários todas voltem rapidamente aos postos anteriores.

Se o auxílio emergencial pode ter sido sobredimensionado para uma crise econômica que até agora foi menos severa do que poderia ter sido, o fato é que somente “voltar ao Bolsa Família” pode representar um choque imenso. Em 2020, com o auxílio emergencial, o Brasil observou mínimas históricas na desigualdade e na pobreza extrema. A partir de 2021, pode observar um movimento rápido e expressivo no sentido contrário: números de pobreza e de desigualdade como não víamos há anos ou mesmo décadas. Um movimento insustentável.

Fogo, grileiros e gado ameaçam terra de indígenas isolados que liderou desmatamento

Terra indígena (TI) mais desmatada da Amazônia em 2019, a Ituna-Itatá concentra este ano mais de 600 focos de calor detectados pelo satélite S-NPP, monitorado pelo Inpe. Mais da metade desses focos foram registrados na primeira quinzena de outubro, em um processo de ocupação que envolve ainda esquemas de grilagem, criação e "lavagem" de gado.

O território por onde o fogo avança vivencia uma investida sem precedentes de invasores não indígenas que pressionam toda a região do Médio Xingu, no Pará, afetando também outras terras indígenas nas proximidades, como as TIs Trincheira Bacajá, Cachoeira Seca e Apyterewa. Diferentemente desses outros territórios, a Ituna-Itatá abriga indígenas isolados, sobre os quais pouco se sabe, mas cuja presença foi descrita em dois pareceres técnicos da Fundação Nacional do Índio (Funai).

A Ituna-Itatá é uma terra indígena de 1.420 km² em fase de estudo e com restrição de uso, estágio que impede o ingresso e a permanência de pessoas sem autorização da Funai. No entanto, 94% dessa terra pública foi recentemente registrada no Cadastro Ambiental Rural (CAR) em nome de "proprietários" autodeclarados, segundo um levantamento realizado pelo Greenpeace.

O trânsito de forasteiros e a crescente pressão sobre o território faz com que esse grupo de indígenas precise se deslocar, afastando-se dos conflitos e também do contato.



"Os indígenas da região do Xingu, de vez em quando, trazem notícias sobre os grupos isolados que habitam a área. Em 2012, 2014, os relatos indicavam que estavam mais ao norte. Em 2016, os Asurini e os Araweté começam a relatar vestígios frequentes desses isolados um pouco mais ao sul da terra indígena. Esse conhecimento indígena sobre as dinâmicas territoriais desses grupos deve pautar as ações de monitoramento e fiscalização do Estado brasileiro", considera Angela Kaxuyana, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

Delimitada em portaria de 2011, como condicionante da hidrelétrica de Belo Monte, a TI fica localizada entre os municípios de Altamira, que teve um acréscimo substancial da população desde o início das obras da barragem, e Senador José Porfírio, que pode ser impactado pela instalação da maior mina de exploração de ouro a céu aberto da América Latina, empreendimento da empresa canadense Belo Sun.

O processo de ocupação da Ituna-Itatá por não indígenas começou a avançar em 2014, ainda no governo Dilma Rousseff. A partir de 2016, ano do início da operação de Belo Monte e do governo Michel Temer, avançaram os registros do CAR dentro da TI e também os índices de desmatamento.

"A pressão ali aumentou com o término das obras de Belo Monte, acho que por dois motivos: primeiro, pela disponibilidade de mão de obra oriunda do período de construção da usina; e segundo, porque os empresários da região, que estavam lucrando com atividades ligadas à obra, também acabaram ficando sem essa renda, voltando seus investimentos para atividades ilegais", avalia um ex-servidor público que atuou na região e prefere não ser identificado.

Desde 2018, o Observatório De Olho no Xingu, da Rede Xingu +, monitora o desmatamento na Ituna-Itatá pelo sistema Sirad X. Entre janeiro de 2018 e setembro de 2020, foram detectados mais de 150 km² desmatados. Em menos de três anos, o desmatamento atingiu cerca de 11% do território.

Pelos dados do Prodes/Inpe, o desmatamento na TI se intensificou em 2017/2018 e explodiu em 2019, já no governo Jair Bolsonaro, apresentando um aumento de mais de 750%, em relação ao ano anterior. O período viu o desparecimento de 120 km² de cobertura florestal.

Com a realização de operações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), as taxas de desmatamento caíram no início deste ano, chegando a quase zero, em alguns meses. Agora, entre agosto e setembro, foi possível identificar pelo sistema Sirad X novos pontos de desmatamento, ainda pequenos. Mas, como a tendência de retirada de floresta na TI costuma crescer no final do ano - foi assim em 2018 e 2019 -, o reaparecimento de áreas desmatadas serve de alerta.

"Está havendo novos desmatamentos na região. Tem a abertura ainda de pequenas áreas, bem em um ramal que sai de um terreno na Ituna-Itatá e entra na terra indígena vizinha, a Koatinemo. No ano passado, a gente divulgou a abertura desse ramal, e, agora, estou vendo na imagem que os novos desmatamentos estão beirando esse ramal", relata Thaise Rodrigues, analista de geoprocessamento do Observatório De Olho no Xingu. Além da TI Koatinemo, as pressões na Ituna-Itatá avançam também sobre a Trincheira Bacajá.

"Estão ocorrendo queimadas na Ituna-Itatá, tanto em propriedades que já haviam sido desmatadas há mais de um ano, acredito que para fazer uma limpeza do terreno, quanto em áreas que foram desmatadas no início do ano, acredito que para consolidar [a ocupação], porque são áreas em que ainda tinha sobrado muita vegetação, e agora, na imagem de setembro, eu estou vendo que colocaram fogo", explica a analista da Rede Xingu+.

Queimadas e desmatamento dentro da Ituna-Itatá estão a reboque principalmente da especulação pela posse da terra e da invasão de atividades como a pecuária. Os pontos atuais de fogo na terra dos indígenas isolados muitas vezes coincidem com áreas desmatadas.
"Tem uma guerra ali pela regularização daqueles lotes, daquelas áreas invadidas. Como é autodeclaratório, a gente vê sobreposição de CAR, uma briga de facções que fazem vários cadastros, disputando aquele território", diz o ex-servidor público.

O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um registro eletrônico da situação ambiental de imóveis rurais no país. Criado no âmbito do novo Código Florestal, em 2012, deveria servir para a regularização ambiental dessas propriedades, mas, pelo seu caráter autodeclaratório, por vezes é usado como instrumento para tentar validar a ocupação irregular de terras públicas.

Um levantamento feito pela Procuradoria-Geral da República (PGR), divulgado em junho, identificou quase 10 mil registros no CAR sobrepostos a terras indígenas em diferentes fases de regularização ou com restrição de uso, em todo o país. O estado com mais casos do tipo é o Pará, com 2.325 registros, sendo 1.290 "propriedades" em TIs em processo de regularização e 1.035 em TIs com restrição de uso.

Na Ituna-Itatá, até outubro, foram feitos 229 cadastros sobrepostos aos seus limites. Desses registros no CAR, 35,8% correspondem a áreas acima de mil hectares, o que indica que mais de um terço das sobreposições de terra são feitas por grandes proprietários e grileiros interessados na especulação de grandes terrenos, e não por pequenos posseiros.

A Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) cancelou cadastros ambientais rurais sobrepostos à Terra Indígena Apyterewa recentemente. Questionado sobre a possibilidade de cancelamento de cadastros na Ituna-Itatá, Rodolpho Bastos, secretário adjunto de regularidade ambiental da Semas, informou que as ações de análise do CAR em TIs feitas pelo órgão são voltadas para terras indígenas regularizadas, o que não incluiria a Ituna-Itatá, ainda em fase de estudo. Bastos ressaltou que o CAR é um instrumento de regularização ambiental, e que a regularização fundiária de terras indígenas caberia à Funai e ao governo federal.

O ciclo da grilagem na Ituna-Itatá se completa com a compra ou arrendamento de terra ocupada e desmatada para fazer pasto e criar gado. Em artigo publicado em junho deste ano, analistas ambientais que atuaram na região pelo Ibama citam que foram encontradas cerca de 2 mil cabeças de gado dentro da terra indígena.

"O rebanho é comercializado por meio de guias de trânsito animal falsas ou enganosas, uma vez que é proibido aos frigoríficos adquirirem animais criados em áreas não autorizadas, o que inclui as áreas protegidas. As falsas declarações de origem do rebanho não oferecem garantias sobre o devido controle sanitário, o que, além de contribuir para o desmatamento, pode colocar em risco a saúde da população", explicam os autores do artigo, entre os quais está Hugo Loss, ex-coordenador de operações de fiscalização do Ibama exonerado após realizar megaoperação contra crimes ambientais na região.

Para o Greenpeace, trata-se de prática de "lavagem de gado". A ONG, em parceria com a Repórter Brasil, identificou "propriedades" na Ituna-Itatá registradas no CAR em nome de pessoas que vendem gado para outros pecuaristas que, por sua vez, comercializam os animais com grandes frigoríficos, como a Marfrig Global Foods, a Frigol e a JBS.

Em fevereiro, Edward Luz, conhecido como o "antropólogo dos ruralistas", tentou impedir uma ação de retirada de gado realizada pelo Ibama na Ituna-Itatá. Ele dizia, em um vídeo-selfie, que estava fazendo cumprir ordem do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para que nenhum patrimônio da população fosse destruído. Luz acabou detido, mas foi solto horas depois.

Segundo o presidente da Associação dos Produtores Rurais e Agroindustrial do Vale do Bacajaí (Asprub), Pedro Ferreira do Nascimento, conhecido como Pedro Pintado, a Ituna-Itatá passou por cima de parte da Gleba Bacajaí, de propriedade do estado do Pará. Ele alega que a Asprub defende os produtores rurais que estavam na gleba antes de 2011, mas condena a presença de invasores posteriores à criação da TI.

"Tem parte da intenção da 'reserva' que os órgãos federais e os órgãos estaduais erraram e muito. Mas, em 80% da intenção de reserva, os órgãos federais fizeram a coisa certa, e quem tá lá dentro cometendo crimes, tá errado. Por isso que eu fui em Brasília pedir pra tirar 20%, recuar um pouco pra salvar pessoas que tinham direito lá dentro, o que ia evitar o esbulho que tá acontecendo agora", defende Pedro Pintado.

Há ações de políticos e ruralistas que questionam a própria existência da Ituna-Itatá. Em projeto de decreto legislativo de março deste ano, o senador Zequinha Marinho (PSC-PA), que já foi vice-governador do Pará, tenta sustar portarias que restringem ingresso, locomoção e permanência de pessoas estranhas aos quadros da Funai na área da TI. No texto do projeto, o senador alega que "não há tribos isoladas na região" e que "sequer há um povo indígena ali habitando". A matéria está na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal.

O InfoAmazonia questionou a Funai sobre o que tem sido feito pela Fundação para garantir a restrição de uso da Ituna-Itatá e proteger os indígenas isolados que lá estão. Em nota, o órgão informou que tem feito ações de proteção territorial na área em articulação com o Ibama, a Polícia Federal, o Centro Gestor e Operacional Ituna-Itatá do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam) e a Secretaria de Segurança Pública do Pará. A nota diz ainda que a Funai está planejando uma série de expedições terrestres e sobrevoos no local, a fim de avançar na etapa de localização geográfica referente ao registro de povo indígena isolado na área.

Ao Ministério da Defesa, perguntamos por que não houve atuação preventiva da Operação Verde Brasil para evitar as queimadas na Terra Indígena Ituna-Itatá, considerando que, pelo ciclo do desmatamento, retiradas da floresta, como a registrada ano passado, costumam ser seguidas pelo fogo; e se haveria equipes da Operação atuando na TI para conter os focos de incêndio. Não houve resposta.

Tudo é perigoso

A música Divino, Maravilhoso, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, veio à lembrança por causa da morte do jovem Caio Gomes Soares, atingido por uma bala perdida após levantar da cama para pegar um suco, por volta das 7h de ontem, no Catumbi, Rio de Janeiro. Faleceu nos braços da irmã, sem tempo de receber socorro. É uma canção de 1968, que faz parte do antológico disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circenses, do qual participaram também os Mutantes, Tom Zé, Nara Leão e Gal Costa, que interpretou a canção da forma explosiva que viria a ser sua marca registrada.

“Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divino maravilhoso/ Atenção para o refrão/ É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte”. Atenção para a estrofe e para o refrão: a música fala do perigo ao dobrar uma esquina, do que pode cair do alto de uma janela, do cuidado ao pisar no asfalto e do sangue no chão. Não havia naquela época o perigo de levar um tiro por ir até a geladeira, para tomar um refrigerante, em certas localidades do Rio de Janeiro.

Um tiroteio entre traficantes e policiais no Morro da Coroa teria sido a origem do disparo que matou o jovem Caio, num bairro tradicional do Rio de Janeiro, muito próximo do centro histórico da cidade, um dos cenários de Memórias Póstumas de Brás Cubas. A obra de Machado de Assis inaugurou o nosso realismo, ao retratar a escravidão, as classes sociais, o cientificismo e o positivismo de sua época. Entre o Rio Comprido, Santa Teresa e o Estácio, hoje, o Catumbi não é mais um bairro abastado. É um território em frequente disputa entre traficantes e milicianos, principalmente por causa da proximidade do Morro de São Carlos, onde existe uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Polícia Militar fluminense, e o túnel Catumbi-Laranjeiras, de acesso à Zona Sul carioca, que o transformou num bairro de passagem.



Numa estatística macabra, desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o número de homicídios no Brasil não para de subir. Estamos perdendo novamente a batalha para a violência, resultado de uma política de segurança pública que facilita a venda de armas, estimula a justiça pelas próprias mãos e tolera a formação de milícias, fenômeno que está sendo exportado do Rio de Janeiro para os demais estados do país, sem que se tenha muita noção do perigo que isso representa.

Pesquisa divulgada neste fim de semana sobre a expansão de organizações criminosas no Rio revela que milícia e tráfico estão presentes em 96 dos 163 bairros da cidade, nos quais vivem 3,76 milhões de pessoas, do total de 6.747.815 habitantes da capital fluminense: 2,1 milhões de pessoas (33% da população) vivem em área sob o comando de milícias; 1,1 milhão de pessoas (18,2% da população) vivem em área dominada pelo Comando Vermelho; 337,2 mil pessoas (5,1% da população) vivem em área dominada pelo Terceiro Comando; 48,2 mil pessoas (0,7% da população) vivem em área dominada pelo Amigos dos Amigos.

Enquanto isso…

Em Brasília, a cúpula do Senado pressiona o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) para que se licencie do cargo, antes do julgamento da liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, que o suspendeu do mandato, previsto para amanhã, no plenário da Corte. O parlamentar foi flagrado pela Polícia Federal (PF) tentando esconder R$ 33,1 mil na cueca, durante operação de busca e apreensão em sua residência. Agora, alega que o dinheiro era destinado ao pagamento de funcionários e tenta justificar a sua posse, argumento que não cola na opinião pública, mas é a linha de defesa de seus advogados. Os senadores do grupo Muda Senado querem cassar seu mandado no Conselho de Ética, mas o presidente do órgão, senador Jayme Campos (DEM-MT), seu colega de partido, se recusa a convocar uma reunião do colegiado — prefere sugerir que Chico se licencie logo.

Por sua vez, Bolsonaro resolveu reiniciar sua campanha negacionista contra a obrigatoriedade do uso da vacina contra a covid-19: “Tem uma lei de 1975 que diz que cabe ao Ministério da Saúde o Programa Nacional de Imunização, ali incluídas possíveis vacinas obrigatórias. A vacina contra a covid — como cabe ao Ministério da Saúde definir esta questão — não será obrigatória”, disse, em cerimônia no Palácio do Planalto, para apresentação de pesquisa sobre um medicamento. Completou: “Qualquer vacina precisa ter comprovação científica e ser aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”. Foi uma resposta ao governador de São Paulo, João Doria, que anunciou ontem a intenção de iniciar a vacinação contra a covid ainda neste ano. Uma vacina chinesa que está sendo testada pelo Instituto Butantan.

A história omitida

Ver a bela Taormina sem turistas é tristíssimo. As casas aparecem penduradas nas colinas como se prestes a despencar sobre um mar nublado; os hotéis, os bares, os restaurantes e as lojas choram de desgosto com seus donos e empregados de braços cruzados nas portas, esperando que os impossíveis os salvem da ruína. Mas em meio a essa desolação está essa força da natureza, Antonella Ferrara, que tornou possível este milagre: que o festival literário Taobuk se realize por mais um ano, e com Svetlana Aleksievitch, a jornalista bielorrussa que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, como convidada de honra. A cerimônia terá lugar no belíssimo teatro grego (que é, na realidade, romano), como sempre.

Embora adore Taormina, e a Sicília, estou aqui por Svetlana, sobretudo. Li este ano seu livro sobre Chernobyl (Vozes de Tchernóbil) e, acho que pela primeira vez na vida, tive vontade de conhecer sua autora e conversar com ela. A conversa foi frustrante porque ela fala só russo, além do bielorrusso, e andava com uma tradutora búlgara, o que não facilitava as coisas. É uma mulher muito simples, de 72 anos, que estudou e se dedicou ao jornalismo a vida toda e agora está com problemas com o chacal que aterroriza seu país há 26 anos – Alexander Lukashenko –, porque ela é um dos sete líderes do Conselho de Coordenação dirigido pela oposição contra a fraude eleitoral que ele perpetrou recentemente para se eternizar no poder. 

Depois de Taormina, Svetlana se refugiará na Alemanha porque teme ser detida em Minsk, onde reside. Em Vozes de Tchernóbil, e suponho que em suas outras reportagens publicadas em revistas e jornais, e depois compiladas em livros, ela dialoga com centenas de homens e mulheres sobre o fato central, e depois transforma aquelas conversas em monólogos de pessoas isoladas ou de grupo humanos, que vertem uma grande diversidade de opiniões e exibem um riquíssimo mostruário sobre o ocorrido – no caso de Chernobyl, a explosão de um dos quatro reatores da central nuclear –, que permitem ao leitor formar uma opinião a respeito ou, como neste caso, flutuar em um mar de dúvidas. 


O que se passou realmente naquela pequena cidade ucraniana muito perto da fronteira bielorrussa e russa, em 26 de abril de 1986, à uma hora e vinte e três minutos da madrugada, quando, por causa da explosão, ficaram destruídos o quarto bloco de energia e o edifício que o continha naquela central nuclear? 

Ficamos sabendo do ocorrido de um modo fragmentado: pela esposa, recém-casada, de um bombeiro, que é chamado para apagar o incêndio e que parte para lá do jeito que estava, de calça e camiseta regata. E pelos gatos apreensivos que subitamente deixam de comer os milhares de ratos mortos que aparecem nas ruas. A esposa do bombeiro voltará a encontrar o marido em um hospital de Moscou, dias mais tarde, agonizando, com o corpo coberto de chagas putrefatas, e os gatos de Chernobyl perecerão também, contaminados pelas radiações ou abatidos pelos soldadinhos encarregados de não deixar vivo na região nenhum animal que pudesse contaminar as pessoas. 

Assim vão aparecendo camponeses, professores, dirigentes políticos, adolescentes, idosos, médicos, historiadores, militares, pastores e esses estranhos ofícios surgidos do nada, os saqueadores, as dosimetristas, os liquidadores, e os avozinhos daquela menina aterrorizada que se enforcou. Eram os tempos de Gorbachov e da perestroika, e ele queria salvar o comunismo e a URSS, abrindo o diálogo e com lampejos de liberdade por todas as partes. Mas já era tarde demais, o comunismo e a URSS estavam mortos e enterrados, e as aparições do novo líder na televisão, acalmando os ânimos, garantindo que a normalidade havia sido restabelecida em Chernobyl, não mereciam crédito por parte de ninguém, principalmente daqueles que, na vastíssima zona afetada, continuavam se contaminando, adoecendo, morrendo, e as mulheres dando à luz crianças carecas, sem dedos, sem orelhas e sem olhos. As igrejas se enchiam de gente, e os comissários caiam em prantos com os corpos atacados pelos “rem” e os “roentgen”, que finalmente tinham aprendido a diferenciar, inutilmente. 

Poucas vezes li um livro tão impactante, que tão claramente apresentasse o porvir que nos espera se continuarmos tão suicidas e estúpidos a encher o mundo de centrais nucleares que poderiam nos fazer desaparecer, como as vítimas de Chernobyl, em uma carnificina mundial, da qual ninguém escaparia, salvo, talvez, algumas espécies de bactéria metade ser vivo, metade pedra. A mulher que o escreveu, Svetlana Aleksievitch, está diante de mim e não perdeu a razão escrevendo essas páginas explosivas. 

Come devagar, com certo apetite, afastando os véus que cobrem metade do seu rosto, e que, segundo as línguas viperinas, se devem às radiações que sofreu enquanto colhia aqueles materiais sobre Chernobyl. Não é verdade, claro. Tem o rosto limpo e diáfano. Passando pelo russo e o inglês, que ela mal arranha, lhe digo que seu livro me deixou desperto por várias noites, e ela me pergunta sobre os incas. Existe muita literatura sobre sua mitologia? Digo-lhe que sim, mas, como eles não conheciam a escrita, foram os cronistas espanhóis que recolheram os primeiros relatos sobre os deuses e milagres do Incario. Svetlana não conhece a América Latina e gostaria de ir lá, algum dia. 

Não lhe pergunto, claro, o que não se diz em seu livro e tampouco na esplêndida série que foi feita sobre ele, e que ninguém sabe, e que, claro, ninguém nunca saberá: o que exatamente aconteceu em Chernobyl naquela noite de espanto? Quem teve a culpa? Foi um erro humano? Foi uma máquina mal concebida? Por que explodiu aquilo que não deveria explodir de modo algum? Eram as perguntas que todos se faziam, a começar por Gorbachov, e que tanto no livro como no filme permanecem subjacentes a essa pesquisa extraordinária e quase perfeita da qual resultaram as Vozes de Tchernóbil. Perguntas que não têm resposta por uma razão óbvia, mas inexprimível. Ninguém sabe, ou melhor dizendo, todos sabem, mas não se pode nem se deve dizer. Por quê? Por uma razão muito simples: porque todos somos culpados ao mesmo tempo, por ação ou por inação.

Desde o funcionário de última categoria que falsificava suas informações para se dar valor e justificar seu trabalho até o diretor da central, que fazia o mesmo, e pelas mesmas razões que o último de seus empregadinhos, para fazer saber a seus chefes que ali, sim, as coisas eram bem conduzidas, porque havia alguém que sabia fazer seu trabalho etcétera. Todos alteravam a verdade um pouquinho, ou muito, porque não podiam fazer outra coisa sem se enfraquecer e se tornarem vulneráveis às sanções e à silenciosa luta contra todos, que era a vida dentro do sistema. Quem, o que falhou? Todos e ninguém, ninguém falhou, simplesmente aconteceu assim, e não é possível nem conveniente perder tempo tentando averiguar isso. 

O melhor – e nisso está a genialidade do livro e da série – é calar e tentar fazer frente às consequências do ocorrido, mesmo que seja suicidando-se, como aquele professor que explode os próprios miolos, depois de tirar os sapatos, como todas as noites. Despeço-me de Svetlana Aleksievitch dizendo-lhe que a admiro muito, que poucos escritores fizeram pela literatura deste tempo o que ela fez escrevendo um livro que acreditava ser apenas jornalismo.