sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025
O plano de Trump para Gaza não vai acontecer, mas terá consequências
O plano de Donald Trump para os EUA "assumirem" e "serem donos" de Gaza, reassentando sua população no processo, não vai acontecer. Ele requer a cooperação dos estados árabes que o rejeitaram.
Eles incluem Jordânia e Egito — países que Trump quer acolher os palestinos de Gaza — e Arábia Saudita, que deve pagar a conta.
Os aliados ocidentais dos EUA e de Israel também são contra a ideia.
Alguns — talvez muitos — palestinos em Gaza poderiam ficar tentados a sair se tivessem a oportunidade.
Mas mesmo que um milhão saísse, cerca de 1,2 milhão de outros ainda estariam lá.
Presumivelmente, os Estados Unidos — os novos donos da "Riviera do Oriente Médio" de Trump — teriam que usar a força para removê-los.
Depois da intervenção catastrófica dos Estados Unidos no Iraque em 2003, isso seria profundamente impopular nos EUA.
Seria o fim definitivo de qualquer esperança remanescente de que uma solução de dois estados fosse possível. Essa é a aspiração de que um conflito com mais de um século pudesse ser encerrado com o estabelecimento de uma Palestina independente ao lado de Israel.
O governo Netanyahu é totalmente contra a ideia e, ao longo de anos de negociações de paz fracassadas, "dois estados para dois povos" se tornou um slogan vazio.
Mas tem sido um elemento central da política externa dos EUA desde o início da década de 1990.
O plano de Trump também violaria o direito internacional.
As já surradas afirmações da América de que acredita em uma ordem internacional baseada em regras se dissolveriam. As ambições territoriais da Rússia na Ucrânia e da China em Taiwan seriam turbinadas.
Por que se preocupar com tudo isso se não está prestes a acontecer — pelo menos não da maneira que Trump anunciou em Washington, observado por um sorridente e claramente encantado Benjamin Netanyahu?
A resposta é que os comentários de Trump, por mais absurdos que sejam, terão consequências.
Ele é o presidente dos Estados Unidos, o homem mais poderoso do mundo — não mais um apresentador de reality show e um aspirante político tentando ganhar as manchetes.
A curto prazo, a interrupção causada por seu anúncio impressionante pode enfraquecer o frágil cessar-fogo em Gaza. Uma fonte árabe sênior me disse que isso pode ser seu "dobre de finados".
A ausência de um plano para a governança futura de Gaza já é uma falha no acordo.
Agora, Trump providenciou uma, e mesmo que isso não aconteça, isso repercutirá profundamente nas mentes de palestinos e israelenses.
Ela alimentará os planos e sonhos de extremistas judeus ultranacionalistas que acreditam que toda a terra entre o Mediterrâneo e o rio Jordão, e talvez além, é uma possessão judaica dada por Deus.
Seus líderes são parte do governo de Netanyahu e o mantêm no poder - e eles estão encantados. Eles querem que a guerra de Gaza seja retomada com o objetivo de longo prazo de remover os palestinos e substituí-los por judeus.
O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, disse que Trump havia fornecido a resposta para o futuro de Gaza após os ataques de 7 de outubro.
Sua declaração dizia que "quem cometeu o massacre mais terrível em nossa terra vai se ver perdendo sua terra para sempre. Agora agiremos para finalmente enterrar, com a ajuda de Deus, a perigosa ideia de um estado palestino."
Líderes da oposição centrista em Israel foram menos efusivos, talvez temendo problemas futuros, mas ofereceram uma recepção educada ao plano.
O Hamas e outros grupos armados palestinos podem sentir a necessidade de responder a Trump com algum tipo de demonstração de força contra Israel.
Para os palestinos, o conflito com Israel é motivado pela desapropriação e pela memória do que eles chamam de al-Nakba, "a catástrofe". Esse foi o êxodo dos palestinos quando Israel venceu sua guerra pela independência em 1948.
Mais de 700.000 palestinos fugiram ou foram forçados a deixar suas casas pelas forças israelenses. Todos, exceto um punhado, nunca foram autorizados a voltar e Israel aprovou leis que ainda usa para confiscar suas propriedades.
Agora o medo é que isso aconteça novamente.
Muitos palestinos já acreditavam que Israel estava usando a guerra contra o Hamas para destruir Gaza e expulsar a população.
Faz parte da acusação de que Israel está cometendo genocídio – e agora eles podem acreditar que Donald Trump está adicionando seu peso aos planos de Israel.
Só porque Trump diz algo, isso não significa que seja verdade ou certo.
Suas declarações muitas vezes parecem mais manobras iniciais em uma negociação imobiliária do que expressões da política estabelecida dos Estados Unidos.
Talvez Trump esteja espalhando alguma confusão enquanto trabalha em outro plano. Dizem que ele anseia pelo prêmio Nobel da paz.
Os pacificadores do Oriente Médio, mesmo quando não conseguem, têm um forte histórico de vitórias.
Enquanto o mundo digeria seu anúncio sobre Gaza, ele postou em sua plataforma Truth Social seu desejo por um "acordo de paz nuclear verificado" com o Irã.
O regime iraniano nega querer armas nucleares, mas tem havido um debate aberto em Teerã sobre se eles estão agora tão ameaçados que precisam do melhor meio de dissuasão.
Por muitos anos, Netanyahu quis que os EUA, com ajuda israelense, destruíssem as instalações nucleares do Irã. Fazer um acordo com o Irã nunca fez parte de seu plano.
Durante o primeiro mandato de Trump, Netanyahu travou uma longa e bem-sucedida campanha para persuadi-lo a retirar os EUA do acordo nuclear que o governo de Barack Obama assinou com o Irã.
Se Trump queria dar algo à extrema direita israelense para mantê-la feliz enquanto faz propostas aos iranianos, ele conseguiu.
Mas ele também criou incerteza e injetou mais instabilidade na região mais turbulenta do mundo.
Eles incluem Jordânia e Egito — países que Trump quer acolher os palestinos de Gaza — e Arábia Saudita, que deve pagar a conta.
Os aliados ocidentais dos EUA e de Israel também são contra a ideia.
Alguns — talvez muitos — palestinos em Gaza poderiam ficar tentados a sair se tivessem a oportunidade.
Mas mesmo que um milhão saísse, cerca de 1,2 milhão de outros ainda estariam lá.
Presumivelmente, os Estados Unidos — os novos donos da "Riviera do Oriente Médio" de Trump — teriam que usar a força para removê-los.
Depois da intervenção catastrófica dos Estados Unidos no Iraque em 2003, isso seria profundamente impopular nos EUA.
Seria o fim definitivo de qualquer esperança remanescente de que uma solução de dois estados fosse possível. Essa é a aspiração de que um conflito com mais de um século pudesse ser encerrado com o estabelecimento de uma Palestina independente ao lado de Israel.
O governo Netanyahu é totalmente contra a ideia e, ao longo de anos de negociações de paz fracassadas, "dois estados para dois povos" se tornou um slogan vazio.
Mas tem sido um elemento central da política externa dos EUA desde o início da década de 1990.
O plano de Trump também violaria o direito internacional.
As já surradas afirmações da América de que acredita em uma ordem internacional baseada em regras se dissolveriam. As ambições territoriais da Rússia na Ucrânia e da China em Taiwan seriam turbinadas.
Por que se preocupar com tudo isso se não está prestes a acontecer — pelo menos não da maneira que Trump anunciou em Washington, observado por um sorridente e claramente encantado Benjamin Netanyahu?
A resposta é que os comentários de Trump, por mais absurdos que sejam, terão consequências.
Ele é o presidente dos Estados Unidos, o homem mais poderoso do mundo — não mais um apresentador de reality show e um aspirante político tentando ganhar as manchetes.
A curto prazo, a interrupção causada por seu anúncio impressionante pode enfraquecer o frágil cessar-fogo em Gaza. Uma fonte árabe sênior me disse que isso pode ser seu "dobre de finados".
A ausência de um plano para a governança futura de Gaza já é uma falha no acordo.
Agora, Trump providenciou uma, e mesmo que isso não aconteça, isso repercutirá profundamente nas mentes de palestinos e israelenses.
Ela alimentará os planos e sonhos de extremistas judeus ultranacionalistas que acreditam que toda a terra entre o Mediterrâneo e o rio Jordão, e talvez além, é uma possessão judaica dada por Deus.
Seus líderes são parte do governo de Netanyahu e o mantêm no poder - e eles estão encantados. Eles querem que a guerra de Gaza seja retomada com o objetivo de longo prazo de remover os palestinos e substituí-los por judeus.
O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, disse que Trump havia fornecido a resposta para o futuro de Gaza após os ataques de 7 de outubro.
Sua declaração dizia que "quem cometeu o massacre mais terrível em nossa terra vai se ver perdendo sua terra para sempre. Agora agiremos para finalmente enterrar, com a ajuda de Deus, a perigosa ideia de um estado palestino."
Líderes da oposição centrista em Israel foram menos efusivos, talvez temendo problemas futuros, mas ofereceram uma recepção educada ao plano.
O Hamas e outros grupos armados palestinos podem sentir a necessidade de responder a Trump com algum tipo de demonstração de força contra Israel.
Para os palestinos, o conflito com Israel é motivado pela desapropriação e pela memória do que eles chamam de al-Nakba, "a catástrofe". Esse foi o êxodo dos palestinos quando Israel venceu sua guerra pela independência em 1948.
Mais de 700.000 palestinos fugiram ou foram forçados a deixar suas casas pelas forças israelenses. Todos, exceto um punhado, nunca foram autorizados a voltar e Israel aprovou leis que ainda usa para confiscar suas propriedades.
Agora o medo é que isso aconteça novamente.
Muitos palestinos já acreditavam que Israel estava usando a guerra contra o Hamas para destruir Gaza e expulsar a população.
Faz parte da acusação de que Israel está cometendo genocídio – e agora eles podem acreditar que Donald Trump está adicionando seu peso aos planos de Israel.
Só porque Trump diz algo, isso não significa que seja verdade ou certo.
Suas declarações muitas vezes parecem mais manobras iniciais em uma negociação imobiliária do que expressões da política estabelecida dos Estados Unidos.
Talvez Trump esteja espalhando alguma confusão enquanto trabalha em outro plano. Dizem que ele anseia pelo prêmio Nobel da paz.
Os pacificadores do Oriente Médio, mesmo quando não conseguem, têm um forte histórico de vitórias.
Enquanto o mundo digeria seu anúncio sobre Gaza, ele postou em sua plataforma Truth Social seu desejo por um "acordo de paz nuclear verificado" com o Irã.
O regime iraniano nega querer armas nucleares, mas tem havido um debate aberto em Teerã sobre se eles estão agora tão ameaçados que precisam do melhor meio de dissuasão.
Por muitos anos, Netanyahu quis que os EUA, com ajuda israelense, destruíssem as instalações nucleares do Irã. Fazer um acordo com o Irã nunca fez parte de seu plano.
Durante o primeiro mandato de Trump, Netanyahu travou uma longa e bem-sucedida campanha para persuadi-lo a retirar os EUA do acordo nuclear que o governo de Barack Obama assinou com o Irã.
Se Trump queria dar algo à extrema direita israelense para mantê-la feliz enquanto faz propostas aos iranianos, ele conseguiu.
Mas ele também criou incerteza e injetou mais instabilidade na região mais turbulenta do mundo.
Geopolítica digital made in China
Não foi à toa que, enquanto o presidente Donald Trump festejava sua posse, a China surpreendeu o mundo com sua nova plataforma de Inteligência Artificial, DeepSeek. Foi-se o tempo em que os países exibiam sua musculatura por meio de testes atômicos ou manobras militares. A novidade nos arsenais da geopolítica do futuro é a I.A.
Talvez por isso, dessa vez Trump adotou um discurso mais brando contra seus oponentes chineses do que no seu mandato anterior. Preferiu apontar suas bravatas para o México, o Canadá, a Europa e a cambaleante ONU. O Tio Sam nunca foi de fraquejar diante das forças orientais, mas parece hesitante diante da DeepSeek, uma inteligência artificial muito mais avançada do que aquelas criadas nos EUA e na Europa. Para entender melhor esse poder da concorrente chinesa, arrisquei consultar diretamente as opiniões das maiores interessadas no assunto – as próprias I.A. americanas.
Primeiro perguntei à I.A. do Whatsapp o que ela acha da DeepSeek. A resposta foi cautelosa: “… a DeepSeek é um exemplo impressionante de como a I.A. pode ser usada… Sou um modelo de linguagem mais antigo e posso ter limitações em relação à DeepSeek. Por exemplo, a DeepSeek pode ter uma capacidade maior de entender contextos complexos e gerar respostas mais precisas”.
Procurando uma segunda opinião, perguntei ao ChatGPT se a DeepSeek é mais poderosa do que ele. Sua resposta foi elegante: “… a DeepSeek pode ser mais avançada em aprendizado de padrões… é uma ferramenta especializada em análise de dados, buscando insights mais profundos em grandes volumes de informações”. Resumindo, até as I.A. americanas reconhecem o poderio da adversária chinesa.
Contudo, apesar das capacidades dessas ferramentas de inteligência artificial, ainda é indispensável dispormos da opinião de uma boa inteligência natural. Nesse caso, ninguém melhor do que o cientista Silvio Meira, fundador do Porto Digital em Recife (Folha de São Paulo, 03/02/25).
Segundo ele, a DeepSeek é inegavelmente revolucionária e, na verdade, a ferramenta já existia. O que aconteceu agora foi o lançamento inesperado da sua versão turbinada chamada V-3R. Nas palavras do cientista “a nova versão da DeepSeek muda a geopolítica de poder da I.A. de uma vez por todas”. Contudo, isso não significa que a I.A. chinesa vá subjugar a humanidade como ocorre em Matrix, ou em 2001 Uma Odisseia no Espaço.
Ao invés disso, Silvio Meira prefere chamar a nossa atenção para o impacto econômico que a DeepSeek vai causar no mercado hoje dominado pelas americanas OpenAI, Google e Meta. “No final desta década, a I.A. vai agregar ao PIB global, por ano, o equivalente ao PIB do Brasil (mais de US$ 2 trilhões)”. Isso representa um faturamento colossal escapando entre os dedos ianques justamente quando Trump procura mostrar serviço como guardião dos interesses dos ultracapitalistas que o elegeram e agora compõem seu ministério. Para completar, quando Trump resolveu impor tarifas de 10% aos importados chineses, a China revidou não apenas com tarifas de 5%, mas também abrindo uma investigação contra o Google.
Trump inaugurou seu primeiro mandato despejando bombas descomunais na Síria e no Afeganistão para mostrar a que veio. Agora corre o risco de ver explodir em seu colo um artefato digital devastador. Trump é acostumado a ganhar e perder nos negócios, sempre jogando no limite do risco, alternando entre o blefe e a agressividade. Resta saber se, no caso da China, ele vai pagar para ver ou vai esperar o jogo esfriar.
Talvez por isso, dessa vez Trump adotou um discurso mais brando contra seus oponentes chineses do que no seu mandato anterior. Preferiu apontar suas bravatas para o México, o Canadá, a Europa e a cambaleante ONU. O Tio Sam nunca foi de fraquejar diante das forças orientais, mas parece hesitante diante da DeepSeek, uma inteligência artificial muito mais avançada do que aquelas criadas nos EUA e na Europa. Para entender melhor esse poder da concorrente chinesa, arrisquei consultar diretamente as opiniões das maiores interessadas no assunto – as próprias I.A. americanas.
Primeiro perguntei à I.A. do Whatsapp o que ela acha da DeepSeek. A resposta foi cautelosa: “… a DeepSeek é um exemplo impressionante de como a I.A. pode ser usada… Sou um modelo de linguagem mais antigo e posso ter limitações em relação à DeepSeek. Por exemplo, a DeepSeek pode ter uma capacidade maior de entender contextos complexos e gerar respostas mais precisas”.
Procurando uma segunda opinião, perguntei ao ChatGPT se a DeepSeek é mais poderosa do que ele. Sua resposta foi elegante: “… a DeepSeek pode ser mais avançada em aprendizado de padrões… é uma ferramenta especializada em análise de dados, buscando insights mais profundos em grandes volumes de informações”. Resumindo, até as I.A. americanas reconhecem o poderio da adversária chinesa.
Contudo, apesar das capacidades dessas ferramentas de inteligência artificial, ainda é indispensável dispormos da opinião de uma boa inteligência natural. Nesse caso, ninguém melhor do que o cientista Silvio Meira, fundador do Porto Digital em Recife (Folha de São Paulo, 03/02/25).
Segundo ele, a DeepSeek é inegavelmente revolucionária e, na verdade, a ferramenta já existia. O que aconteceu agora foi o lançamento inesperado da sua versão turbinada chamada V-3R. Nas palavras do cientista “a nova versão da DeepSeek muda a geopolítica de poder da I.A. de uma vez por todas”. Contudo, isso não significa que a I.A. chinesa vá subjugar a humanidade como ocorre em Matrix, ou em 2001 Uma Odisseia no Espaço.
Ao invés disso, Silvio Meira prefere chamar a nossa atenção para o impacto econômico que a DeepSeek vai causar no mercado hoje dominado pelas americanas OpenAI, Google e Meta. “No final desta década, a I.A. vai agregar ao PIB global, por ano, o equivalente ao PIB do Brasil (mais de US$ 2 trilhões)”. Isso representa um faturamento colossal escapando entre os dedos ianques justamente quando Trump procura mostrar serviço como guardião dos interesses dos ultracapitalistas que o elegeram e agora compõem seu ministério. Para completar, quando Trump resolveu impor tarifas de 10% aos importados chineses, a China revidou não apenas com tarifas de 5%, mas também abrindo uma investigação contra o Google.
Trump inaugurou seu primeiro mandato despejando bombas descomunais na Síria e no Afeganistão para mostrar a que veio. Agora corre o risco de ver explodir em seu colo um artefato digital devastador. Trump é acostumado a ganhar e perder nos negócios, sempre jogando no limite do risco, alternando entre o blefe e a agressividade. Resta saber se, no caso da China, ele vai pagar para ver ou vai esperar o jogo esfriar.
Quem acredita na ameaça de Trump?
Gaza tem uma longa história, em parte explicável pela sua geografia. Se hoje é um “vulcão político” na Antiguidade foi o grande oásis da região, com uma apetecível costa marítima que sempre suscitou a cobiça de vizinhos e de impérios. Chegou a vez de ser disputada pelo “novo império americano”.
Donald Trump vai transformar a mais trágica fase da História de Gaza numa “Riviera mediterrânica”. O método não é inédito mas trágico: implicaria uma gigantesca operação de “limpeza étnica”. A isto voltarei.
Gaza é uma terra saturada de História. Habitada desde data indefinida por cananeus e filisteus, foi cenário de batalhas entre egípcios e assírios. Em 530 a.C. o persa Ciro conquistou a cidade fortificada. Segundo o historiador Jean-Pierre Filiu (História de Gaza, Bertrand, 2024), a cidade foi saqueada por navios macedônios. Em 63 a.C., o território passou para o Império Romano integrado por Pompeu na província da Judeia. No século IV, os bizantinos sucederam aos romanos. Segue-se o domínio do Egito. Entretanto, o seu vinho, vinum gazetum, era muito apreciado na Europa.
Depois de muitas vicissitudes, foi conquistada por um exército árabe, para em 1517 acabar integrada no Império Otomano, cuja ocupação durou até à Grande Guerra de 1914-18.
Gaza era uma estratégica plataforma giratória, com acesso rápido a Alexandria e ao Cairo, a Jerusalém ou Beirute, e provavelmente Istambul. Após a guerra israelo-árabe e a independência de Israel em 1948, a Faixa de Gaza é ocupada pelo Egito, que a administrará até à Guerra dos Seis Dias, em 1967.
Depois desta guerra, a Jordânia abdica da Cisjordânia e o Egito da Faixa de Gaza, inaugurando-se a era da ocupação israelita, que até hoje dura e produziu as tragédias que todos conhecemos.
É esta a Gaza que conhecemos. Em 1948, tinha 80 mil habitantes a que rapidamente se juntaram 200 mil refugiados, a grande maioria da população, que hoje ascende a 2,1 milhões.
Em 2005, Ariel Sharon fez evacuar, manu militari, os colonatos israelitas da Faixa de Gaza. Após o desaparecimento de Sharon, vítima de um AVC, o seu conselheiro Dov Weisglass explicou, numa entrevista ao diário Haaretz, a lógica dessa retirada. “O significado da retirada é o congelamento do processo de paz. Aquilo a que se chama o Estado Palestino, com tudo o que isso implica, foi indefinidamente retirado da nossa agenda. Esta política de ruptura é como o formol. Fornece a quantidade de formol necessária para que não haja processo político com os palestinos.” Acrescentou pouco depois para justificar o bloqueio de Gaza: “A ideia é impor aos palestinos uma dieta, sem os deixar morrer à fome.”
Era a negação nal dos Acordos de Paz de Oslo, solenemente assinados em 1993, por Yitzhak Rabin, Yasser Arafat e Bill Clinton.
Esta lógica foi perversamente ampliada por Benjamin Netanyahu. Foi a “fábrica de um vulcão” e da vertiginosa escalada de violência que terá o seu desfecho no massacre do 7 de outubro, pelo Hamas, e da destruição maciça de Gaza pelas bombas de Israel.
Mas Netanyahu foi cúmplice do Hamas. Em meados de junho de 2007, os islamistas derrotaram e expulsaram de Gaza as forças da Fatah e da Autoridade Palestina que dirigiam o território. Na véspera, disse ao embaixador americano o general Amos Yadlin, chefe dos serviços secretos militares: “Israel ficaria feliz se o Hamas se apoderasse do governo de Gaza porque o exército poderia passar a tratar Gaza como um Estado inimigo.”
Foi pior. Netanyahu fez acordos tácitos com o Hamas para facilitar o seu financiamento a partir do Qatar e confiou no “pragmatismo” de Yahia Sinwar, baixando a guarda na Frente Sul.
Explicou aos deputados do Likud, em 2019: “Quem quiser contrariar a criação de um Estado palestino, deve apoiar a política de reforço do Hamas e da transferência de dinheiro para o Hamas. Faz parte da nossa estratégia: separar os palestinos de Gaza dos da Cisjordânia.” Tudo isto é conhecido, mas vale a pena relembrá-lo.
Os jornalistas que assistiram à conferência de imprensa de Trump ficaram estupefatos. Escreve a italiana Viviana Mazzi no Corriere della Sera: “Fiquei sem fôlego. O chefe da máxima superpotência, que até 5 de novembro era trave mestra da ordem mundial, anunciava a deportação em massa de um povo e a intenção de se apoderar da sua terra.”
As palavras são delirantes. Interrogado sobre o que acontecerá aos palestinos, respondeu: “Fá-lo-emos da melhor maneira possível. Será maravilhoso para os palestinianos, sobretudo para os palestinianos.” Claro que não se referia às delícias da “Riviera mediterrânica”, mas à deportação. À pergunta se mobilizaria tropas americanas, deu a habitual resposta ambígua: “Faremos o que for necessário.”
Os palestinos não quererão voltar a Gaza, explicou. “Aquele lugar tornou-se um inferno”. É sobre este “inferno” e uma “terra queimada” que Trump sonha em promover uma gigantesca operação imobiliária. Que “negócio” terá em mente? Para já, o delírio desmente o pavor da ameaça.
Donald Trump vai transformar a mais trágica fase da História de Gaza numa “Riviera mediterrânica”. O método não é inédito mas trágico: implicaria uma gigantesca operação de “limpeza étnica”. A isto voltarei.
Gaza é uma terra saturada de História. Habitada desde data indefinida por cananeus e filisteus, foi cenário de batalhas entre egípcios e assírios. Em 530 a.C. o persa Ciro conquistou a cidade fortificada. Segundo o historiador Jean-Pierre Filiu (História de Gaza, Bertrand, 2024), a cidade foi saqueada por navios macedônios. Em 63 a.C., o território passou para o Império Romano integrado por Pompeu na província da Judeia. No século IV, os bizantinos sucederam aos romanos. Segue-se o domínio do Egito. Entretanto, o seu vinho, vinum gazetum, era muito apreciado na Europa.
Depois de muitas vicissitudes, foi conquistada por um exército árabe, para em 1517 acabar integrada no Império Otomano, cuja ocupação durou até à Grande Guerra de 1914-18.
Gaza era uma estratégica plataforma giratória, com acesso rápido a Alexandria e ao Cairo, a Jerusalém ou Beirute, e provavelmente Istambul. Após a guerra israelo-árabe e a independência de Israel em 1948, a Faixa de Gaza é ocupada pelo Egito, que a administrará até à Guerra dos Seis Dias, em 1967.
Depois desta guerra, a Jordânia abdica da Cisjordânia e o Egito da Faixa de Gaza, inaugurando-se a era da ocupação israelita, que até hoje dura e produziu as tragédias que todos conhecemos.
É esta a Gaza que conhecemos. Em 1948, tinha 80 mil habitantes a que rapidamente se juntaram 200 mil refugiados, a grande maioria da população, que hoje ascende a 2,1 milhões.
Em 2005, Ariel Sharon fez evacuar, manu militari, os colonatos israelitas da Faixa de Gaza. Após o desaparecimento de Sharon, vítima de um AVC, o seu conselheiro Dov Weisglass explicou, numa entrevista ao diário Haaretz, a lógica dessa retirada. “O significado da retirada é o congelamento do processo de paz. Aquilo a que se chama o Estado Palestino, com tudo o que isso implica, foi indefinidamente retirado da nossa agenda. Esta política de ruptura é como o formol. Fornece a quantidade de formol necessária para que não haja processo político com os palestinos.” Acrescentou pouco depois para justificar o bloqueio de Gaza: “A ideia é impor aos palestinos uma dieta, sem os deixar morrer à fome.”
Era a negação nal dos Acordos de Paz de Oslo, solenemente assinados em 1993, por Yitzhak Rabin, Yasser Arafat e Bill Clinton.
Esta lógica foi perversamente ampliada por Benjamin Netanyahu. Foi a “fábrica de um vulcão” e da vertiginosa escalada de violência que terá o seu desfecho no massacre do 7 de outubro, pelo Hamas, e da destruição maciça de Gaza pelas bombas de Israel.
Mas Netanyahu foi cúmplice do Hamas. Em meados de junho de 2007, os islamistas derrotaram e expulsaram de Gaza as forças da Fatah e da Autoridade Palestina que dirigiam o território. Na véspera, disse ao embaixador americano o general Amos Yadlin, chefe dos serviços secretos militares: “Israel ficaria feliz se o Hamas se apoderasse do governo de Gaza porque o exército poderia passar a tratar Gaza como um Estado inimigo.”
Foi pior. Netanyahu fez acordos tácitos com o Hamas para facilitar o seu financiamento a partir do Qatar e confiou no “pragmatismo” de Yahia Sinwar, baixando a guarda na Frente Sul.
Explicou aos deputados do Likud, em 2019: “Quem quiser contrariar a criação de um Estado palestino, deve apoiar a política de reforço do Hamas e da transferência de dinheiro para o Hamas. Faz parte da nossa estratégia: separar os palestinos de Gaza dos da Cisjordânia.” Tudo isto é conhecido, mas vale a pena relembrá-lo.
Os jornalistas que assistiram à conferência de imprensa de Trump ficaram estupefatos. Escreve a italiana Viviana Mazzi no Corriere della Sera: “Fiquei sem fôlego. O chefe da máxima superpotência, que até 5 de novembro era trave mestra da ordem mundial, anunciava a deportação em massa de um povo e a intenção de se apoderar da sua terra.”
As palavras são delirantes. Interrogado sobre o que acontecerá aos palestinos, respondeu: “Fá-lo-emos da melhor maneira possível. Será maravilhoso para os palestinianos, sobretudo para os palestinianos.” Claro que não se referia às delícias da “Riviera mediterrânica”, mas à deportação. À pergunta se mobilizaria tropas americanas, deu a habitual resposta ambígua: “Faremos o que for necessário.”
Os palestinos não quererão voltar a Gaza, explicou. “Aquele lugar tornou-se um inferno”. É sobre este “inferno” e uma “terra queimada” que Trump sonha em promover uma gigantesca operação imobiliária. Que “negócio” terá em mente? Para já, o delírio desmente o pavor da ameaça.
Homem comum
Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
Ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.
Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o guarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons,
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
Ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.
Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o guarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons,
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
Ferreira Gullar
Trump, Musk & Co.: O sonho da dominação mundial
Quando Donald Trump assumiu novamente o cargo de presidente dos EUA em janeiro de 2025, seus apoiadores viajaram de diferentes países para comparecer à cerimônia em Washington DC. Entre eles estavam o presidente da Argentina, Javier Milei , e a primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni . Figuras de extrema direita como o britânico Nigel Farage e representantes do partido alemão Alternativa para a Alemanha (AfD) também acolheram o convite.
A extrema direita ao redor do mundo está forjando redes. Um dia antes da posse, o ex-ideólogo chefe de Trump, Steve Bannon, o filho do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro , um parlamentar do AfD e vários influenciadores se encontraram para trocar ideias. Um influenciador de direita da Alemanha filmou a si mesmo na reunião e comentou animadamente que tinha acabado de receber um convite do embaixador de El Salvador. O movimento está mais ansioso do que nunca para viajar.
É paradoxal que Donald Trump, com sua agenda "América em Primeiro Lugar", tenha se tornado um ímã para ultranacionalistas ao redor do mundo, muitos dos quais costumavam ser abertamente antiamericanos. No entanto, essa aliança global de antiglobalistas só parece contraditória à primeira vista.
Contra a imigração e a sociedade moderna
"Essas redes estão unidas pela rejeição à migração, ao nacionalismo, aos valores familiares tradicionais e ao antiglobalismo", disse Katrine Fangen, professora de sociologia na Universidade de Oslo e especialista em redes transnacionais de direita, em entrevista à DW.
"O objetivo desses movimentos não é apenas ganhar maior influência política. Seu objetivo final é redefinir a ordem ideológica global: eles lutam pelo nacionalismo e pelo conservadorismo social, e contra a democracia liberal."
Além disso, a extrema direita aprende rapidamente com suas experiências em diferentes países. De acordo com o cientista político Thomas Greven, da Universidade Livre de Berlim, estratégias bem-sucedidas em um país são rapidamente adotadas por outros movimentos. Em seu livro The International Far-Right Network , ele analisa como essas táticas funcionam.
"Por exemplo, a estratégia de Bannon de 'inundar a esfera pública com lixo' tem sido extremamente bem-sucedida internacionalmente. Ela envolve sobrecarregar o oponente político com provocações constantes, mentiras, ataques e novas ideias, deixando-o incapaz de reagir", explica Greven. "Hoje, essa tática de comunicação é usada por atores de extrema direita no mundo todo."
Para esses movimentos, a democracia é apenas um meio de chegar ao poder. "A abordagem deles é: quem quer que ganhe a eleição deve governar sem restrições", diz Greven, que chama isso de "democracia hipermajoritária" — ou seja, uma democracia baseada apenas em supostas maiorias.
" Viktor Orbán , por exemplo, diz: 'Fui eleito com o mandato claro de impedir a imigração para a Hungria e não permitirei que instituições europeias, tribunais, organizações civis ou mídia financiada por estrangeiros atrapalhem meu governo.'" Para esses líderes, a dissidência e o compromisso são inaceitáveis.
"A extrema direita acredita que a crescente burocratização, judicialização e supranacionalização impõem muitas barreiras à vontade da maioria", conclui Greven. "É por isso que eles buscam impor essa vontade por meio de uma democracia antiliberal e hipermajoritária."
No início de 2025, a estratégia desses movimentos parece estar dando frutos: Donald Trump foi reeleito nos EUA e em países como Alemanha, França, Reino Unido e Áustria, os partidos de extrema direita continuam ganhando popularidade.
No entanto, o cientista político Thomas Greven acredita que seu sucesso não é inevitável. Muitos desses grupos prosperaram justamente porque nunca precisaram governar, o que lhes permitiu jogar com uma vantagem sobre a oposição.
Greven também aponta que essa aparente unidade esconde profundas fraturas internas. "Se o descontentamento popular e a insatisfação geral dos eleitores forem combinados, a ascensão da extrema direita poderá ser revertida", diz ele.
Mas há uma condição indispensável para isso: que as instituições democráticas continuem a funcionar.
A extrema direita ao redor do mundo está forjando redes. Um dia antes da posse, o ex-ideólogo chefe de Trump, Steve Bannon, o filho do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro , um parlamentar do AfD e vários influenciadores se encontraram para trocar ideias. Um influenciador de direita da Alemanha filmou a si mesmo na reunião e comentou animadamente que tinha acabado de receber um convite do embaixador de El Salvador. O movimento está mais ansioso do que nunca para viajar.
É paradoxal que Donald Trump, com sua agenda "América em Primeiro Lugar", tenha se tornado um ímã para ultranacionalistas ao redor do mundo, muitos dos quais costumavam ser abertamente antiamericanos. No entanto, essa aliança global de antiglobalistas só parece contraditória à primeira vista.
Contra a imigração e a sociedade moderna
"Essas redes estão unidas pela rejeição à migração, ao nacionalismo, aos valores familiares tradicionais e ao antiglobalismo", disse Katrine Fangen, professora de sociologia na Universidade de Oslo e especialista em redes transnacionais de direita, em entrevista à DW.
"O objetivo desses movimentos não é apenas ganhar maior influência política. Seu objetivo final é redefinir a ordem ideológica global: eles lutam pelo nacionalismo e pelo conservadorismo social, e contra a democracia liberal."
Além disso, a extrema direita aprende rapidamente com suas experiências em diferentes países. De acordo com o cientista político Thomas Greven, da Universidade Livre de Berlim, estratégias bem-sucedidas em um país são rapidamente adotadas por outros movimentos. Em seu livro The International Far-Right Network , ele analisa como essas táticas funcionam.
"Por exemplo, a estratégia de Bannon de 'inundar a esfera pública com lixo' tem sido extremamente bem-sucedida internacionalmente. Ela envolve sobrecarregar o oponente político com provocações constantes, mentiras, ataques e novas ideias, deixando-o incapaz de reagir", explica Greven. "Hoje, essa tática de comunicação é usada por atores de extrema direita no mundo todo."
Para esses movimentos, a democracia é apenas um meio de chegar ao poder. "A abordagem deles é: quem quer que ganhe a eleição deve governar sem restrições", diz Greven, que chama isso de "democracia hipermajoritária" — ou seja, uma democracia baseada apenas em supostas maiorias.
" Viktor Orbán , por exemplo, diz: 'Fui eleito com o mandato claro de impedir a imigração para a Hungria e não permitirei que instituições europeias, tribunais, organizações civis ou mídia financiada por estrangeiros atrapalhem meu governo.'" Para esses líderes, a dissidência e o compromisso são inaceitáveis.
"A extrema direita acredita que a crescente burocratização, judicialização e supranacionalização impõem muitas barreiras à vontade da maioria", conclui Greven. "É por isso que eles buscam impor essa vontade por meio de uma democracia antiliberal e hipermajoritária."
No início de 2025, a estratégia desses movimentos parece estar dando frutos: Donald Trump foi reeleito nos EUA e em países como Alemanha, França, Reino Unido e Áustria, os partidos de extrema direita continuam ganhando popularidade.
No entanto, o cientista político Thomas Greven acredita que seu sucesso não é inevitável. Muitos desses grupos prosperaram justamente porque nunca precisaram governar, o que lhes permitiu jogar com uma vantagem sobre a oposição.
Greven também aponta que essa aparente unidade esconde profundas fraturas internas. "Se o descontentamento popular e a insatisfação geral dos eleitores forem combinados, a ascensão da extrema direita poderá ser revertida", diz ele.
Mas há uma condição indispensável para isso: que as instituições democráticas continuem a funcionar.
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