segunda-feira, 4 de maio de 2020

Brasil ferrado


Bolsonaro ameaçou o país usando as Forças Armadas

O presidente da República ameaçou o Brasil usando as Forças Armadas. No domingo, Jair Bolsonaro compareceu a mais uma manifestação antidemocrática. A atitude dele ofendeu novamente a democracia. O presidente deveria se concentrar no inimigo principal, o coronavírus, que já fez tombar 7.000 pessoas no solo do Brasil.

Falar desse assunto é homenagear Aldir Blanc, que lutou pela democracia com seu talento e foi mais uma vítima do coronavírus. O músico morreu nesta segunda-feira.

As ameaças do presidente da República ficam mais grave a cada semana. O discurso de domingo foi ofensivo às instituições brasileiras. Ele deu ultimatos, falou que está “no limite”. Bolsonaro ameaça o país e os democratas brasileiros, e usa as Forças Armadas para isso.

Há duas semanas, o presidente foi em frente ao Quartel-General do Exército em manifestação que pedia intervenção militar. Ontem, em frente ao Palácio do Planalto, ele subiu o tom. Bolsonaro usou uma frase capciosa. Disse que as Forças Armadas estão ao lado da democracia e da liberdade, até aí tudo bem. E disse que os militares estão ao lado dele, neste ato que pede o fim da Constituição de 1988, porque seria essa a consequência do fechamento Congresso e do Supremo como num AI-5. A ameaça é explícita. Não cabem mais silêncios. De que lado estão as Forças Armadas?

Não é possível que os militares não vejam que estão sendo usados. A resposta tem que vir hoje. Vão aceitar serem usados? Ou farão uma separação entre o discurso ameaçador do presidente e a missão das Forças Armadas na democracia?

Colegas jornalistas foram agredidos na manifestação. Nossa solidariedade a eles. Isso não aconteceu por acaso. As agressões à imprensa ocorrem porque o presidente é truculento, agride verbalmente os jornalistas nas redes e ao vivo. A truculência dele autoriza esse tipo de agressão física.

Milícia sobe rampa do Planalto

Tô na rampa , dentro da minha casa, a casa do povo
Jair Bolsonaro

Quando se tolera o intolerável

Aos que pregam acomodar a situação política, sem fazer especial caso das acusações do ex-ministro Sérgio Moro contra o presidente Jair Bolsonaro, vale lembrar a experiência de 2005, quando lideranças políticas optaram por poupar o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do mensalão. O País sofre até hoje as consequências dessa transigência com a ilegalidade.

Em junho de 2005, envolvido em denúncias de corrupção nos Correios, o deputado Roberto Jefferson (PTB) revelou a existência de um esquema de compra de votos realizado pelo PT, o mensalão. Segundo o então presidente do PTB, o partido de Lula pagava mesadas de R$ 30 mil para que parlamentares votassem a favor do governo na Câmara.

Instaurada no mesmo mês, a CPI dos Correios foi ocasião para que o País tomasse conhecimento de como o PT operava no poder, num amplo esquema de corrupção. Diante dos escândalos, José Dirceu renunciou à chefia da Casa Civil, sendo substituído por Dilma Rousseff. O presidente do PT à época, José Genoino, também teve de deixar o cargo. Houve vários indiciamentos. Os mandatos parlamentares de Roberto Jefferson e José Dirceu foram cassados. No entanto, o presidente Lula foi estranhamente poupado.

Em agosto de 2005, no auge da crise, Lula reconheceu a existência de ilegalidades no governo. Em pronunciamento nacional, o então presidente da República disse que tinha sido “traído por práticas inaceitáveis das quais nunca teve conhecimento” e pediu desculpas pelos “erros” cometidos. Era o primeiro mandato presidencial de Lula, e houve uma acomodação da oposição, com base num raciocínio que se mostrou completamente equivocado. A ideia era de que não havia necessidade de um processo de impeachment, já que, diante de tantas denúncias, Lula não seria reeleito. Bastaria esperar as eleições de 2006.

Longe de enfraquecer o PT, a tolerância com Lula no mensalão facilitou a permanência do partido no poder. Se mesmo com todas aquelas revelações Lula era deixado intacto, a consequência era de que ele poderia fazer, a partir daquele momento, o que bem entendesse. Depois, o País teve o dissabor de ver até onde o PT foi capaz de ir. Petrolão, aparelhamento ideológico e a desastrada política econômica petista são alguns exemplos da falta de limites.


Agora, em vez de Roberto Jefferson, tem-se o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, denunciando a insistência de Jair Bolsonaro em interferir politicamente na Polícia Federal (PF). No dia 24 de abril, o ex-juiz da Lava Lato não pediu demissão do cargo por divergências políticas. Ele acusou o presidente Bolsonaro de querer “ter (na chefia da PF) uma pessoa do contato pessoal dele, que ele pudesse colher informações, relatórios de inteligência. (...) Não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação”. Segundo Moro, “o presidente também me informou que tinha preocupação com inquéritos em curso no STF e que a troca também seria oportuna na Polícia Federal por esse motivo”. No mesmo dia, uma prova contundente dessa acusação foi apresentada ao País. Em conversa de WhatsApp com o então ministro Sérgio Moro, o presidente da República indicou que a investigação de deputados bolsonaristas era mais um motivo para trocar a chefia da PF.

As acusações são gravíssimas e é preciso investigar. Não há manobra política capaz de apagar as denúncias de Sérgio Moro. A interferência do presidente da República na PF, algo que não ocorreu nem mesmo nos desastrosos governos petistas, como lembrou Sérgio Moro, não pode ser relevada por um acordo político. Trata-se de denúncia que envolve aspecto central do Estado de Direito - a capacidade de o poder público investigar com isenção as violações da lei.

Sendo tão graves, as denúncias também não podem ser esquecidas sob a alegação do caráter excepcional da crise da covid-19. A pandemia não foi motivo suficiente para deter o ímpeto do presidente Jair Bolsonaro de remover Maurício Valeixo da Superintendência da PF. Não cabe agora valer-se dela como desculpa para não investigar. A experiência de 2005 com Lula ensina: tolerar o intolerável é abrir a porta para desmandos ainda maiores.

Jair, Judas e o talismã

Ninguém criou, impôs ou usou em causa própria, mas o talismã existe e conduz nossa história. O clima é de não acelerar nada, mas também de não deixar parar qualquer coisa. É difícil ser simples, mas seu modelo é muito simples. É um dom nacional. Dar tempo ao tempo.

Enigma de racionalização não subordinado a qualquer paixão neste país colonizado por interpretações econômicas, políticas, ideológicas. Como entre nós a palavra não tem poder, a mágica cria as saídas. Estamos, outra vez, com velório na política. Abracadabra resolverá. Este o ofício do talismã.

Um paradoxo ver a pátria, essa mãe culpada, governada por um filho indiferente aos sentimentos humanos. Um privilegiado dando tão inconsistente e alta valorização aos seus atos – quais atos? Um crítico de tudo com baixa tolerância às frustrações pelas críticas que recebe.

Por sua inexpressividade nacional suas ações parlamentares sempre tiveram baixo custo político. Mas o talismã não achou justo vetar um, pois nunca achou ridícula a boa-fé do povo com demagogos. E deixou passar: de tanto encher linguiça, o homem sem imagem, que somente culpa os outros em busca transtornada por admiração, venceu a eleição. O povo nunca age preventivamente à má pronúncia da palavra. É apenas um troca-letras que fará mais um governo descoordenado.


Eis que ocorre o inesperado: uma crise de saúde mundial sincroniza com uma crise econômica geral agravada no Brasil somente porque ele, um sodado, quer transformá-la em guerra política particular. Encontra um economista dogmático, que também não sabe fazer curva. Dois caranguejos, bizarros e simétricos, capa dura, em linha reta para o muro.

O talismã então se movimenta. Como a autoridade faz o gênero traquina-insensível-às-conveniências, seu fim não prevê combate. A pátria tem outras finalidades que não as dele. O isolamento social mudou a história da polarização vazia da política, a força agora é a solidariedade, a ciência, a valorização dos sérios e bons de fato.

O talismã sabe que com os partidos e as instituições tecendo um círculo de artimanhas em torno da política eleitoral desde os anos 1990, chegamos em 2018 com o motor da insensatez no giro mais alto. De tanto ouvir não-é-esse-não-pode-ser-aquele, o iconoclasta virou ídolo. E assim, sentindo a negação da negação o povo jogou o jogo sem querer explicação. É do contra que eles são, é o contra que terão.

O tempo passa, e às apalpadelas, o talismã vai se esfregando no meio dos que estão na rua da amargura em desvantagem, os mais pobres de todo o gênero humano, os ricos enganados, os juízes engomados, os políticos anestesiados, e os faz continuar a acreditar nas coisas, sem por elas se interessar.

Vem o vírus. Logo abre conta na Caixa e a faz dar um show para frear a comoção. Empurra em poucos dias 600 reais na vida de 55 milhões de ocupados, desocupados e invisíveis e os encontra, 90% pela internet. Só o povo pré-pago vive no presente, sem futuro ou passado. Os incrédulos apertam a mão do presidente que simula estar bem.

Felizmente o talismã nutre nosso povo com qualidades singulares de passividade e não-cooperação ostensiva. Toca sua vida desemparado sem preocupação com a sociedade que o limita em sua mobilidade. Não quer ser inserido nada – ele já está muito mal inserido – o que quer é não ser pobre. Pesquisado, diz o que a pesquisa quer saber. Com esta particular forma de paz no coração desmascara a hipocrisia e deixa nua a retórica das frases que falam em poder do povo e interesse nacional.

>No Congresso, no Supremo chovem denúncias. Assentam em cima, deixa o outro Poder avançar, suspender nomeação, testar positivo, freia ou acelera o tempo. Um velho toga dá entrevista para remoer ferida. Outros, a favor/contra/não sei não. O decano manda limpar logo o ouvido. O militar, no dispositivo, não gosta. Quer descer devagar, no andar do caranguejo. Golpe nimim não dá, choraminga o líder dislalias de sua alma.

A reportagem ao vivo aperta, solta, não encara o burlesco, respeita o desrespeitador. É o bolero de Ravel do talismã preparando o povo para esquecer devagarinho o desamor que lhe é dedicado por quem fala uma coisa na campanha e faz outra depois de eleito.

Pode até existir uma crença nos extremos da violência como forma redentora de desobediência civil. Porém, observando as saídas brasileiras para enfrentar a embromação e o caos provocado pela elite institucional, a calma não acordada contém muito mais sabedoria do que os que desdenham do Brasil conseguem captar.

É verdade que nossa ordem e progresso avança devagar e cheia de pendências. Mas aos trancos e barrancos o Brasil conseguiu em paz o que nenhum país conseguiu sem guerra. Este o nosso talismã, que sabe que a guerra é a pior doença.

Não é crime a frieza do coração. Ainda mais quando veste de poder um homem nulo e consegue revelar as formas desagradáveis que esconde. Mas o presidente se desesperou de fato quando o talismã informa que na linha de frente da batalha não há soldado. São enfermeiros, médicos, farmacêuticos, balconistas, entregadores, motoristas de taxis, governadores e prefeitos.

A pandemia desmilitarizou o patriotismo, tirou o monopólio do presidente armado, que passou a praticar tiro ao alvo nos ministros populares.

A ambição desmedida do poder combate-se com a ambição pelo ato mínimo, o fiador da justiça. E o mínimo é aplicar a lei, demovê-lo para investigação, pois quem o acusa é que o fez presidente. Não é traidor, pois, em política, Judas é quem não desconfia. A confiança absoluta é da ética das relações privadas, familiares.

Nos últimos anos quem se enforcou na política o fez com corda que ele próprio teceu. O talismã dos brasileiros é sonhador, não age com fins materiais. Nem acredita na consistência das declarações dos que não querem fazer a vigília do fim que se anuncia.

Imagem do Dia


Inflada por Bolsonaro, polarização ganha novo fôlego

No quinto domingo de quarentena em Brasília (19 de abril), Jair Bolsonaro, de 64 anos, participou de uma manifestação contra as medidas de isolamento pelo coronavírus. Bolsonaro se mantém firme como o único presidente de uma democracia que nega a gravidade da ameaça, insistindo que uma hecatombe econômica será muito mais letal do que esta crise sanitária. Já não repete que a covid-19 é uma gripezinha nem que qualquer brasileiro sobrevive a um mergulho em esgoto. Ignorando as recomendações sanitárias mais básicas, saudado por centenas de seguidores aglomerados sem máscaras que gritavam “mito, mito”, o presidente discursou para eles a distância, entre tosses que tentou conter colocando a mão na boca. O chefe do Estado mais populoso da América Latina disse que ninguém cercearia seu direito de ir e vir como quisesse.

O Brasil foi o primeiro país do mundo a ver manifestações de rua a favor desse direito e da reabertura do comércio. São caravanas de carros dirigidos por bolsonaristas, porque a polarização brasileira se adaptou ao coronavírus. Enquanto o presidente falava em cima de uma caminhonete em Brasília, Tomé Abduch, de 44 anos, porta-voz do movimento Nas Ruas, está prestes a pegar seu carro para liderar em São Paulo, epicentro da doença no Brasil, o protesto que seu movimento convocou por todo o país. Os mobilizados são na maioria homens, quase todos brancos de classe média alta. “É fácil manter todo mundo em casa quando você tem a geladeira cheia e sua casa é segura, mas a desnutrição vai causar inúmeras mortes. É importante um equilíbrio”, afirma o empresário, engenheiro civil e ativista anticorrupção formado nas grandes manifestações que levaram à destituição da ex-presidente Dilma Rousseff.

Agora o campo da batalha política são as quarentenas decretadas pelos governadores e a cloroquina, um remédio que Bolsonaro considera muito mais promissor do que o que foi demonstrado pela ciência até agora. A cisão é entre os que defendem o isolamento social para evitar o colapso hospitalar e salvar vidas, embora o dano econômico seja enorme, e aqueles que querem que só sejam isolados os mais vulneráveis, para evitar uma crise que afetará principalmente os mais pobres. Uma batalha travada nas instituições, na mídia e nas redes sociais.

O Brasil realizou um número ínfimo de testes (300 por milhão de habitantes) devido à falta de análise e de reagentes para processá-los. Embora o país tenha o sistema de saúde pública mais robusto da América do Sul, 15% da população vive em regiões sem unidades de terapia intensiva. O Ceará já está com todas as suas UTIs ocupadas, enquanto em São Paulo a ocupação é de cerca de 70%.

Abduch diz que não duvida da gravidade da doença. Seus pais estão isolados, mas ele argumenta que as pessoas que não são idosas e são saudáveis, como ele e sua esposa, deveriam poder abrir seus negócios e sair para trabalhar. Ele, como Bolsonaro, limitaria o isolamento aos maiores de 60 anos, aos que têm doenças crônicas e aos que convivem com eles. Além da Organização Mundial da Saúde, o Ministério da Saúde e inclusive as Forças Armadas do Brasil insistem que reduzir o contato entre as pessoas é, por enquanto, a melhor maneira de frear os contágios. Quando a crise evidenciou que Bolsonaro estava de um lado e seu ministro da Saúde do outro, o presidente o demitiu para nomear um mais afinado com ele. O novo ministro prometeu cuidar da saúde e da economia. A maioria da população apoia as medidas de isolamento social, mas o respaldo vai diminuindo com o passar das semanas.


Antes da carreata, Abduch garantia na cozinha de sua mansão que as quarentenas seriam, na verdade, parte de um plano orquestrado pelos outros poderes para quebrar o Brasil e se livrar de Bolsonaro. “Se fizermos uma projeção, veremos que a queda do emprego e da economia vai matar muito mais do que o coronavírus. Por isso, deveria haver preocupação com as duas coisas. E os governadores estão fazendo o contrário. Consideram que o Governo federal tem de dar dinheiro sem nenhuma contrapartida. E o que acontece? Que o Governo federal não tem esse dinheiro. Quebra”, afirma. “Estão claramente dando um golpe para que o Governo federal fique sem dinheiro e aí pedir o impeachment de Bolsonaro, assim como fizeram com Dilma. Para mim, isso é uma estratégia para derrubar o Governo, um Governo que tenta mudar nosso país”, acrescenta. Aqueles que saem agora às ruas contra as quarentenas consideram Bolsonaro o garantidor da mudança radical de que, em sua opinião, o sistema político necessita. E veem os líderes dos outros poderes como esquerdistas perigosos.

Para o analista Oliver Stuenkel, da Fundação Getulio Vargas e articulista do EL PAÍS, os protestos são fruto de “uma estratégia sofisticada” adotada por outros populistas, como o venezuelano Hugo Chávez e o húngaro Viktor Orbán: “Nas democracias saudáveis não há manifestações pró-regime. São produto de um líder conclamando seus seguidores a atacar um inimigo escolhido”.

Abduch ressalta que não se considera bolsonarista. Apoia o presidente porque é inovador e porque sua chegada ao Palácio do Planalto foi um tapa na cara do sistema corrupto. “Pode ser que as formas [de agir de Bolsonaro] não sejam as melhores, mas o conteúdo é”, afirma. No vídeo da convocação, Abduch insistiu para que os motoristas da carreata lavassem as mãos, usassem máscara e não saíssem de seus carros, mas, quando chegou o dia, ninguém pareceu se preocupar em passar um tempo conversando em pequenos grupos. Da mesma forma, ninguém ergueu nenhuma sobrancelha ante um caminhão com uma enorme faixa que dizia: “Exigimos uma intervenção militar já”.

Muitos brasileiros com trabalho fixo e algumas economias começaram a se confinar, assustados com as imagens que chegavam da Europa, antes que as autoridades estaduais fechassem as escolas, as lojas, os estádios, as igrejas e os shoppings. A Grande São Paulo, com mais de 20 milhões de habitantes, está irreconhecível sem o habitual trânsito infernal. Mas, em um país tão desigual, uma minoria pode trabalhar de casa e fazer pão à noite enquanto dezenas de milhões de pessoas precisam sair para ganhar o pão de cada dia e não podem manter a distância mínima porque vivem aglomeradas. Os contágios e as mortes continuam aumentando, mas num ritmo mais lento do que o inicialmente previsto pelos especialistas. “Acredito que não vai ser tão grave como em países frios e com populações maiores”, diz Elisabet Andrade, de 56 anos, uma vendedora de produtos Avon e Natura que participa do protesto com uma máscara com a bandeira do Brasil. Ela afirma que todo mundo deveria se proteger com máscara e gel e diz que as lojas deveriam abrir por turnos, mas principalmente que é preciso sair às ruas para derrubar o governador e os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, para que deixem de atrapalhar Bolsonaro, que, com sua família, “vai resolver os problemas do Brasil”.

Contra a 'governabilidade pirata'

Os limites que existem são os da Constituição, e valem para todos, inclusive e sobretudo para o presidente. A única paciência que chegou ao fim, legitimamente e com razão, é a paciência da sociedade com um governante que negligencia suas obrigações, incita o caos e a desordem, em meio a uma crise sanitária e econômica
Felipe Santa Cruz, presidente da OAB

O Brasil testou positivo para a tristeza

Na nova linguagem do coronavírus, é como se um país inteiro tivesse testado positivo para a tristeza, vítima de uma pandemia de desumanidade em que homens cospem na cara de enfermeiras. A comorbidade tomou conta também da língua e, como esta não consegue ficar parada, como esta se mexe gostoso sempre à procura de novidades, não se fala de outro jeito. Estamos infectados pelo vírus vernacular – e daí?

Todo dia, da janela lateral de um quarto em que alguém tenta dormir e obnubilar esse palavrório do dicionário corona, ouve-se a voz de Milton Nascimento gritando “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós”. Faltam respiradores para os últimos civilizados, vacinas com plasma de resistência civil para os que não se conformam com a escalada de vermes e demais pestes afins.

Há quem, tomado por um achatamento da curva de sanidade mental, vá até a porta dos hospitais e tenta asfixiar, com buzinas e palavras de desordem em megafones, as derradeiras chances de um doente sobreviver. A razão foi intubada.

O “coronês” é a semântica de emergência que agora entra no hospital das comunicações verbais e, contaminando verbos, sujeitos e todos os insumos da frase, ajuda a desentender o que se passa. A empatia entrou em lockdown. Muitas palavras e poucos fármacos, a crônica em tempos de corona assim é.

Há “lives” por todos os lados, mortos mais ainda e uma enorme subnotificação dos que diariamente adquirem anticorpos contra tamanhos despropósitos. Esses sobreviventes querem permissão para deixar o desolamento social por um instante e ir ali, onde ele estiver, no escritório do germe, no gabinete do sódio, no covil da Covid, e devolver na cara os 600 perdigotos da tosse com que o coveiro adoeceu o país.

É o horror hoje, o sufoco amanhã e a confirmação do colapso do apocalipse a qualquer momento, em edição nem tão extraordinária assim. É UTI, é CTI, é EPI, é isso daí e mais a síndrome de angústia pelo golpe que está por vir aí.

Nesse pandemônio da pandemia, a blogueira abriu a champanhe e gritou “foda-se a vida”. O embaixador chamou o vírus de comunista. Os amantes, confinados na quarentena de suas sensações, não dizem nada.

Eles esperam que vaguem os leitos de terapia intensiva e aí então, novamente as máscaras arriadas, os lençóis de fio egípcio esticados, poderão contrariar as recomendações sanitárias de até anteontem. Deixarão para trás as janelas imunológicas. São socorristas do afeto ostensivo, do oxigênio fundamental, voluntários da pátria, e voltarão a dedicar suas vidas aos carinhos e pós-calipsos de sempre.

Até a abertura do protocolo deste penúltimo parágrafo, ninguém sabe como se livrar do patógeno maldito. Enquanto a cloroquina não se casa com o remdesivir para pôr ponto final nesse texto doloroso, não haverá álcool gel suficiente para apagar as palavras feias que agora contaminam o cotidiano. O período de incubação na fala é cada vez mais rápido.

Songamongas, as palavras do dicionário corona fingem-se assintomáticas. Escondem-se entre as vírgulas. Ao mesmo tempo que tiram o oxigênio do leitor, atrapalham os ventiladores mecânicos de inspiração do redator. Elas têm transmissão comunitária, destroem as células da gramática e, pior, misturam-se a um exército verde e amarelo de fanáticos. Eles se infectam uns aos outros, descerebrados em mostrar que o Brasil não detém só a exclusividade da jaboticaba. É também o único país do mundo capaz de produzir defensores da morte e - no velho sentido da palavra - testar negativo para as boas causas.

Pensamento do Dia


Bolsonaro propaga o vírus da anarquia institucional

Não é verdade que Jair Bolsonaro sofra de insanidade. Ele usufrui dela com extraordinário prazer. O problema não está no gozo que a falta de senso proporciona ao personagem. O insuportável é que, sendo o insano momentaneamente presidente, ele queira impor ao Brasil a sua loucura.

O país foi convertido em zona de guerra. Os brasileiros são torpedeados em duas frentes. Numa, o coronavírus mata em escala pandêmica. Noutra, o Brasil sofre ataques do seu próprio presidente. Bolsonaro diz "e daí?" para os milhares de mortos e propaga o vírus da anarquia institucional.

No exercício cotidiano do seu descaso sanitário, Bolsonaro tomou gosto pelas aglomerações, especialmente as de conteúdo golpista. É como se o presidente de 57,7 milhões de votos sonhasse com uma democracia sem Legislativo e sem Judiciário, na qual ele comandaria o governo civil mais militar que o país já conheceu.

Por sorte, Bolsonaro ainda não realizou o seu sonho. Ao contrário, conspira a favor da realização dos seus piores pesadelos. Há duas semanas, discursando para um ajuntamento de golpistas na frente do QG do Exército, Bolsonaro proclamou: "Não queremos negociar nada."

Neste domingo, Bolsonaro ornamentou outro ato antidemocrático. A pauta da manifestação sofreu dois acréscimos. Além das pauladas retóricas no Congresso e no Supremo, houve pancadaria contra jornalista e xingamento a Sergio Moro, o mais novo "comunista" dos devaneios bolsonaristas.

Dessa vez, Bolsonaro afirmou que não vai mais "admitir interferências" no seu governo. "Chegamos no limite", disse. "Acabou a paciência." Ele espera não ter problemas durante a semana. Do contrário, "não tem mais conversa". A Constituição "será cumprida a qualquer preço.".

Bolsonaro esclareceu que não está só. Enxerga do seu lado "o povo", "as Forças Armadas" e "Deus". Quer dizer: a era bolsonarista transcorre em dois mundos: o de Bolsonaro e o real.

No mundo de Bolsonaro, uma aglomeração de adoradores se confunde com "o povo". Generais que fracassam na tentativa de presidir o presidente simbolizam o "apoio" dos quarteis. E o populismo místico do presidente estimula nas almas mais ingênuas a crença em uma aliança do governo com o plano celestial.

No mundo real, ouve-se nas janelas e nas varandas o som das panelas. Escuta-se ao fundo o silêncio constrangido dos comandantes militares. De resto, a conversão de personagens como Roberto Jefferson e Valdemar Costa Neto em heróis da resistência revela que Deus está acima de todos mas terceirizou ao Tinhoso as negociações com o centrão.

No mundo de Bolsonaro, o presidente "chegou no limite". No mundo real, Bolsonaro ultrapassou todos os limites. Contra o coronavírus não há outro remédio que não seja o isolamento social que Bolsonaro desrespeita. Por sorte, contra o vírus da anarquia institucional há vacina disponível. Chama-se Constituição.

Bolsonaro ainda não notou, mas o país vem se imunizando contra o vírus presidencial. A despeito dos seus arroubos, o presidente manda cada vez menos. Suas decisões são refeitas e desfeitas ora no Congresso, ora no Supremo. Cresce nos poderes vizinhos a impressão de que talvez seja necessário aumentar a dose da vacina.

A 'gripezinha'

O biólogo e escritor britânico Richard Dawkins, professor emérito do New College da Universidade de Oxford — autor de O Gene Egoísta e Evolução, entre outras obras —, num comentário no Twitter, chama a atenção para um artigo da revista Science Magazine, da Associação Americana para Avanço da Ciência (AAAS), intitulado Como o coronavírus mata?, publicado no dia 17 deste mês. De autoria dos médicos Meredith Wadman, Jennifer Couzin-Frankel, Jocelyn Kaiser, Catherine Matacic, é um dos melhores textos sobre a pandemia, segundo Dawkins: “Se as pessoas na administração entenderem isso ou se importarem com isso, haveria um resultado melhor para a sociedade”, avalia.

Tratar desse assunto pode parecer chover no molhado, pois não se fala de outra coisa, mas o artigo realmente é muito bom. Ele faz um relato de como o novo coronavírus ataca o corpo humano e seus efeitos devastadores, “do cérebro aos pés”, ultrapassando o senso comum do diagnóstico de que é apenas uma síndrome resporatória aguda. “Pode atacar quase tudo no corpo, com consequências devastadoras”, segundo o cardiologista Harlan Krumholz, da Universidade de Yale e do Hospital Yale-New Haven, que lidera vários esforços para reunir dados clínicos sobre a Covid-19. “Sua ferocidade é de tirar o fôlego e é humilhante.”

O artigo corrobora o relato dos sobrevientes da doença e o testemunho dos médicos e de outros profissionais da saúde que atuam nas unidades de terapia intensiva aqui no Brasil. Muitas vezes esses últimos são duplamente derrotados: além de perderem pacientes, acabam adoecendo também e, em alguns casos, até morrem. Já passou da hora de o presidente Jair Bolsonaro ir a Manaus para ver o que é um colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) em meio à pandemia e parar de falar bobagens sobre a “gripezinha”. Tudo o que os profissionais de saúde precisam neste momento dramático é de mais apoio (equipamentos de proteção, respiradores, medicamentos) e distanciamento social.

Médicos e patologistas de todo o mundo estão lutando para entender os danos causados pelo coronavírus no corpo humano. Embora os pulmões sejam o ponto zero, o alcance do patógeno pode se estender a muitos órgãos, incluindo o coração e os vasos sanguíneos, rins, intestino e cérebro, o que explica a grande subnotificação do número de mortos, inclusive aqui no Brasil, devido às dificuldades de diagnóstico e falta de autópsias.

O vírus age como nenhum patógeno que a humanidade jamais viu. Quando uma pessoa infectada expele gotículas carregadas de vírus e outra pessoa as inala, o novo coronavírus (Sars-CoV-2) encontra um lar bem-vindo no revestimento do nariz, cujas células são ricas em uma enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2), assim como na traqueia. Em todo o corpo, a presença de ACE2, que normalmente ajuda a regular a pressão sanguínea, marca os tecidos vulneráveis à infecção, porque o vírus entra nessa célula receptora. Uma vez dentro, o vírus sequestra as máquinas da célula, fazendo inúmeras cópias de si mesmo e invadindo novas células.

À medida que o vírus se multiplica, uma pessoa infectada pode lançar grandes quantidades dele, principalmente durante a primeira semana. Os sintomas podem estar ausentes neste momento. Ou a nova vítima do vírus pode desenvolver febre, tosse seca, dor de garganta, perda de olfato e paladar ou dores de cabeça e corpo. Se o sistema imunológico não repelir o Sars-CoV-2 durante esta fase inicial, o vírus marcha pela traqueia para atacar os pulmões, onde pode se tornar mortal. Mas o vírus, ou a resposta do corpo a ele, pode ferir muitos outros órgãos: cérebro, olhos, fígado, coração e vasos sanguíneos, rins e intestinos.

Alguns médicos suspeitam de que o ataque vertiginoso do coronavírus no organismo seja uma reação exagerada e desastrosa do sistema imunológico conhecida como “tempestade de citocinas”, na qual os níveis de certas citocinas sobem muito além do necessário, e as células imunológicas começam a atacar tecidos saudáveis. Pode ocorrer vazamento de vasos sanguíneos, queda de pressão arterial, formação de coágulos e falência catastrófica de órgãos. Mas o pior dos mundos, com a presença de vírus no trato gastrointestinal, pode ser a possibilidade inquietante de que ele seja transmitido pelas fezes, ainda mais num país como o nosso, no somente uma parcela da populaçao tem, esgoto tratado. A sorte, porém, é de que ainda não está claro se as fezes contêm vírus infecciosos intactos ou apenas o seu RNA (ácido ribonucleico), uma molécula responsável pela síntese de proteínas das células do corpo.

Armas no Poder

Temos as Forças Armadas ao lado do povo, pela lei, pela ordem, pela democracia, pela liberdade
Jair Bolsonaro

Em meio à pandemia, o desmatamento dispara na Amazônia

A pandemia se tornou uma cortina de fumaça para o avanço do desmatamento na Amazônia. Com os olhos do Brasil — e do mundo — voltados para a crise do coronavírus, madeireiros, garimpeiros e grileiros multiplicaram ações criminosas, aproveitando-se do momento para avançar sobre a floresta com motosserras e retroescavadeiras. Os alertas de áreas devastadas bateram o recorde no primeiro trimestre deste ano, totalizando 796 quilômetros quadrados, o que representa um aumento de 51% em relação ao mesmo período de 2019, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Informações preliminares mostram que aumentou ainda mais o ritmo de estragos entre março e abril, justamente quando boa parte do Brasil entrou em quarentena.

Enquanto a supressão da mata segue em ritmo acelerado, as ações de fiscalização e os autos de infração vêm caindo. Desmoralizado desde o ano passado pelo discurso de um governo que fala em incentivar a exploração em áreas protegidas, o Ibama sofreu um baque adicional com a Covid-19. Calcula-se que quase um terço do efetivo de seus profissionais de campo tenha sido afastado por pertencer a grupos de risco. Se não bastasse, as equipes que continuam em ação vêm encontrando dificuldades para atuar em certas regiões, como o Norte do país, porque algumas prefeituras determinaram que elas devem passar por um período de quarentena. O pretexto é de que isso evitaria trazer de fora para dentro a doença. Um completo absurdo, é claro, pois acaba com o efeito surpresa de quem está lá para fazer um flagrante. “Seria importante que vocês reavaliassem essa conduta (...). Talvez esperar passar esse período de pandemia”, argumentou o prefeito de Uruará, Gilson Brandão, em áudio obtido por VEJA, no último dia 20, a fiscais do Ibama, que haviam determinado a saída de invasores e a retirada de gado da terra indígena de Cachoeira Seca, no interior do Pará.

O estado foi palco de um caso que exemplifica bem a situação atual de descalabro. No início de abril, uma equipe do Ibama, com o apoio da Força Nacional, realizou uma megaoperação em reservas indígenas no sul do Pará — área onde o sistema identificou o maior território derrubado da floresta. Orientados por indígenas, os agentes flagraram, ao longo de duas semanas de investigação, serrarias, pontes e aeroportos clandestinos no meio da mata que deveria ser fechada, conforme relatório interno obtido por VEJA. Escondidos com galhos e folhas de árvores para escapar do radar dos helicópteros foram encontrados também tratores, galões de combustível e dezenas de armas. Depois, os fiscais incendiaram cerca de setenta equipamentos dos invasores, conforme manda a lei no caso de impossibilidade de realizar o transporte e a apreensão desses materiais.

O trabalho dos agentes na região continuou nos últimos dias, mas a equipe sofreu baixas importantes. Responsáveis por coordenar a megaoperação, dois diretores de fiscalização do órgão, Renê de Oliveira e Hugo Loss, foram exonerados na última quinta-feira, dia 30. O chefe deles, o diretor de Proteção Ambiental, Olivaldi Azevedo,já havia sido destituído no dia 14. A interlocutores, os profissionais disseram que não houve nenhuma determinação formal para interromper a fiscalização. Segundo eles, no entanto, ficou claro que a forma de trabalho “não agradou” à cúpula do Ministério do Meio Ambiente. Em 21 de abril, dezesseis analistas ambientais do Ibama saíram em defesa dos companheiros, enviando um documento de protesto à chefia do órgão ambiental. Já o Ministério Público Federal abriu uma ação civil pública para apurar se houve “improbidade administrativa e violação aos princípios da moralidade e legalidade” na demissão de Olivaldi. O Ministério do Meio Ambiente não justificou as demissões. Apesar de as ações no Pará estarem amparadas na lei, o presidente Jair Bolsonaro é um crítico contumaz desse tipo de operação. “Não é para queimar nada”, disse ele em abril do ano passado, criticando o ocorrido em um caso semelhante. O presidente também é um ferrenho defensor da exploração de minérios em áreas indígenas — desde fevereiro tramita no Congresso um projeto de lei do Executivo que autoriza essas atividades.

Quase um consenso entre os especialistas, o enfraquecimento da fiscalização por causa da Covid-19 pode levar a Amazônia a novos recordes de desmatamento. “É preocupante, porque ainda estamos na época das chuvas. A partir de maio a tendência é aumentar com as queimadas”, diz Carlos Souza Junior, pesquisador do instituto Imazon. No dia 23, a força-tarefa da Procuradoria na Amazônia moveu um processo na Justiça para cobrar a ação imediata do governo para conter a “destruição da floresta”. Diante dos alertas, a preocupação internacional com o tema voltou a aparecer. No dia 26, a consultoria global Eurasia alertou os investidores para o fato de que a pandemia aceleraria o desmatamento. O assunto ganhou destaque em jornais como o britânico The Guardian. A volta das manchetes internacionais acusando o Brasil de descaso com esse patrimônio ambiental é outra péssima notícia para a imagem do país, cujo governo já vem sendo retratado no exterior como um dos líderes do discurso negacionista em relação ao risco do coronavírus. O pior é que, em ambas as situações, as críticas são pertinentes.
Eduardo Gonçalves

E daí? A pulsão da morte

"Entre mortos e doentes/ No meio dessas bananas/ Os meus ódios e os meus medos? E daí?”

Essa poderia ser uma versão sinistra de Bolsonaro para a bela cancão de Milton Nascimento “E daí?”.

Sua reação diante dos mortos pelo coronavírus não me surpreende. Creio que posso entendê-la, pois, de certa forma, venho falando dela desde o princípio do governo. Eu a chamei nos meus artigos de namoro com a morte. Era uma forma de sistematizar minhas críticas.

Umberto Eco afirma com razão que por trás de um regime e sua ideologia há sempre um modo de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis. É essa pulsão de morte que contesto na política de armas, na retirada dos radares das estradas, no afrouxamento das regras de transporte de crianças nos carros.


No mesmo dia em que foi treinar tiro ao alvo, Bolsonaro disse sua frase histórica diante dos mortos na pandemia. Creio que entendo o que há por trás disso. Ele acredita na tese da imunização do rebanho. Nela, a saída é a inevitável contaminação da maioria para que se resolva de uma vez o problema.

Muitos cientistas afirmam isso. Pode ser que tenham razão. No entanto, o isolamento social torna espaçada essa contaminação, permite que os sistemas de saúde não entrem em colapso: salva vidas.

Bolsonaro até que compreende essa tese. Mas responde com outra: necessidade do crescimento econômico.

A pandemia coloca hoje em discussão o crescimento pelo crescimento. Amsterdã prepara-se para buscar modelos sustentáveis, depois da crise, com o argumento de que o crescimento pelo crescimento é, na verdade, a filosofia da célula cancerosa.

Durante a pandemia, manifestantes contra o isolamento social fizeram buzinaços diante de hospitais em São Paulo. A mensagem que queriam passar era da volta ao trabalho. Assim como não importava o conforto dos doentes hospitalizados, também não importavam as mortes que viriam de uma suspensão prematura da quarentena.

Nesse clima nacional, uma influenciadora digital dá uma festa em plena quarentena e lança o grito: “foda-se a vida”, uma versão tupiniquim do “viva a morte”.

Trabalho com essas resistências no cotidiano. Outro dia, resenhei o artigo de um médico americano que falava do avanço silencioso da pneumonia em pessoas atacadas pelo vírus. Para evitar tantas mortes, ele sugeria que se usasse um oxímetro para medir constantemente o nível de oxigênio no organismo.

Uma leitora reagiu furiosa a esse texto. Nunca mais me leria pois, segundo ela, não compreendo como o Brasil é pobre e não tem condições de pensar nesses instrumentos.

O oxímetro custa em torno de R$ 100. O que ela queria dizer é que estamos condenados pelas circunstâncias a um grande número de mortes.

As pessoas que não se resignam diante das mortes com a pergunta “e daí?” são vistas como personagens trágicas que se rebelam contra o destino.

É nesse contexto de namoro com a morte que se dá também a petrificação do pensamento, a recusa à modernidade, a negação de fenômenos planetários que podem nos inviabilizar como espécie.

Insisto nesse ponto porque a história nunca estará completa se nos detemos apenas no aquecimento global e deixamos de lado os hábitos culturais e as pulsões que o nutrem.

Quando escrevermos a história da passagem dessa peste pelo Brasil, não poderemos esquecer que ela foi politizada, tratada como um vírus comunista, e uma nuvem de suspeição se ergueu contra os que queriam combatê-la de frente.

Com um tempo e alguma pesquisa, talvez possamos estabelecer um paralelo com a chegada dos colonizadores ao continente. Um conjunto de mitos impediu que fossem vistos na sua dimensão real. E isso precipitou a ruína das civilizações aqui existentes.

Ao longo do caminho, tenho enfatizado algumas ideias. Uma delas é a necessidade de uma ampla frente pela vida para se opor à política da morte.

A outra é a confiança de que as pessoas mudam, nem todas é verdade, mas mudam. Quantos não concluíram, depois de atingidos, que o coronavírus não é apenas uma gripe comum?

Outros, certamente, começarão a respeitar a ciência, podem chegar ao ponto de admitir que a Terra é redonda, que vacina garante a sobrevivência e que a humanidade está realmente ameaçada pela degradação ambiental.

Uma aliança pela vida pressupõe uma tática diferente da radicalização que produziu Bolsonaro.