segunda-feira, 4 de maio de 2020

O Brasil testou positivo para a tristeza

Na nova linguagem do coronavírus, é como se um país inteiro tivesse testado positivo para a tristeza, vítima de uma pandemia de desumanidade em que homens cospem na cara de enfermeiras. A comorbidade tomou conta também da língua e, como esta não consegue ficar parada, como esta se mexe gostoso sempre à procura de novidades, não se fala de outro jeito. Estamos infectados pelo vírus vernacular – e daí?

Todo dia, da janela lateral de um quarto em que alguém tenta dormir e obnubilar esse palavrório do dicionário corona, ouve-se a voz de Milton Nascimento gritando “Que tragédia é essa que cai sobre todos nós”. Faltam respiradores para os últimos civilizados, vacinas com plasma de resistência civil para os que não se conformam com a escalada de vermes e demais pestes afins.

Há quem, tomado por um achatamento da curva de sanidade mental, vá até a porta dos hospitais e tenta asfixiar, com buzinas e palavras de desordem em megafones, as derradeiras chances de um doente sobreviver. A razão foi intubada.

O “coronês” é a semântica de emergência que agora entra no hospital das comunicações verbais e, contaminando verbos, sujeitos e todos os insumos da frase, ajuda a desentender o que se passa. A empatia entrou em lockdown. Muitas palavras e poucos fármacos, a crônica em tempos de corona assim é.

Há “lives” por todos os lados, mortos mais ainda e uma enorme subnotificação dos que diariamente adquirem anticorpos contra tamanhos despropósitos. Esses sobreviventes querem permissão para deixar o desolamento social por um instante e ir ali, onde ele estiver, no escritório do germe, no gabinete do sódio, no covil da Covid, e devolver na cara os 600 perdigotos da tosse com que o coveiro adoeceu o país.

É o horror hoje, o sufoco amanhã e a confirmação do colapso do apocalipse a qualquer momento, em edição nem tão extraordinária assim. É UTI, é CTI, é EPI, é isso daí e mais a síndrome de angústia pelo golpe que está por vir aí.

Nesse pandemônio da pandemia, a blogueira abriu a champanhe e gritou “foda-se a vida”. O embaixador chamou o vírus de comunista. Os amantes, confinados na quarentena de suas sensações, não dizem nada.

Eles esperam que vaguem os leitos de terapia intensiva e aí então, novamente as máscaras arriadas, os lençóis de fio egípcio esticados, poderão contrariar as recomendações sanitárias de até anteontem. Deixarão para trás as janelas imunológicas. São socorristas do afeto ostensivo, do oxigênio fundamental, voluntários da pátria, e voltarão a dedicar suas vidas aos carinhos e pós-calipsos de sempre.

Até a abertura do protocolo deste penúltimo parágrafo, ninguém sabe como se livrar do patógeno maldito. Enquanto a cloroquina não se casa com o remdesivir para pôr ponto final nesse texto doloroso, não haverá álcool gel suficiente para apagar as palavras feias que agora contaminam o cotidiano. O período de incubação na fala é cada vez mais rápido.

Songamongas, as palavras do dicionário corona fingem-se assintomáticas. Escondem-se entre as vírgulas. Ao mesmo tempo que tiram o oxigênio do leitor, atrapalham os ventiladores mecânicos de inspiração do redator. Elas têm transmissão comunitária, destroem as células da gramática e, pior, misturam-se a um exército verde e amarelo de fanáticos. Eles se infectam uns aos outros, descerebrados em mostrar que o Brasil não detém só a exclusividade da jaboticaba. É também o único país do mundo capaz de produzir defensores da morte e - no velho sentido da palavra - testar negativo para as boas causas.

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