domingo, 27 de janeiro de 2019

Brasil de mentirinha

Todos sabem quais são os culpados, inclusive Fernando Pimentel que agiu criminosamente

O maior problema do país, na essência, é o apodrecimento da Justiça. Esta afirmação pode parecer estranha e até inusitada, mas é absolutamente verdadeira. Todos percebem que o Brasil enfrenta uma gravíssima crise institucional, em que os três Poderes da República não cumprem suas obrigações constitucionais de trabalhar em prol do interesse público.

Como no final todos os problemas desembocam na Judiciário, fica claro que nele reside a falha principal, o defeito de origem. Porque, se a Justiça realmente funcionasse em defesa do bem comum, Executivo e Legislativo teriam de se enquadrar. Esta é a equação que nos interessa hoje.

O caso de Brumadinho exibe bem nitidamente essa situação. Neste sábado, a procuradora-geral Raquel Dodge esteve na região para avaliar os danos e afirmou que não se pode apontar os culpados, porque é preciso haver antes uma ampla investigação.

Como se vê, nada mudou em relação à tragédia anterior em Mariana e nada vai mudar. Naquele acidente, a Vale deixou claro seu descaso com a responsabilidade social que é exigida no ramo da mineração. Morreram 19 pessoas, cujas famílias até hoje não foram indenizadas, junto com as demais vítimas.

O mais incrível é que ninguém foi responsabilizado. Não houve culpados. E em novembro de 2016, exatamente um ano depois da tragédia de Mariana, o então governador petista Fernando Pimentel sancionou uma lei estadual (nº 2.946) afrouxando a fiscalização ambiental, ao invés de reforçá-la.

E foi justamente esta lei que agora, em dezembro de 2018, possibilitou reduzir o nível de risco da Mina do Feijão de 6 para 4 e lhe deu licenciamento por mais 10 anos, com aumento da produção de minério, sem reforço da barragem.

A empresa Vale, que reluta em indenizar as vítimas, realmente não se preocupou em fortalecer suas barragens depois do rompimento em Mariana. Pelo contrário, pediu e conseguiu licença para aumentar a produção em Brumadinho, onde a administração da mina e o refeitório funcionavam a jusante da barragem, eram mortes anunciadas. Mesmo assim, segundo a procuradora Raquel Dodge, ninguém sabe quem são os culpados.

Já dissemos aqui na “Tribuna da Internet” que alguém precisa informar à chefe do Ministério Público Federal que omissão deliberada é crime, e sua gravidade é proporcional ao número de vítimas – no caso, cerca de 300 mortes anunciadas.

Mas as autoridades judiciais e judiciárias não estão acostumadas a agir com rigor contra representantes das elites. Inquéritos e processos vão tramitar naquela velocidade que todos conhecem, pois nada mudou e é preciso mudar.

O pesquisador Silver Singer, do Centro de Tecnologia Mineral (Cetem), explicou por que não foi possível evitar um segundo acidente: “O país não aprendeu nada, ou quase nada. As empresas de mineração aprenderam a gastar fortuna com advogados para se defender e as leis foram feitas sob influência do lobby da mineração. O novo marco regulatório do setor, aprovado no ano passado, favorece a impunidade e transforma o Estado em menos responsável ainda. Já houve tempo suficiente para discutir responsabilidades mínimas, mas não foi o que vimos”.

Quem se deu bem no lobby da mineração, em 2017, foi o então ministro Edison Lobão, representante da quadrilha de Temer. Mas o atual governo foi eleito para limpar o país. Eis uma boa oportunidade de demonstrar que essa prioridade será alcançada. Como diz o advogado Jorge Béja, basta o presidente Bolsonaro cassar a concessão da Vale na mina de Brumadinho, um simples decreto, poucas linhas, coisa simples.

E falta também prender preventivamente o responsável principal, o presidente da Vale, Fábio Schwartzman, pelo conjunto da obra e, mais especificamente, por permitir que a administração e o refeitório da mina funcionassem a jusante da barragem, provocando as cerca de 300 mortes.

Somos a primeira pessoa do plural

Estamos tão perto uns dos outros. Somos contemporâneos, podemos juntar-nos na mesma frase, conjugarmo-nos no mesmo verbo e, no entanto, carregamos um invisível que nos afasta. Ouvimos os vizinhos de cima a arrastarem cadeiras, a atravessarem o corredor com sapatos de salto alto, a sua roupa molhada pinga sobre a nossa roupa a secar; ouvimos a voz dos vizinhos de baixo, dão gargalhadas, a nossa roupa molhada pinga sobre a roupa deles a secar; cheiramos as torradas dos vizinhos do lado, ouvimo-los a chamar o elevador e, no entanto, o nosso maior problema não é apenas não nos reconhecermos na rua. O nosso problema grande é estarmos convencidos que os problemas deles não nos dizem respeito. A nossa tragédia é acharmos que não temos nada a ver com isso.


Há três ou quatro anos, caminhava com um conhecido no aeroporto. De repente, ouviu-se um estalido. Ele agarrou-se ao peito com as duas mãos, caiu de joelhos e, pálido, esperou por morrer. Não morreu. Tinha-lhe rebentado um isqueiro no bolso da camisa. Aliviado, encostado a um balcão, a beber um copo de água, explicou que esse ardor repentino e esse susto pareceram-lhe um ataque cardíaco. Nunca tinha tido um ataque cardíaco antes, por isso confiou em descrições vagas, a que nunca tinha realmente prestado muita atenção.

Há alguns anos também, talvez um pouco mais do que três ou quatro, tinha acabado de participar num jantar cordial, reconfortante. Toda a gente estava bem disposta, à porta dos anfitriões, longa despedida, graças, à espera de táxi. De repente, tocou o telefone de um senhor com quem tinha estado a conversar durante todo o serão. Ninguém reparou nesse telefonema até ao momento em que o senhor começou a chorar convulsivamente. Ficámos todos a olhar sem saber como chegar até ele. Tínhamos braços, estendíamo-los na sua direcção, mas continuavam distantes.

Irritamo-nos com a existência uns dos outros. Fazemos sinais de luzes àquele homem com setenta anos, num carro dos anos setenta, que anda a setenta quilómetros por hora na auto-estrada. Contrariados, esperamos por aquela pessoa que atravessa a passadeira, enchemos as bochechas de ar e sopramos. Impacientes, batemos no volante. Daí a minutos, depois de estacionarmos o carro, somos essa pessoa a atravessar a passadeira. Da mesma maneira, daqui a algum tempo, não muito, seremos esse homem com setenta, dos setenta, a setenta. O tempo passa. Se deitarmos lixo para o chão, alguém o apanhará.

Um amigo que teve um AVC, que passou por uma reabilitação profunda, que enfrentou a morte e a paralisia, depois de anos de fisioterapia, depois de esforço gigante e sofrimento gigante, falou-me da forma como esse susto muda tudo. Passa-se a apreciar aquilo que realmente importa. A imensa maioria das preocupações transformam-se em luxos ridículos, desprezíveis, alimentados pela cegueira. Após essa experiência de quase morte, ganha-se uma nitidez invulgar, que, no entanto, esteve sempre lá. Para percebê-la, bastava levar a sério a promessa de transitoriedade de tudo e, também, levar a sério essa palavra, esse planeta: o amor. Ao ouvi-lo, fui capaz de entender aquilo que dizia. Depois, também fui capaz de entender quando me disse: mas, sabes, ao fim de algum tempo, esquecemo-nos, voltamos a tomar tudo por garantido e voltamos a cometer os mesmos erros.

Repito para mim próprio: estamos tão perto uns dos outros. Não há nenhum motivo para acreditarmos que ganhamos se os outros perderem. Os outros não são outros porque levam muito daquilo que nos pertence e que só pode existir sendo levado por eles. Eles definem-nos tanto quanto nós os definimos a eles. Eles são nós. Eles somos nós. Se tivermos essa consciência, podemos usar todo o seu tamanho. Mesmo que pudéssemos existir sozinhos, de olhos fechados, com os ouvidos tapados, seríamos já bastante grandes, mas existe algo muito maior do que nós. Fazemos parte dessa imensidão. Somos essa imensidão que, vista daqui, parece infinita.
José Luís Peixoto

O Brasil não merece Tom Jobim, a moça de Pompeia e a vaca atolada

Antonio Carlos Jobim nasceu num 25 de janeiro. Se fosse vivo para ter completado 92 anos nesta sexta, estaria morto. De vergonha, de tristeza. Morto de Brasil, porque este país mata. São mais de 60 mil pessoas assassinadas todo ano, além das 19 que o desastre de Mariana levou em 2015, além das que sucumbem diariamente aos descasos públicos e privados.

O Brasil não merece Tom Jobim. Águas de março , composição de 1972, é “o samba mais bonito do mundo”, na definição de Chico Buarque. É a lama, a lama do bem, da promessa de vida no teu coração. Há alegria, e não metáfora, quando se canta “o fim do caminho”, “o fim da picada”, “o fim da canseira”, “o fim da ladeira”. Mas, nesta terra que não merece Tom Jobim, a ladeira não dá samba nem tem fim.

A cada Mariana, a cada Brumadinho, perguntamos: agora chega, certo? Mas não. O Brasil é um país que não chega.

O Brasil não merece a vaca que, nas imagens do desastre, está coberta de uma lama que varia do rosa ao marrom, uma pasta fim-de-mundo. O brejo foi até ela. Símbolo do desmatamento, porque matas são queimadas para a pecuária passar, a vaca atolada é bovinamente inocente. Calhou de pastar no país errado.


Outras imagens mostram bombeiros corajosos – e, muito provavelmente, mal remunerados – salvando pessoas transformadas em figuras de Pompeia. A cidade do Império Romano foi destruída no ano 79 pela erupção do vulcão Vesúvio. No século XVIII, escavações chegaram até corpos que permaneciam na posição em que tinham sido atingidos pelas cinzas e pela lama. O inimigo de Pompeia era uma avassaladora força da natureza. O Brasil não precisa disso. Nós somos o nosso próprio Vesúvio.

As histórias dessas esculturas vivas – e das outras também – serão contadas pela imprensa. Saberemos, por exemplo, quem é a moça de cabelo rabo-de-cavalo que tem o braço esquerdo puxado por um bombeiro e, assim, é resgatada. Voltarão à lama os repórteres que cobriram a tragédia de Mariana e vinham denunciando, nos últimos três anos, que nada estava sendo feito para evitar outro desastre. E veremos imagens que, com a ingenuidade das vacas, achávamos possível não ver de novo.

Antes das imagens, costumam chegar as palavras. E estas também se repetem, sadicamente, a cada desastre.

O presidente da Vale, Fabio Schvarstman, disse estar consternado com o rompimento da barragem e que a hora é de socorrer as vítimas. A empresa pouco se preocupou com as consequências do desastre de Mariana e a destruição da vida das famílias da região. Preferiu gastar fortunas com advogados que protegessem seus lucros – e não seus próprios funcionários, agora atingidos em Brumadinho. Para o “mercado”, a ex-estatal Vale é símbolo de uma privatização bem-sucedida. É símbolo, antes de tudo, do capitalismo à brasileira.

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu “providências firmes das instituições”. Seu retrospecto no cargo não lhe confere muita credibilidade.

O vice-presidente Hamilton Mourão elegeu uma prioridade: “Essa conta não pode vir para o nosso governo”. Realmente não pode. E louve-se a informação de que Jair Bolsonaro decidiu com rapidez sobrevoar a área. Em 2015, Dilma Rousseff levou sete dias para fazer o mesmo.

O problema, general Mourão, é que são muitas e antigas as ladeiras por onde a lama brasileira desce. Nossa legislação é construída por políticos sustentados por empresas de mineração, pelo agronegócio, por fabricantes de armas e munições, por impérios religiosos. O resultado são barragens rompidas, florestas destruídas, indígenas mortos em suas terras, brasileiros (civis e militares) mortos aos magotes por armas legalizadas, mulheres mortas em clínicas de aborto clandestinas, gays mortos a pancadas, militantes assassinadas com tiros na cabeça e depois assassinadas de novo por políticos que violentam sua memória... E muitos desses políticos e desses interesses estão representados no novo governo federal.

Mas não tem nada, não. Este é o país do futuro. O Brasil acima de tudo. E Tom Jobim longe disso. Ele não mereceria.