sexta-feira, 16 de agosto de 2019
A vulgaridade é lixa áspera
A vulgaridade é lixa áspera em que me ralo toda. E a vulgaridade está comandando o momento. Tento entender como queimamos as pontes que nos ligavam a comportamentos mais elegantes.
Somos seres de rituais. Do café da manhã ao casamento, tudo é ritualizado. E cada rito é um combo que vem com seus próprios trajes e linguagem. Não participamos dos rituais com as mesmas roupas com que enfrentamos o batente. Nem com o mesmo espírito. Como um instrumento, o ritual exige embocadura.
Os juízes do Supremo usam togas, os padres usam batina, os generais usam fardas. Os trajes dizem do cargo. E, quando no cargo, quem os veste fala linguagens condizentes.
Mas o presidente fala à nação envolto na capa do barbeiro e com voz displicente diz inverdades ofensivas, enquanto o profissional faz seu serviço de tesoura cuidando para não encobrir o cliente. Não se trata de acaso nem descuido. A cena bem concebida faz parte da estratégia “gente como a gente”.
Produto dos tempos modernos, essa estratégia destina-se a falar diretamente com o eleitor que gosta de se ver representado ipsis litteris, quase como em uma caricatura, e busca entre os candidatos aquele que replica não só seus pensamentos como suas próprias atitudes, que diz frases de botequim como ditas diante do balcão. É o eleitor que ainda não assimilou o conceito de representação simbólica. E, ao que parece, há muitos.
Estratégia idêntica comanda frases como: “Os caras vão morrer na rua igual baratas, pô. E tem que ser assim”, em que o desleixe da frase veste de cores populares a ferocidade do conteúdo, e angaria seguidores a favor da “retaguarda jurídica”, porta aberta para os policiais matarem livremente.
É o mesmo princípio da propaganda que, em frases destinadas ao grande público, comete erros propositais de português para facilitar a identificação e garantir a aquisição do produto.
As redes sociais, veículo favorito do clã presidencial, aninham alto grau de estratégia e de vulgaridade. A estratégia mais frequentada consiste em mostrar-se melhor do que se é na realidade. Chama-se a isso “construir a imagem”. Arriscada arquitetura que põe na fachada somente o belo, e deixa o feio escondido, corroendo as estruturas –bom exemplo disso está na novela das nove, com a vilã construindo imagem impecável enquanto peca nas coxias. “Construir a imagem” tornou-se lícito, não sendo considerado imoral ou sequer expediente enganoso.
A vulgaridade vai por conta da exibição. No passado remoto em que fui educada, exibir-se ou gabar-se era deselegante. Hoje é dever de cada um, atalho certo no caminho que conduz aos tapetes vermelhos e aos milhões de seguidores. Fomos engolidos pela multidão, só ganha destaque e dinheiro aquele que consegue emergir. E todos os meios para isso são considerados válidos, legítima defesa contra a escuridão do anonimato. Mais brilha quem mais se exibe.
Tenho me perguntado para que porta-voz oficial se quem porta a voz do presidente é ele mesmo, galopando desenfreado no dorso do Twitter ou em situações nada oficiais. O palavreado chulo, grosseiro, que não faz questão de disfarçar o ódio, brota inesperado e nos cobre de vergonha.
As pontes para a elegância foram queimadas há tempos em favor do mercado, e progressivamente cada um queimou as suas. Parafraseando o poeta, a elegância é só um quadro na parede, mas como dói a sua ausência.
Somos seres de rituais. Do café da manhã ao casamento, tudo é ritualizado. E cada rito é um combo que vem com seus próprios trajes e linguagem. Não participamos dos rituais com as mesmas roupas com que enfrentamos o batente. Nem com o mesmo espírito. Como um instrumento, o ritual exige embocadura.
Os juízes do Supremo usam togas, os padres usam batina, os generais usam fardas. Os trajes dizem do cargo. E, quando no cargo, quem os veste fala linguagens condizentes.
Mas o presidente fala à nação envolto na capa do barbeiro e com voz displicente diz inverdades ofensivas, enquanto o profissional faz seu serviço de tesoura cuidando para não encobrir o cliente. Não se trata de acaso nem descuido. A cena bem concebida faz parte da estratégia “gente como a gente”.
Produto dos tempos modernos, essa estratégia destina-se a falar diretamente com o eleitor que gosta de se ver representado ipsis litteris, quase como em uma caricatura, e busca entre os candidatos aquele que replica não só seus pensamentos como suas próprias atitudes, que diz frases de botequim como ditas diante do balcão. É o eleitor que ainda não assimilou o conceito de representação simbólica. E, ao que parece, há muitos.
Estratégia idêntica comanda frases como: “Os caras vão morrer na rua igual baratas, pô. E tem que ser assim”, em que o desleixe da frase veste de cores populares a ferocidade do conteúdo, e angaria seguidores a favor da “retaguarda jurídica”, porta aberta para os policiais matarem livremente.
É o mesmo princípio da propaganda que, em frases destinadas ao grande público, comete erros propositais de português para facilitar a identificação e garantir a aquisição do produto.
As redes sociais, veículo favorito do clã presidencial, aninham alto grau de estratégia e de vulgaridade. A estratégia mais frequentada consiste em mostrar-se melhor do que se é na realidade. Chama-se a isso “construir a imagem”. Arriscada arquitetura que põe na fachada somente o belo, e deixa o feio escondido, corroendo as estruturas –bom exemplo disso está na novela das nove, com a vilã construindo imagem impecável enquanto peca nas coxias. “Construir a imagem” tornou-se lícito, não sendo considerado imoral ou sequer expediente enganoso.
A vulgaridade vai por conta da exibição. No passado remoto em que fui educada, exibir-se ou gabar-se era deselegante. Hoje é dever de cada um, atalho certo no caminho que conduz aos tapetes vermelhos e aos milhões de seguidores. Fomos engolidos pela multidão, só ganha destaque e dinheiro aquele que consegue emergir. E todos os meios para isso são considerados válidos, legítima defesa contra a escuridão do anonimato. Mais brilha quem mais se exibe.
Tenho me perguntado para que porta-voz oficial se quem porta a voz do presidente é ele mesmo, galopando desenfreado no dorso do Twitter ou em situações nada oficiais. O palavreado chulo, grosseiro, que não faz questão de disfarçar o ódio, brota inesperado e nos cobre de vergonha.
As pontes para a elegância foram queimadas há tempos em favor do mercado, e progressivamente cada um queimou as suas. Parafraseando o poeta, a elegância é só um quadro na parede, mas como dói a sua ausência.
O olhar mais severo
Se não nos decidirmos a olhar o mundo gravemente, com olhos severos e avaliadores, o mais certo é termos apenas um dia para viver, o mais certo é deixarmos a porta aberta para um vazio infinito de morte, escuridão e malogroJosé Saramago, " Deste mundo e do outro"
A presença do fígado na vida pública
Reconheçamos, porém, que não se trata de uma constante. A política biliosa diminui em certos períodos e aumenta em outros, e varia muito de um país a outro. Veja-se o caso do antissemitismo. Na Europa central e oriental, ele tem uma longa história. Mas hoje o vemos em preocupante ascensão na França – o farol da humanidade –, a ponto de forçar numerosas famílias judias de longa tradição a deixarem o país. A reação à imigração é a causa mais visível, mas não a única. E não nos esqueçamos de que algum antissemitismo sempre existiu na França, basta lembrar o affair Dreifuss, no final do século 19.
Na presente década, a política raivosa espraiou-se por numerosos países, turbinada por dois componentes novos. Primeiro, a internet, cujo caráter “impessoal” parece estimular milhões de pessoas a vocalizar uma agressividade que não teriam coragem de exprimir cara a cara com seus interlocutores, ou mesmo numa assembleia. Segundo, numerosos líderes políticos, vários deles ocupando posições públicas de relevo, têm patrocinado atitudes biliosas, seja por acreditarem sinceramente nelas, seja para capitalizá-las eleitoralmente, numa tentativa nada sutil de transformar a democracia em fascismo. Um exemplo egrégio é o sr. Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, cujo mote é o estapafúrdio conceito de “democracia iliberal”, como se o substantivo e o adjetivo não se repelissem mutuamente.
Nos Estados Unidos, somente neste ano já se registraram dezenas de ataques a imigrantes de origem hispano-americana. A loucura subjacente a tais atentados é o que denominam “nacionalismo branco”, ou “supremacia branca”, vale dizer, a crença irracional de que imigrantes “não brancos” tomarão conta do país e subjugarão a parcela “legitimamente ariana” da sociedade. Essa forma de racismo, mais frequente entre as camadas de renda média e baixa, vem de longe, mas é atualmente fomentada por atitudes e interesses que vêm de cima. Do próprio presidente da República, para ser exato. Em sua edição de junho, a respeitada revista The Atlantic estampou uma matéria de 12 páginas intitulada O racismo de Donald Trump – uma história oral. É uma compilação de declarações e ações perpetradas pelo presidente americano ao longo de 40 anos, com meticulosa atenção a fontes e datas.
Gravações liberadas poucos anos atrás evidenciaram o linguajar rombudamente racista do presidente Richard Nixon e de Ronald Reagan, este à época governador da Califórnia. Mas Donald Trump deixa os dois no chinelo. Dou um exemplo. No dia 19 de abril de 1989, um grupo de adolescentes pretos e latinos foram acusados de estuprar uma mulher branca que praticava jogging no Central Park. Rápido no gatilho, Trump só precisou de 12 dias para publicar nos quatro principais jornais de Nova York um anúncio no qual afirmava que era mister “fazê-los sofrer” e levá-los à cadeira elétrica. E persistiu em sua campanha até que, em 1990, os rapazes foram condenados por diversas ofensas violentas, inclusive tentativa de homicídio. Finalmente, em 2002, a Justiça inocentou-os com base na prova de DNA e na confissão do verdadeiro estuprador.
Claro, o “fator fígado” não é só racismo. E racismo não é só um sentimento de hostilidade motivado por características físicas das minorias contra as quais se volta. Tem em seu bojo uma insegurança quase inexplicável, uma necessidade profunda de pertencimento a um grupo, e por um anseio de “mesmismo” (sameness, em inglês) e, reciprocamente, por uma rejeição de toda diferença e toda diversidade.
As determinantes do mal-estar global desta década são, como se vê, variadas. E a atmosfera raivosa que hoje se manifesta na sociedade brasileira, como devemos tentar compreendê-la? A reflexão tem de começar pelo bolsonarismo, no qual, porém, não vejo um componente racista. O ponto de partida do bolsonarismo foi a reação suscitada pelas lambanças (recessão, corrupção) perpetradas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) durante três décadas, associada à inapetência política dos partidos de centro. Ele ganhou corpo com o estilo ferrabrás do personagem Jair Bolsonaro, uma macheza em parte genuína e em parte calculada para manter a fidelidade de seu rebanho. Mas decorreu também de fatores objetivos, muito mais sérios e relevantes, entre os quais é imperativo destacar a propensão da casta patrimonialista que habita Brasília a tratar as esferas pública e privada como uma coisa só, privatizando benefícios e socializando prejuízos. É a “velha política” do linguajar bolsonarista, sem esquecer, porém, que o clã Bolsonaro vê o nepotismo como a coisa mais normal do mundo e que o próprio Supremo Tribunal Federal, que não é um órgão “político” no sentido banal do termo, tem se notabilizado por comportamentos igualmente desprovidos de substância republicana.
Sabemos todos que o controle do Estado pela casta patrimonialista é a causa principal de nossa estagnação econômica e de suas sequelas, entre as quais o vertiginoso aumento da violência. Se Bolsonaro der por encerrada a campanha eleitoral e compreender os requisitos do cargo que ocupa, contendo suas inclinações figadais, é possível que o ministro Sergio Moro consiga minorar os males decorrentes da criminalidade e Paulo Guedes possa robustecer a recuperação econômica, cujos sinais são por enquanto tênues. Se não, oremos.
'Abuso de autoridade' une os sujos e mal lavados
Armou-se em Brasília uma grande encenação para aprovar na Câmara o projeto de lei sobre abuso de autoridade. O PSL de Jair Bolsonaro se juntou ao pedaço bandalho do Legislativo —incluindo PT e centrão— para colocar em pé uma lei que intimida investigadores, procuradores e juízes.
Em duas semanas, o presidente da República terá de informar ao país se vai sancionar ou vetar essa reação da oligarquia política à Lava Jato. Dependendo da decisão que vier a tomar, Bolsonaro pode definir o futuro de Sergio Moro no governo. A eventual sanção da proposta condenaria o ex-juiz da Lava Jato a pedir o boné. Sob pena de se desmoralizar um pouco mais.
Há no palco um inusitado encontro entre sujos e mal lavados. Sob investigação, Flávio Bolsonaro se diz "perseguido" pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Repete um lero-lero típico do PT e de outros encrencados. Os interesses desses pseudo-perseguidos se juntaram no escurinho do voto simbólico. Coisa combinada com Rodrigo Maia, presidente da Câmara, para evitar a exposição do rosto dos partidários da desfaçatez no painel eletrônico da Câmara.
Um forte cheiro de queimado exala do palco. Apesar da fumaça, pouca gente se anima a gritar incêndio dentro do teatro. Por ora, só o Partido Novo, que tem uma bancada de escassos oito deputados. Mas a coisa é tão escancarada que é inevitável gritar teatro dentro do incêndio.
Um repórter sete vezes na cadeia
Foi mais uma frase idiota que segue a estratégia presidencial de agradar convertidos e irritar adversários —valendo-se, até, do absurdo de considerar um torturador herói nacional. Mesmo assim, perdi três minutos pensando no esdrúxulo conceito de "excesso de jornalismo". Aí me lembrei de Joel Silveira (1918-2007).
Joel —"como repórter, não tem quem lhe leve vantagem", afirmou Manuel Bandeira— cunhou frases que podem iluminar a cabeça daqueles que hoje vivem destilando intolerância contra a imprensa nas redes sociais:
"Hedionda, repugnante essa espécie de jornalista que baixa o taxímetro antes de escrever a primeira palavra." "Jornalista que vira assunto passa, como jornalista, a não merecer a menor confiança." "Jornalista que não vê no poder um inimigo é porque já faz parte dele."
"Nada mais triste do que ver um repórter sentado numa redação a olhar para a máquina de escrever, disponível e sem assunto, quando os assuntos, todos eles, estão lá fora enchendo as ruas." "Jornalista paulista adora discutir com jornalista como deve ser feito jornalismo paulista em São Paulo. E tome debate, um por dia, às vezes dois."
"Repórter mesmo era aquele confrade Carra, a quem Victor Hugo se refere no 'Noventa e Três'. Segundos antes de ser guilhotinado, no auge do terror de Rosbespierre, ele virou a cabeça para o carrasco e disse: 'Aborrece-me morrer. Gostaria de ver o resto'."
Joel Silveira, este sim, excedia. Na qualidade do seu trabalho e na quantidade de vezes —sete— que a ditadura militar o prendeu.
A porcaria da arrogância
A arrogância é característica comum dos detentores do poder absoluto, mas não é menos característica dos seus seguidores que os têm - ou pretendem ter - por infalíveis, pondo-os no pedestal dos eleitos e cultivando-lhes a personalidade. Gostosamente aproveitam todas as ocasiões para se arvorarem em seus porta-vozes e em defensores dos seus actos, por mais abjectos que sejam.
A sua arrogância chega, não raras vezes, a tomar formas de delírio ou mesmo de violência Para eles os outros, os que não partilham, dos seus arrebatamentos, são estorvos sem préstimo que merecem severa punição. Há casos em que tais fervorosos servidores do seu amo chegam a perder todo o sentido da realidade e das conveniênciasIlse Losa, "Ter o rei na barriga"
Bolsonaro, o publisher e a imprensa
O Globo, na sua edição da segunda-feira, 12 de agosto, sob o título Bolsonaro dirige a própria imagem para ser autêntico, abre uma reportagem afirmando que, “sete meses após chegar ao Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro assumiu o controle total da comunicação do governo e tomou para si o papel de decidir os rumos da narrativa da sua gestão”.
É verdade, mas não explicou que o ambiente no qual Bolsonaro vai construir sua narrativa para dar rumo à sua gestão é a sua rede social, uma estrutura de comunicação distribuída, ampla e bem construída na arquitetura da internet. Ninguém controla uma arquitetura de comunicação em rede na internet, mas ele e seus filhos têm o domínio: norteiam a pauta e as edições contínuas (e, de labuja, trazem para o jogo as estruturas sociais dos jornais).
Semana passada, o Valor deu uma boa matéria com o Carlos Bolsonaro despachando no gabinete do pai. Na verdade, alinhando-se com os ministros em relação à rede social da família, comandada pelo pai e com forte coordenação dele, o 02. A família também se realinhou, com cada um voltando a atuar diariamente no conjunto de plataformas (Twitter, FB, Instagram e YouTube principalmente, entre as abertas), que são por sua vez agregadas a dezenas, centenas de estruturas com função de hub na rede.
No começo do século 20, o jornal O Estado de S. Paulo, em função do advento da rede telegráfica, inovava seus processos de criação de redes sociais de interesse específico criando murais de notícias com telegramas, que atraíam milhares de pessoas, na praça em frente à sua sede em momentos de tensão da sociedade em relação a um determinado problema. Além do ambiente jornal de papel, objeto de conhecimento do mundo analógico, o Estado perseguia a inovação para suprir a necessidade de articulação da sociedade em torno dos fatos que lhe concernem.
De lá para cá, algo afastou a imprensa tradicional do público. Confundir a atividade jornalística com a policialesca, considerar-se autoridade, ao invés de intermediário da opinião pública, distanciar-se naturalmente da população em função do crescimento e fragmentação desmesurados das cidades e, mais do que tudo, desconsiderar que hoje a opinião pública discute seus problemas diariamente nos fluxos de informação das redes sociais. Como é nelas que estão as pautas, que sempre foram do público, a imprensa ignorou também que essas redes podem e devem ser cobertas jornalisticamente com os mesmos recursos com que os gigantes da tecnologia cobrem as necessidades de venda e compra do público.
A computação e o algoritmo, simplificando, são a base desses recursos. O jornalista entra como facilitador, analista, debatedor conforme se mostra necessário. Bolsonaro e os filhos fazem isso, com tom messiânico, de forma grosseira e sem os compromissos, predicados e ética do jornalismo profissional. São partidários, vendem uma visão de mundo e estão em campanha permanente. Mas monitoram, fazem curadoria, pautam e editam sua rede social, cuja ação se amplifica por meio dos hubs agregados. O ambiente de relacionamento é a internet, com seus inúmeros objetos de conhecimento, e “milhares de armadilhas” para o processo de comunicação.
Em setembro de 2017, o Conselho da Europa publicou o documento Information Disorder: toward an interdisciplinar framework for research and policy making, que é a referência para o início da regulamentação da internet na Europa. Poucos meses depois, o Tow Center For Digital Journalism, da Universidade Columbia, publicou uma extensa, profunda e bem fundamentada reportagem, sob título Guide to advertising tecnologies. Os dois documentos mostram como a boa informação, a informação com fontes fidedignas, pode contribuir para o processo contínuo de mis-information, dis-information, mal-information, o quadro de Information Disorder com qual convivemos e que é uma das principais características da crise global que atravessamos em função da revolução tecnológica.
Os “milhares de armadilhas” do novo ambiente de comunicação são de responsabilidade dos novos impérios tecnológicos. As duas instituições apontam isso e mostram como o conjunto interligado das suas tecnologias publicitárias gerou uma imensa infraestrutura técnica, fazendo com que as motivações da publicidade se transformassem na base da economia da internet. Mudou a tecnologia e mudou o ambiente, muda a forma da narrativa e muda o arcabouço ético. Hoje somos vítimas desse processo, que ameaça também a democracia como a conhecemos.
Bolsonaro e os filhos, ao optarem por ser os publishers da rede social deles, correm o risco de se tornar vítimas desse processo de uma Era da Informação, na qual como apontou Marshall McLuhan, “a explosão da cultura através da explosão da informação torna-se cultura por si mesma, derrubando todas as paredes entre cultura e negócios” (isso é cultura?), transformando profundamente a realidade cognitiva da sociedade e gerando mais incerteza e insegurança num mundo em crise.
Para a imprensa tradicional, continuar atuando de forma broadcast, como se fosse a dona da pauta e como se a notícia no tempo das redes fosse mais importante do que o fluxo, é um grande risco. Não vai fazer jornalismo na rede, não voltará a prestar serviços à sociedade, não chegará a um modelo de negócio para os novos tempos e não recuperará relevância no processo de formação da opinião pública.
A MP do Estado anarcocapitalista
A Câmara que, na reforma da Previdência, funcionou como um contrapeso às medidas mais radicais do governo, desta vez, se limitou a podar as selvagerias mais gritantes contra o que restou da legislação trabalhista. Sob o escudo de uma proposta que, aparentemente, não afeta a vida da população, tornou-se sócia do anarcocapitalismo que inspira a equipe sub-30 que o Paulo Guedes colocou na secretaria de desburocratização do Ministério da Economia.
O texto aprovado tem a ambição de mudar os princípios constitucionais que regem a atividade econômica. Prevê que o Estado terá uma intervenção "subsidiária e excepcional" sobre o exercício de atividades econômicas. A Constituição já prevê que o Estado apenas explore uma atividade econômica sob o imperativo da segurança nacional ou de relevante interesse coletivo. Mas estabelece que o Estado é agente regulador, devendo fiscalizar, incentivar e planejar a atividade econômica (artigo 174).
Os meninos maluquinhos que gestaram o texto da MP nunca devem ter se perguntado se um Estado subsidiário comporta, por exemplo, a Embrapa, empresa pública que fomentou a salvação da lavoura na balança comercial. Ficam igualmente deslocadas, na definição de Estado prevista pela MP, as políticas de compras governamentais. A de merenda escolar, usada pelo Estado há muitos anos para incentivar a agricultura familiar, é apenas a mais inocente na bilionária lista de compras do Estado, de aviões a tecnologias sensíveis.
Não bastou entregar a Embraer. Trata-se agora de podar o Estado como parceiro do capitalismo nacional. A despeito de ser tratada como a carta libertária do empreendedorismo tupiniquim, fica difícil encaixar esta MP sob as asas do artigo 219 da Constituição: "O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do país, nos termos da lei federal."
Foram princípios como este que embasaram a criação do Fundo Soberano, em 2008. Proposto ao Congresso em projeto de lei, à luz de experiências como a da Noruega, para reduzir a vulnerabilidade financeira do país e fomentar projetos estratégicos, acaba de ser extinto pela MP 881 sem que nenhuma urgência o justificasse.
Alessandro Octaviani, professor de direito econômico da USP, duvida da eficácia da MP sobre a atividade da economia e da capacidade de a sociedade comportar um impacto tão unilateral nas relações contratuais. Por isso, espera o veto dos tribunais: "A MP não alberga as grandes questões contemporâneas de uma sociedade solidária, está em desacordo com a ordem econômica constitucional e tende a gerar litígios em série."
Para barrar a MP, o Supremo teria que fazer uma inflexão na toada liberal que vem marcando a atuação da Corte nos últimos tempos. É uma guinada mais difícil do que aquela que marca o freio no lavajatismo, exemplificado pelo 9x1 contrários à transferência do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo artigo "Tempos de Weimar", do ministro Luiz Fachin, no Valor (12/6). Ainda está por ser gestada uma reação aos instintos primitivos do capitalismo bolsonarista para fazer mover o Supremo nessa direção, apesar de não faltarem indícios de que a Carta foi atropelada pela tenebrosas transações desta medida,
O time sub-30 de Guedes, ignora, por exemplo, o fato de que os contratos mediam não apenas relações econômicas, mas de poder. O texto estabelece que os contratos civis e empresariais são paritários e simétricos, ressalvada prova contrária. À luz desta MP dá para imaginar o que pode vir a se transformar, por exemplo, a terceirização dos benefícios do INSS. O governo pretende acabar com o monopólio estatal na gestão de benefícios como auxílio-doença, acidente de trabalho e salário maternidade. Apenas aposentadorias e pensões ficariam sob gestão pública.
Este é um mercado de R$ 130 bilhões, cobiçado por todas as seguradoras do planeta. Em muitos países, a gestão desses benefícios é privada mas o diabo mora nos detalhes dos contratos que os regulam. Estado pode contratar o seguro para repassá-lo ao cidadão ou o contrato pode ser feito diretamente com as seguradoras. Ambas as alternativas, se não forem bem reguladas, abrem uma avenida para apólices que podem minar a sobrevivência de milhões de brasileiros.
O país chegou no limiar de um mercado dominado pelas grandes resseguradoras estrangeiras em que as empresas nacionais viraram quase que meras vendedoras de seguro, sem um quadro jurídico que discipline esses contratos. É nesse deserto de garantias que chega esta medida provisória com a ideia de um mundo encantado de contratos entre iguais, contrariando, mais uma vez, a norma constitucional que protege o abuso do poder econômico com vistas à "dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros".
No filme, "Eu, Daniel Blake", do cineasta britânico Ken Loach, um marceneiro de meia idade sofre um ataque cardíaco depois de perder a esposa. É proibido pelos médicos de voltar a trabalhar e, para se sustentar, vai atrás de seu seguro por invalidez. A privatização do sistema em nada desburocratizou a concessão do benefício, dificultado ao máximo. A saga do personagem para obtê-lo fez do filme quase que um prenúncio do humor que marcaria o Brexit, em 2018, e, no ano seguinte, colocaria Boris Johnson no poder.
No Brasil, a ordem foi inversa. A ascensão do populismo de Jair Bolsonaro precedeu o desmonte do Estado provedor. Este foi o contrato de casamento entre o presidente e seu ministro da Economia.
Agora as mentes colonizadas e maluquinhas que ascenderam ao poder com Bolsonaro ou aquelas bem mais estabelecidas que fazem dele a carona de ocasião, podem, sim, se orgulhar de ter colocado o Brasil na vanguarda. Do atraso.
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