sexta-feira, 16 de julho de 2021

Brasil na rota do abismo

 


O ódio dos covardes

O presidente da República amanheceu o dia de ontem fazendo exames no Hospital das Forças Armadas, em Brasília. Foi o que bastou para enervar a manhã invernal desta temporada infernal. As notícias eram disparatadas. Soube-se da ocorrência de intensas dores abdominais durante a madrugada, mas a nota oficial garantia que o governante estava “animado”, enquanto uma fonte noturna falava na iminência de um “ataque de nervos”. Como pano de fundo clínico havia ainda os soluços persistentes, que vinham tirando o sossego do mandatário.

O paciente anda impaciente, com frequentes frêmitos de exasperação. Dia destes, numa entrevista na calçada, desistiu dos impropérios habituais, do “cala a boca”, do “acabou a entrevista” e, do nada, sem quê nem por quê, surpreendeu os profissionais que lhe faziam perguntas. Num repente, emitiu uma voz de comando estapafúrdia: “Vamos rezar o Pai-Nosso!”. Repórteres se entreolharam, mais que céticos, incrédulos.


Ato contínuo, o homem principiou a recitar a oração cristã, mas fez isso de um jeito tão esquisito, tão desencontrado, que até os céus coraram. Ele pronunciava as palavras como se fosse um sargento gritando para os soldados. Para ele, o ato de orar equivale a berrar ordens para a tropa. Em sua entonação, ou em sua postura, não se viu um mínimo sinal de espírito desarmado. Não havia nele o reconhecimento humilde das aflições da alma, não havia o gesto que roga pelo improvável encontro com o sagrado. O presidente ficou longe de qualquer introspecção transcendente, tão própria de quem pede uma bênção. Trincando de raiva, deu ao Pai-Nosso o andamento de uma “ordem do dia” ou de um insulto, e rezou num diapasão impositivo, como quem desfere desaforos. Quem viu a cena observou que o cidadão não está nada bem. Ele nunca esteve bem, é verdade, mas agora está pior que antes.

Agora, é a interrogação. De ontem para hoje, os médicos discutem diagnósticos, mas desde logo é preciso admitir que já sabemos o que se passa. Enfermidades físicas à parte (que ele se recupere o quanto antes), o pior mal que acomete a mais alta autoridade do País nada tem que ver com hospitais, consultórios ou com exames laboratoriais. O pior mal está na cara de todo mundo. O nome desse mal, chegou a hora de dizer com todas as letras, é ódio.

Como fratura exposta, o ódio escancara-se nos esgares crispados, nas infâmias, nos vexames da atroz falta de modos. O doente estrebucha, tosco, em praça pública. Ódio, senhoras e senhores. Ódio a não mais poder. Ódio nu. Ódio obsceno. Ódio corrosivo. Ódio em estado terminal.

Mas não apenas ódio – sejamos um pouco mais específicos. O ódio do referido paciente impaciente não é um ódio qualquer, genérico, não é um ódio comum, desses que dão em qualquer um a qualquer hora. O ódio presidencial é agravado pela comorbidade paralisante de outra paixão baixíssima: o pavor. Sabe-se que o chefe do Executivo tem medo da CPI, assim como tinha medo dos debates eleitorais. Tem medo das pesquisas, medo das manifestações de rua, medo de um dia ser condenado a ex-presidente, condição que o exporá a outras tantas condenações muito mais amedrontadoras. Sejamos, portanto, respeitosamente específicos. O quadro nos leva à evidência gritante de que a pior doença do presidente da República é um tipo de ódio qualificado, que se remói nas próprias entranhas odiosas, alimentando a si mesmo sem sair do lugar. O mal do presidente é o ódio dos covardes.

Mas que distúrbio é esse? Que patologia é essa? De que ódio estamos falando aqui, afinal de contas? Antes que o improvável leitor se inquiete, convém esclarecer logo a fonte bibliográfica (não descuidemos da metodologia). Como se sabe, essa patologia fascistífera, o ódio dos covardes, não aparece em manuais da OMS nem nas incontáveis classificações das entidades de psiquiatria espalhadas pelo globo terrestre. Ela foi descrita, com acurácia, rigor e sensibilidade, não pela ciência, mas pela poesia. Tinha de ser a poesia.

Uma canção do compositor uruguaio Jorge Drexler, La Guerrilla de la Concordia, chega pelo WhatsApp (muchas gracias, Afonso Borges). A letra ensina que “o ódio é o guia dos covardes”. Drexler diz que precisamos de coragem não para odiar, mas para amar: “O medo saiu de seu túmulo e hoje amar é coisa de valentes”. É isso. Ou somos capazes de amar, em guerrilha, ou vamos deixar o medo e o ódio tomarem conta.

A desordem psicopoliticossomática que acomete o paciente impaciente ameaça o estado geral da Nação e a saúde cívica da democracia. O contágio não pode mais se alastrar assim. Para estancar e debelar o ódio dos covardes – o fel dos que se cobrem de veneno e saem por aí aspergindo pestilências para matar nos semelhantes o desejo que mataram em si mesmos – é preciso agir. “Armemo-nos, armemo-nos de coragem”. A reação há de ser alegre, cantante. “Vamos nos amar, agora e aqui/ Fazendo história/ Vamos lançar nossos panfletos no ar”.

Poesia. Não há melhor palavra de ordem para as ruas brasileiras. Qualquer maneira de amor vale a pena. Nenhuma de ódio.

Vidas interrompidas

As quatro passaram a vida enfrentando e vencendo atrocidades como doenças, fome e a extrema miséria. Resistiram até ao vírus da covid-19, ao agravamento das dificuldades financeiras e à situação de vulnerabilidade que se aprofundou com a pandemia. Roberta, Crismilly Pérola, Kalyndra Selva e Fabiana só não superaram a fúria dos preconceituosos. Que acreditam só haver espaço neste mundo para quem é heterossexual.


A primeira foi incendiada enquanto dormia, na rua. Socorrida, as chamas atingiram 40% do seu corpo. Os médicos fizeram o possível. Mas as queimaduras foram tão profundas, que precisaram amputar-lhe os dois braços. Chegou a ser intubada, em estado gravíssimo. Morreu 15 dias depois. Para ficar em apenas dois relatos, a segunda, em outro momento, ficou parecendo tábua de tiro ao alvo. O corpo foi encontrado dias depois.

Os quatro crimes, registrados num espaço de três semanas, em meados de junho e início deste mês, são apenas um recorte dessa modalidade de violência cada vez mais frequente. Todos ocorreram em Pernambuco, sendo os três primeiros no Recife; o último, em Santa Cruz do Capibaribe, a cerca de 200 quilômetros da capital.

Poderiam ter acontecido em qualquer outro Estado ou município. Esse Brasil, lindo e trigueiro, está longe de ser aquele paraíso tropical das fantasias. O mundo todo agora o classifica como País barra pesada para as pessoas que não se enquadram nos padrões. Se elas forem transexuais, então, poderão ser contempladas com a barbárie.

Crismilly, Kalyndra, Roberta e Fabiana foram incendiadas, esfaqueadas ou mortas a tiros simplesmente porque não eram pessoas do jeito que os autores dos crimes queriam que fossem. Diante da dificuldade de conviver com a diferença delas, sentindo desconforto por dividir com mulheres transexuais o mesmo espaço social, acharam mais prático matá-las.

Para os transfóbicos não basta tratar a pessoa trans com desigualdade, no dia a dia. Não é suficiente achincalhá-la, humilhá-la. É preciso exterminá-la, como se pudessem determinar-lhe o direito ou não à vida.

É muito louco refletir sobre o que leva uma pessoa a matar a outra baseada num senso de moralidade, limitado e injusto, que lhe diz o que é certo e errado.

Que ódio incontrolável é esse, a ponto de transformar o preconceito em homicídio? Não há resposta. Os crimes de ódio contra Roberta, Crismilly, Kalyndra e Fabiana são episódios que revelam o quanto este país está longe de entabular uma discussão sobre a dignidade da pessoa LGBTQIA+.

Os criminosos podem até ser presos, mas o preconceito estrutural e institucional, de gênero, está na raiz do crime de ódio. Se as leis fossem cumpridas com o rigor da letra, não se repetiria com tamanha frequência.

O Estado, por sua vez, é omisso em políticas públicas para a população trans. E fica devendo mais essa. 

P.S.: São atos de barbárie, como esses, que marcam a história da cidadania brasileira
Cícero Belmar

Sete pérolas da sabedoria política oportunas aos dias que correm

“Tudo pode acontecer no Brasil, inclusive nada”. (Marco Maciel, vice-presidente da República entre 1995 e 2003)

“Comissão Parlamentar de Inquérito sabe-se como começa, não como termina”. (Jorge Bornhausen, ex-senador por Santa Catarina)

“Cortar as unhas do demônio não o transforma em anjo não”. (Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal)

“Uma sociedade de carneiros acaba gerando um governo de lobos”. (Victor Hugo, escritor francês)

“As pessoas que falam muito mentem sempre, porque acabam esgotando seu estoque de verdades”. (Millôr Fernandes, escritor)

“Pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo”. (Abraham Lincoln, 16º presidente dos Estados Unidos)

“Os covardes morrem várias vezes antes da sua morte, mas o homem corajoso experimenta a morte apenas uma vez”. (William Shakespeare, dramaturgo inglês)