terça-feira, 1 de outubro de 2024
Um outro olhar para o coronelismo
Associamos o coronelismo a toda concentração de poder. A expressão exemplifica a influência política dos donos de terra no Nordeste na metade do século passado, e une Lira, Calheiros, Sarney, se espalhou para todas as análises políticas. Carmén Lúcia, essa semana, falou em “coronelismo digital” ao falar do poder das plataformas e empresas de tecnologia. O antropólogo Jorge Mattar Villela refuta a origem do conceito. Ao invés de um poder centralizador que domina o Estado, ele constrói a ideia de alianças temporárias de famílias, vinculadas a interesses políticos e vinganças.
O jurista Victor Nunes Leal foi quem divulgou a ideia em seu livro “Coronelismo, Enxada e Voto”, de 1948, em que relatou a relação e a influência dos grandes proprietários de terra com o poder público, trabalho e democracia – marcadamente nas eleições, com o voto de cabresto nos currais eleitorais, isto é, gente que sob seu domínio votava no candidato do “coroné”. Legal lembrar que o título militar foi dado aos fazendeiros que apoiaram as ações da Guarda Nacional contra as revoltas populares, entre a Regência e o início da República. A Guarda findou, ficou o prestígio.
Vilela considera uma explicação simplista acreditar no poder centralizado e exclusivista do coronel, do “soba”, do “chefete do baraço e do cutelo”, do “mandão de campanário”. Ele enxerga um poder descentralizado e baseado em alianças familiares temporárias alimentadas por interesses políticos e vinganças de sangue – e muitas vezes essas vinganças, que eram comuns, determinavam as celebrações ou rupturas desses acordos.
“Nas grandes brigas de famílias, havia gente capaz de arregimentar, ou atrair, vários microgrupos de base familiar formando bandos instáveis de mais de cem homens armados, voltados para o ataque a um inimigo”, explica no texto. O antropólogo define que a organização social e a política dessa região era estruturada por essas redes familiares, deixando o Estado em segundo plano.
Em um lugar em todo mundo vestia calça, camisa e um revólver ou espingarda, um “povo em armas”, com ele escreve, existiam altos níveis de autonomia nos conflitos. Como se poderia viver sob esse regime de submissão a um senhor de terras sem que houvesse um episódio de revolta?, pergunta. A gestão municipal ficava à margem ou era tragada por essas intrigas.
Ao invés do coronel, ele destaca o inspetor de quarteirão, um delegado que mantinha a ordem pública onde não havia quadros institucionais de segurança. Eram mediadores que “impediram que uma convivência de conflito iminente escapasse para o conflito permanente” costurando vínculos e resolvendo desavenças sob o manto da violência. Expulsava ladrões, combatia cangaceiros, silenciava embates entre vizinhos, com o auxílio de parentes para formar esse grupo.
O jurista Victor Nunes Leal foi quem divulgou a ideia em seu livro “Coronelismo, Enxada e Voto”, de 1948, em que relatou a relação e a influência dos grandes proprietários de terra com o poder público, trabalho e democracia – marcadamente nas eleições, com o voto de cabresto nos currais eleitorais, isto é, gente que sob seu domínio votava no candidato do “coroné”. Legal lembrar que o título militar foi dado aos fazendeiros que apoiaram as ações da Guarda Nacional contra as revoltas populares, entre a Regência e o início da República. A Guarda findou, ficou o prestígio.
Vilela considera uma explicação simplista acreditar no poder centralizado e exclusivista do coronel, do “soba”, do “chefete do baraço e do cutelo”, do “mandão de campanário”. Ele enxerga um poder descentralizado e baseado em alianças familiares temporárias alimentadas por interesses políticos e vinganças de sangue – e muitas vezes essas vinganças, que eram comuns, determinavam as celebrações ou rupturas desses acordos.
“Nas grandes brigas de famílias, havia gente capaz de arregimentar, ou atrair, vários microgrupos de base familiar formando bandos instáveis de mais de cem homens armados, voltados para o ataque a um inimigo”, explica no texto. O antropólogo define que a organização social e a política dessa região era estruturada por essas redes familiares, deixando o Estado em segundo plano.
Em um lugar em todo mundo vestia calça, camisa e um revólver ou espingarda, um “povo em armas”, com ele escreve, existiam altos níveis de autonomia nos conflitos. Como se poderia viver sob esse regime de submissão a um senhor de terras sem que houvesse um episódio de revolta?, pergunta. A gestão municipal ficava à margem ou era tragada por essas intrigas.
Ao invés do coronel, ele destaca o inspetor de quarteirão, um delegado que mantinha a ordem pública onde não havia quadros institucionais de segurança. Eram mediadores que “impediram que uma convivência de conflito iminente escapasse para o conflito permanente” costurando vínculos e resolvendo desavenças sob o manto da violência. Expulsava ladrões, combatia cangaceiros, silenciava embates entre vizinhos, com o auxílio de parentes para formar esse grupo.
Seu trabalho, um mergulho de 20 anos em mais de um século de história social e política, desembocou em três livros e está resumido no artigo A Antropologia do Sertão de Pernambuco. Pajeú e Navio, publicado na Revista de Antropologia da UFSCar.
Ao fazer uma ponte com a política atual, o pesquisador disse à Revista da Fapesp que “de uma certa forma, essas coisas acontecem em qualquer lugar. Podem acontecer, por exemplo, na avenida Faria Lima, em São Paulo. Um escritório lobista da Faria Lima também é power-user da democracia e da economia. Não é uma coisa de gente pobre periférica, é de gente que está colada à obtenção de recursos gerados no Estado nacional. A segmentaridade do voto, as complexas negociações intergrupais, as alianças familiares e locais continuam presentes, e dão o tom ao processo”, conclui.
Ao fazer uma ponte com a política atual, o pesquisador disse à Revista da Fapesp que “de uma certa forma, essas coisas acontecem em qualquer lugar. Podem acontecer, por exemplo, na avenida Faria Lima, em São Paulo. Um escritório lobista da Faria Lima também é power-user da democracia e da economia. Não é uma coisa de gente pobre periférica, é de gente que está colada à obtenção de recursos gerados no Estado nacional. A segmentaridade do voto, as complexas negociações intergrupais, as alianças familiares e locais continuam presentes, e dão o tom ao processo”, conclui.
Onde estão os árabes?
Em meio ao barulho das bombas que nestes dias sacodem Gaza e Beirute, o silêncio dos países árabes é surpreendente. Para além de algumas palavras de condenação e de apelos banais ao diálogo por parte dos seus líderes, não houve medidas significativas contra os excessos cometidos por Israel em resposta ao ataque infame que sofreu há um ano pelas mãos do Hamas. Nem sequer se viram manifestações nas ruas, algo que aconteceu em numerosos países ocidentais e noutros de maioria muçulmana.
Dos sete países árabes que mantêm relações diplomáticas com Israel (excluindo o Sudão, atolado numa guerra civil), apenas a Jordânia, que as estabeleceu em 1994, retirou o seu embaixador. O Egito, o primeiro a assinar um tratado de paz com o Estado Judeu em 1979, tenta um difícil equilíbrio como mediador entre ele e o Hamas. Os Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Marrocos, por sua vez, mantiveram os laços estabelecidos a partir dos Acordos de Abraham (2020). E a Arábia Saudita não fechou a porta à sua adesão no futuro.
Esta atitude entra em conflito com décadas de utilização da causa palestina como elemento unificador. Assim, são feitos alguns gestos de apoio (como a adesão ao caso de genocídio contra Israel levado a cabo pela África do Sul perante o Tribunal Internacional de Justiça ), enquanto são tomadas medidas contra o ativismo pró-palestiniano (como aconteceu na Arábia Saudita, no Egito ou na Jordânia).
A realidade é que os líderes árabes não querem confrontar Israel. Na maioria dos casos, isto deve-se às suas relações com os Estados Unidos, um país do qual dependem para a sua segurança (no caso das monarquias do Golfo) ou para a sua sobrevivência financeira (Egito e Jordânia). Mas nem mesmo alguém como o presidente sírio, Bashar al Assad, um aliado do eixo de resistência liderado pelo Irã, fez até agora qualquer tentativa de se manifestar em apoio ao Hezbollah, a milícia libanesa que salvou o seu regime da revolta popular.
O que todos têm em comum é o medo da mobilização nas ruas devido à falta de legitimidade democrática dos seus governos. E a causa palestina tem sido historicamente um catalisador, primeiro nas mãos dos esquerdistas e, mais recentemente, dos islamitas. Não importa quantos excessos Israel cometa, no fundo está a fazer o trabalho sujo de pôr fim aos islamistas, sejam eles os sunitas do Hamas ou os xiitas do Hezbollah.
Dos sete países árabes que mantêm relações diplomáticas com Israel (excluindo o Sudão, atolado numa guerra civil), apenas a Jordânia, que as estabeleceu em 1994, retirou o seu embaixador. O Egito, o primeiro a assinar um tratado de paz com o Estado Judeu em 1979, tenta um difícil equilíbrio como mediador entre ele e o Hamas. Os Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Marrocos, por sua vez, mantiveram os laços estabelecidos a partir dos Acordos de Abraham (2020). E a Arábia Saudita não fechou a porta à sua adesão no futuro.
Esta atitude entra em conflito com décadas de utilização da causa palestina como elemento unificador. Assim, são feitos alguns gestos de apoio (como a adesão ao caso de genocídio contra Israel levado a cabo pela África do Sul perante o Tribunal Internacional de Justiça ), enquanto são tomadas medidas contra o ativismo pró-palestiniano (como aconteceu na Arábia Saudita, no Egito ou na Jordânia).
A realidade é que os líderes árabes não querem confrontar Israel. Na maioria dos casos, isto deve-se às suas relações com os Estados Unidos, um país do qual dependem para a sua segurança (no caso das monarquias do Golfo) ou para a sua sobrevivência financeira (Egito e Jordânia). Mas nem mesmo alguém como o presidente sírio, Bashar al Assad, um aliado do eixo de resistência liderado pelo Irã, fez até agora qualquer tentativa de se manifestar em apoio ao Hezbollah, a milícia libanesa que salvou o seu regime da revolta popular.
O que todos têm em comum é o medo da mobilização nas ruas devido à falta de legitimidade democrática dos seus governos. E a causa palestina tem sido historicamente um catalisador, primeiro nas mãos dos esquerdistas e, mais recentemente, dos islamitas. Não importa quantos excessos Israel cometa, no fundo está a fazer o trabalho sujo de pôr fim aos islamistas, sejam eles os sunitas do Hamas ou os xiitas do Hezbollah.
Semeiam o descontentamento e a maldade
Dois terços da gente do meu país leem esta espécie de jornal; leem de manhã e à noite coisas escritas neste tom, são trabalhados permanentemente, incitados, açulados; semeiam-se neles o descontentamento e a maldade, e a meta final de tudo isso é outra vez a guerra, a próxima guerra, que já está chegando e que, sem dúvida alguma, será muito mais horrenda do que a última. Tudo isso é claro e simples, qualquer pessoa pode compreendê-lo; com uma hora de meditação todos poderiam chegar ao mesmo resultado. Mas ninguém quer agir assim, ninguém quer evitar a próxima guerra, quer livrar-se nem livrar a seus filhos das mortes aos milhares, nem quer parar por um instante e pensar voluntariamente.
Hermínia permaneceu ouvindo com interesse.
- Sim - disse em seguida -, você tem razão. Naturalmente, haverá outra guerra; não é preciso ler nos jornais para saber. É certo, embora isso nos entristeça, que o homem, apesar de tudo e de todos, apesar do que possa fazer, o homem tem inevitavelmente de morrer. A luta contra a morte, meu caro Harry, é sempre uma coisa bela, nobre, prodigiosa e digna, da mesma forma que a luta contra a guerra. Mas há de ser sempre uma quixotada sem esperanças.
- Talvez seja verdade - exclamei enérgico -, mas com verdades semelhantes a esta de que temos todos de morrer e que, por conseguinte, tudo é igual é que convertemos a vida em algo monótono e estúpido. Desta forma teremos de renunciar a tudo, ao espírito, às aspirações; teremos de destruir a humanidade, teremos de permitir que reine o egoísmo e o dinheiro e esperar a próxima guerra com um copo de cerveja à mão.
Hermann Hesse, "O Lobo da Estepe"
Uma hora de reflexão, um momento de entrar em si mesmo e perguntar pela parte da culpa que lhe cabe nesta desordem e na maldade que impera no mundo… mas ninguém quer fazê-lo! E assim tudo continua como estava e a próxima guerra vai-se preparando a cada dia que passa, com o auxílio de milhares e milhares de pessoas diligentes. Estas coisas sempre me desesperam: para mim não existe “pátria”, não existe “ideal” algum. Tudo isso não passa de frases inculcadas por aqueles que preparam a próxima carnificina. Não tem sentido pensar ou escrever algo que seja humano, de nada vale ter boas ideias na mente… são duas ou três pessoas que agem assim; em compensação, há milhares de jornais, de revistas, de conferências, reuniões públicas ou secretas que, dia após dias insistem no contrário, e acabarão por alcançá-lo.
Hermínia permaneceu ouvindo com interesse.
- Sim - disse em seguida -, você tem razão. Naturalmente, haverá outra guerra; não é preciso ler nos jornais para saber. É certo, embora isso nos entristeça, que o homem, apesar de tudo e de todos, apesar do que possa fazer, o homem tem inevitavelmente de morrer. A luta contra a morte, meu caro Harry, é sempre uma coisa bela, nobre, prodigiosa e digna, da mesma forma que a luta contra a guerra. Mas há de ser sempre uma quixotada sem esperanças.
- Talvez seja verdade - exclamei enérgico -, mas com verdades semelhantes a esta de que temos todos de morrer e que, por conseguinte, tudo é igual é que convertemos a vida em algo monótono e estúpido. Desta forma teremos de renunciar a tudo, ao espírito, às aspirações; teremos de destruir a humanidade, teremos de permitir que reine o egoísmo e o dinheiro e esperar a próxima guerra com um copo de cerveja à mão.
Hermann Hesse, "O Lobo da Estepe"
Todos os tons do setembro amarelo no fim
Começou o outono em Nova York. Estive concentrado na cidade porque os líderes mundiais falariam na ONU. E também porque minha filha Maya estava por lá. O que tem a ver uma coisa com a outra? O trânsito. Ela precisava se deslocar entre um e outro evento sobre defesa do oceano e fez uma curta viagem à Califórnia. Sofreu com as longas viagens de táxi.
Os discursos na ONU se sucediam indiferentes aos pequenos transtornos urbanos. Imagino aquele prédio como um imenso transatlântico com seus oradores navegando num mar tempestuoso, repleto de icebergs.
Ouço uma voz em português de nosso presidente advertindo para a catástrofe climática. Soa sensato, mas, a 8 mil quilômetros de distância, o que sentimos ainda é o calor do fogo, o cheiro de fumaça. Estamos destruindo o planeta com regularidade, sem discriminação.
O outono começa por lá. Por aqui o inverno acabou. Ainda restam algumas folhas de amendoeira não recolhidas na Rua Almirante Saddock de Sá.
O amigo Py, psicanalista, me envia uma rápida fala sobre o setembro amarelo. É o mês da prevenção ao suicídio. Ele alerta sobre o suicídio lento do consumo exagerado de tabaco e álcool. E me pergunta se a agressão ao meio ambiente não é um tipo de suicídio coletivo.
De certa forma, sim, amigo. Não há perigo de o planeta acabar, mas sim de a vida humana tornar-se inviável nele. No entanto não é esse o suicídio que Albert Camus chama de maior problema filosófico em seu célebre “O mito de Sísifo”. Para ele, a questão estava na consciência da falta do sentido da vida e em como responder a essa situação absurda. Atribuir um sentido ou abandonar o mundo.
A destruição ambiental não é uma escolha consciente. Na verdade, é resultado do gozo desenfreado da vida, por meio da produção e do intenso consumo. As pessoas não dizem “adeus, vida cruel!”. Pelo contrário, celebram e querem fruir cada vez mais.
No setembro por aqui, é a primavera que começa. Ainda há folhas secas na Rua Saddock de Sá, que esteve coberta com um colorido tapete de folhas de amendoeira.
Talvez um dado novo em nossa prevenção do suicídio seria observar o avanço das empresas de aposta. Os brasileiros jogam mais de R$ 200 bilhões. Fala-se que há 13 milhões de inadimplentes. Isso é um risco para a estrutura das famílias, para a saúde mental.
As empresas de aposta patrocinam muita coisa, clubes e imprensa. O governo espera recolher imposto para obras sociais. Mas precisamos fiscalizar e definir campanhas educativas. Caso contrário, deixaremos passar em branco o setembro amarelo.
Num artigo que escrevi sobre os discursos da ONU, mencionei também as guerras. Não apenas na Ucrânia ou em Gaza. Agora se alastram pelo Líbano, já existem em lugares que ignoramos, como o Iêmen, a República Democrática do Congo.
Esse foi um dos temas no transatlântico dos grandes discursos, dos grandes pianistas. A semana acabou com mais notícias de guerra. Os líderes voltaram para casa, minha filha voou para a Europa. Restou setembro com seus tons de amarelo. Não faço mais discursos, limito-me a interpretá-los por dever de ofício. A esta altura, sem menosprezar a retórica, prefiro alguma ações concretas: elas andam em falta.
Neste setembro, peço desculpas não só a Camus, como aos existencialistas com suas teses sobre o absurdo da vida, a necessidade de cravar as unhas no abismo e de encontrar um sentido para ela.
Tive a sorte de viver muitos anos, acabei me acostumando, sem grandes inquietações. Reduzi expectativas. Felicidade para mim é apenas um pedaço da Lagoa onde sopra uma brisa: este ligeiro excesso de oxigênio me inebria. E, com perdão dos grandes mestres orientais, meditar para mim é boiar de costas e deixar que os pensamentos flutuem e se tornem tão leves como o corpo.
Por isso, meu amigo Py, não sei se meu argumento é uma blasfêmia no coração do setembro amarelo. Penso nas grandes turbulências aéreas: colocar a máscara de oxigênio e, então, ajudar os outros. Dito isso, continuaremos tentando prevenir suicídios, inclusive o da Humanidade.
Os discursos na ONU se sucediam indiferentes aos pequenos transtornos urbanos. Imagino aquele prédio como um imenso transatlântico com seus oradores navegando num mar tempestuoso, repleto de icebergs.
Ouço uma voz em português de nosso presidente advertindo para a catástrofe climática. Soa sensato, mas, a 8 mil quilômetros de distância, o que sentimos ainda é o calor do fogo, o cheiro de fumaça. Estamos destruindo o planeta com regularidade, sem discriminação.
O outono começa por lá. Por aqui o inverno acabou. Ainda restam algumas folhas de amendoeira não recolhidas na Rua Almirante Saddock de Sá.
O amigo Py, psicanalista, me envia uma rápida fala sobre o setembro amarelo. É o mês da prevenção ao suicídio. Ele alerta sobre o suicídio lento do consumo exagerado de tabaco e álcool. E me pergunta se a agressão ao meio ambiente não é um tipo de suicídio coletivo.
De certa forma, sim, amigo. Não há perigo de o planeta acabar, mas sim de a vida humana tornar-se inviável nele. No entanto não é esse o suicídio que Albert Camus chama de maior problema filosófico em seu célebre “O mito de Sísifo”. Para ele, a questão estava na consciência da falta do sentido da vida e em como responder a essa situação absurda. Atribuir um sentido ou abandonar o mundo.
A destruição ambiental não é uma escolha consciente. Na verdade, é resultado do gozo desenfreado da vida, por meio da produção e do intenso consumo. As pessoas não dizem “adeus, vida cruel!”. Pelo contrário, celebram e querem fruir cada vez mais.
No setembro por aqui, é a primavera que começa. Ainda há folhas secas na Rua Saddock de Sá, que esteve coberta com um colorido tapete de folhas de amendoeira.
Talvez um dado novo em nossa prevenção do suicídio seria observar o avanço das empresas de aposta. Os brasileiros jogam mais de R$ 200 bilhões. Fala-se que há 13 milhões de inadimplentes. Isso é um risco para a estrutura das famílias, para a saúde mental.
As empresas de aposta patrocinam muita coisa, clubes e imprensa. O governo espera recolher imposto para obras sociais. Mas precisamos fiscalizar e definir campanhas educativas. Caso contrário, deixaremos passar em branco o setembro amarelo.
Num artigo que escrevi sobre os discursos da ONU, mencionei também as guerras. Não apenas na Ucrânia ou em Gaza. Agora se alastram pelo Líbano, já existem em lugares que ignoramos, como o Iêmen, a República Democrática do Congo.
Esse foi um dos temas no transatlântico dos grandes discursos, dos grandes pianistas. A semana acabou com mais notícias de guerra. Os líderes voltaram para casa, minha filha voou para a Europa. Restou setembro com seus tons de amarelo. Não faço mais discursos, limito-me a interpretá-los por dever de ofício. A esta altura, sem menosprezar a retórica, prefiro alguma ações concretas: elas andam em falta.
Neste setembro, peço desculpas não só a Camus, como aos existencialistas com suas teses sobre o absurdo da vida, a necessidade de cravar as unhas no abismo e de encontrar um sentido para ela.
Tive a sorte de viver muitos anos, acabei me acostumando, sem grandes inquietações. Reduzi expectativas. Felicidade para mim é apenas um pedaço da Lagoa onde sopra uma brisa: este ligeiro excesso de oxigênio me inebria. E, com perdão dos grandes mestres orientais, meditar para mim é boiar de costas e deixar que os pensamentos flutuem e se tornem tão leves como o corpo.
Por isso, meu amigo Py, não sei se meu argumento é uma blasfêmia no coração do setembro amarelo. Penso nas grandes turbulências aéreas: colocar a máscara de oxigênio e, então, ajudar os outros. Dito isso, continuaremos tentando prevenir suicídios, inclusive o da Humanidade.
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