sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Injustiça real

Os reis são injustos com muita gente, ainda que pretendam a justiça e a equidade. Prejudicam a muitos, ainda que desejem o bem e o proveito
Nagib Mahfuz, "O jogo do destino"

Brasil, uma visão de tempo

A longo prazo estaremos todos mortos. Essa frase, atribuída a lorde Keynes, é verdadeira. Mas prefiro ficar com as dimensões de tempo descritas pelo grande historiador Fernand Braudel: o tempo imediato é local, a convergência de fatos que produzem uma nova conjuntura é a extensa linha do longo prazo. Naturalmente, estaremos todos mortos, mas existe uma linha de longo prazo e devemos interrogá-la para definir uma estratégia.

No meu entender, a vitória de Bolsonaro é uma convergência de fatos que produziu uma nova conjuntura. Mas continuo achando que na linha do tempo, no longo prazo, o Brasil não pode fugir de seu destino de detentor de grandes riquezas naturais que são um trunfo econômico e diplomático.

O governo Bolsonaro foi eleito pela maioria, de forma democrática. Alguns de seus ministros, Agricultura e Meio Ambiente, consideram que o controle ambiental sobre a produção é coisa de comunista fantasiado de defensor do meio ambiente. Melancias, verdes por fora, vermelhas por dentro. O chanceler Ernesto Araújo classifica o aquecimento global como uma invenção do marxismo globalizante.

Isso não corresponde à realidade. Eles não conhecem um país comunista. Não visitaram o Leste Europeu, não viram a devastação ambiental deixada pelo regime. Os desastres por lá, a julgar por Chernobyl, eram piores que os nossos. Aqui, contaminamos com lama e minério dentro de nossas fronteiras. As usinas nucleares espalham a radiação por todo o continente, às vezes além dele.

Os ministros de Bolsonaro ignoram até o debate nacional. Em 2003, quando saí do PT, afirmei que o partido tinha uma visão ambiental atrasada e replicava a visão dos velhos partidos comunistas. A ideia dos antigos quadros era de que o essencial era o crescimento econômico, a melhoria de condições dos trabalhadores. Era preciso competir e vencer o Ocidente.

Por mais que Bolsonaro deteste os comunistas, nada se parece mais com eles do que suas posições sobre crescimento e meio ambiente. Na realidade, seu ponto de partida é diferente. Bolsonaro defende a propriedade privada e acha que está sendo tolhida pelo controle ambiental. Pelo menos é isso que depreendo de seus discursos de campanha.


A defesa da propriedade privada é uma boa causa. No entanto, ela tem nítidos limites. Um rio que passa na sua fazenda não pode ser usado de qualquer maneira. Há pessoas a jusante, comunidades que dependem dele.

Por causa disso, afirmamos em lei que os rios são de responsabilidade dos Estados ou do governo federal. E criamos um instrumento democrático para geri-los: o comitê de bacia, no qual os usuários são também representados.

Seria fácil descartar a visão de Bolsonaro e seus ministros, afirmando só que ignoram os fatos. Eles, ao que parece, têm uma visão de longo prazo. Acreditam que o meio ambiente pode ser explorado com menos limites se avançamos em ciência e tecnologia. É uma suposição muito frequente a de que as principais tarefas da natureza podem ser substituídas por descobertas científicas. Ainda que isso fosse possível, estaríamos construindo uma civilização solitária, a mais solitária que existiu até hoje, dispensando plantas, animais, fontes de água limpa.

No meu entender, a linha decisiva de longa prazo vai prevalecer. Governos passam. E ainda que não passassem (há os que duram demais), a realidade acabará por se impor.

Os exemplos estão aí. Dilma fazia um governo próximo do marxismo. Mas após o desastre de Mariana ela não mandou fechar as barragens existentes nem proibiu as que são construídas a montante. O governo Bolsonaro, que odeia ecologistas e acha que o controle ambiental deveria ser relaxado em nome da produtividade e do respeito à propriedade privada, fez exatamente o que o chamado marxismo não fez: proibiu as barragens a montante e deu um prazo para que fossem esvaziadas.

Isso foi depois de Brumadinho. Mas não desmonta o argumento de que os fatos acabam produzindo uma aproximação do que chamo de linha estratégica de longo prazo.

O ministro do Turismo de Bolsonaro compreendeu também que a melhor tática para salvar Brumadinho é estimular o turismo, sobretudo o baseado no grande museu a céu aberto de Inhotim. Na verdade, o museu é só uma das atrações da área, rica em águas, no pé da Serra do Rola-Moça, com grandes pedaços de Mata Atlântica ainda preservados.

Ao desenvolver essas ideias, não quero dizer que exista uma história pré-escrita, nem aconselhar que as pessoas cruzem os braços e deixem de lutar por melhores condições ambientais. Ao contrário, quero dizer apenas que existem fortes tendências determinadas por nossa rica biodiversidade que abrem um caminho para o Brasil num mundo assustado com a degradação planetária.

Não importa tanto, aqui, se o ministro gosta de laranjas ou tangerinas, neste caso específico o importante é que faça a coisa certa. Não importa, ainda, se Bolsonaro atribuiu ao PT a defesa de nosso meio ambiente ou se o chanceler confere ao marxismo a constatação de que o planeta esquenta de forma perigosa. Karl Marx compartilhava o otimismo burguês com a exploração ilimitada dos recursos naturais.

Quem vai conter a realidade quando ela se revela em eventos extremos, furacões e tempestades, quando a barragem mineral desce na forma de um tsunami de lama? Não tem nenhuma importância que continuem a combater um comunismo desenhado na cabeça deles, nem mesmo que nos mandem prender por criticá-los com acidez. Conjunturas, convergência singular de alguns fatos, são ebulições que nos deixam pensar tudo, sobretudo fantasiar a realidade como um produto de nossa ideologia. Mas a longa linha do tempo, as grandes tendências históricas acabam nos trazendo ao mundo concreto.

Esta é minha interpretação livre da visão de tempo de Braudel. Não sei se ele autorizaria minha tosca leitura. Pelo menos estou lendo e tentando entender.

Sob Bolsonaro, fisiologismo vira 'bolsa de talentos'

Dizer que o centrão está irritado com o governo não traduz adequadamente o que está acontecendo em Brasília. O centrão não fica com raiva, fica com tudo. Ocorre que Jair Bolsonaro declarou que extinguiria o toma-lá-dá-cá e governaria com as frentes parlamentares temáticas. Disse isso porque o calor de urnas recém-abertas confere ao eleito uma aparência de super-homem. Ao descer das nuvens da consagração para o chão escorregadio do dia-a-dia administrativo, o eleito percebe que presidente indignado com o fisiologismo é como comandante de navio revoltado com o mar. Eis o que está sucedendo em Brasília: para conseguir navegar, o capitão negocia com os líderes partidários os termos de sua rendição.



Conforme já noticiado aqui, o presidente sinalizou a disposição de reativar o balcão. O eleitor de Bolsonaro, com fome de assepsia, espera que seu líder fixe novos padrões morais. Mas está entendido que, no Brasil, não importa se o presidente é de esquerda ou de direita. Para que seus projetos avancem no Congresso, ele terá de singrar as águas turvas dominadas pelo centrão e seus assemelhados. Dando-se de barato que o pedágio é inevitável, Bolsonaro poderia inovar na transparência. Bastaria acender a luz do ambiente, deixando à mostra tudo o que os partidos desejam tomar e o que o governo se dispõe a dar. O diabo é que Bolsonaro parece preferir a trilha da empulhação.

Após abrir a temporada de indicações partidárias para cargos do segundo e do terceiro escalão, o Planalto passou a trombetear a decisão de criar um "banco de talentos". Isso é marquetagem, não solução. Argumenta-se que os ministros darão a última palavra. A regra não chega a entusiasmar, pois um terço da equipe ministerial de Bolsonaro carrega algum tipo de suspeição em inquéritos, denúncias, ações penais e até uma sentença condenatória. Alega-se que apenas as indicações técnicas serão aceitas. Bobagem. Na máquina estatal, não basta ser técnico. É preciso saber se as habilidades técnicas estão a serviço do interesse público ou dos interesses privados do padrinho político.

A propósito, recomendasse a Bolsonaro que chame Sergio Moro para uma conversa. O capitão deve pedir ao seu ministro da Justiça que faça um relato sobre o primeiro depoimento do delator Paulo Roberto Costa num processo da Lava Jato. Ex-diretor de Abastecimento da Petrobras, Paulinho, como Lula o chamava, foi inquirido pelo então titular da 13ª Vara Federal de Curitiba em outubro de 2014. Funcionário de carreira da Petrobras, o réu chegou à diretoria por indicação do PP, um dos partidos que agora exigem que Bolsonaro encoste o estômago no balcão.

Antes de dar por encerrado o interrogatório, Sergio Moro perguntou se Paulinho gostaria de "dizer alguma". E ele: "Queria dizer só uma coisa, Excelência. Eu trabalhei na Petrobras 35 anos. Vinte e sete anos do meu trabalho foram trabalhos técnicos, gerenciais. E eu não tive nenhuma mácula nesses 27 anos. Se houve erro —e houve, não é?— foi a partir da entrada minha na diretoria por envolvimento com grupos políticos, que usam a oração de São Francisco, que é dando que se recebe. Eles dizem muito isso. Então, esse envolvimento político que tem, que tinha em todas as diretorias da Petrobras, é uma mácula dentro da companhia…"

Ou seja: em meio a muitas dúvidas sobre o modo como Bolsonaro pretende gerenciar o balcão, só uma coisa é certa: se o governo recebe a indicação de centenas de larápios vinculados aos partidos fisiológicos com representação no Congresso, eles acabarão assumindo poltronas nas cercanias dos cofres públicos. Embora inscritos no banco de talentos do novo governo, continuarão sendo larápios.

Pensamento do Dia


Erro de Bolsonaro na política educacional poderia condenar gerações

Em meio a tantas tragédias neste início de ano, muitos devem estar se perguntando: este país tem futuro? A história brasileira sempre teve altos e baixos frente a tal pergunta. Mais recentemente, a redemocratização inaugurou um período mais otimista, com momentos de euforia no Plano Real e no auge da popularidade de 83% do presidente Lula. Porém, desde as jornadas de junho de 2013, tem predominado o pessimismo. A vitória de Bolsonaro indica uma possibilidade de mudança de humor, mas o começo do governo está muito confuso para se fazer previsões.

De qualquer modo, o fator mais poderoso para nos tirar desses ciclos de euforia e depressão, gerando uma transformação estrutural do Brasil, é a reforma da educação. Somente melhorias contínuas e profundas da política educacional podem atacar os três maiores problemas do país. Primeiro, o combate à desigualdade, pois o ensino de qualidade para todos é o mecanismo intertemporal mais eficaz no aumento da igualdade de oportunidades entre ricos e pobres. Segundo, o crescimento da produtividade da economia, que depende sim de medidas macro e microeconômicas, mas cuja sustentabilidade depende da boa formação escolar do capital humano. E, por fim, o déficit de cidadania, fortemente vinculado à assimetria no acesso à informação e ao capital cultural.

O diagnóstico parece cristalino. Todavia, ao se analisar o conjunto de prioridades dos cem dias do presidente Bolsonaro, claramente se constata que a política educacional tem um lugar secundário no novo governo. Mais do que isso, as falas do ministro da Educação, Ricardo Vélez, demonstram um desconhecimento tanto da história recente do ensino no Brasil como sobre quais são as questões mais relevantes nessa temática. Como todo bom debate começa a partir do benefício da dúvida, pode-se supor que ainda seja cedo para uma avaliação tão peremptória, tendo como pressuposto a crença de que o comandante do MEC poderá aprender com os estudos e experiências educacionais brasileiras e internacionais.

Neste sentido, um documento que pode ajudar nos rumos do novo MEC é o "Educação Já", texto produzido pelo Todos Pela Educação, movimento que congrega vários atores que atuam e apoiam esse campo, em especial gestores públicos, entidades do Terceiro Setor e pesquisadores do assunto. Trata-se de uma proposta que é fruto do amadurecimento do diagnóstico e da agenda para o setor, resultado de muitas pesquisas sobre o Brasil e a educação no mundo, bem como dos aprendizados que os atores tiveram com a implementação da política educacional desde a redemocratização.

Na qualidade de alguém que participou da confecção do documento, posso assegurar que o texto não esgota todas as questões que envolvem o tema educacional no Brasil. Além disso, sempre é possível polemizar com os argumentos ali construídos ou aperfeiçoá-los. Mas qualquer debate aqui depende da utilização da mesma lógica que alimentou a produção dessa proposta, baseada em duas coisas. A primeira é ter como base as evidências dos estudos científicos e da análise de experiências concretas. E a segunda foi o diálogo com vários atores estratégicos, dos mais diferentes grupos e partidos, que participaram da política de educação nos últimos 30 anos.

A lista de problemas da política educacional brasileira é extensa. Mesmo assim, deve-se inicialmente admitir o quanto o país avançou desde a Constituição de 1988. Houve a universalização do ensino fundamental; um grande crescimento dos alunos concluintes do ensino médio; a ampliação do acesso à educação infantil e mesmo à universidade; a melhoria da carreira de professor, principalmente por meio de concursos e da ampliação da formação docente; a criação de um modelo mais redistributivo de financiamento; a adoção de modelos de avaliação em larga escala que permitem conhecer melhor a real situação do aprendizado dos alunos; e, mais recentemente, a proposição de uma base curricular capaz de orientar com maior precisão o trabalho didático dos professores.

Ainda poderiam ser adicionados ao rol de avanços um conjunto de programas e experiências na educação em algumas partes do país. Entre estes, dois bons exemplos são o programa de alfabetização no Ceará e a escola de tempo integral no ensino médio pernambucano. Mas chama a atenção que as boas práticas são pouco disseminadas pelo Brasil afora, de modo que há ilhas de excelência rodeadas por mares de problemas educacionais.

Para que um diagnóstico pavimente o caminho para uma agenda exequível é preciso escolher prioridades. Ou melhor, é necessário selecionar os temas que são mais importantes e cuja resolução tem efeitos positivos sobre o conjunto dos problemas. Assim, o documento "Educação Já" produz uma visão sistêmica (a relação das partes com o todo), de longo prazo e que sabe estabelecer quais são as maiores urgências da educação.

São sete as prioridades definidas pelo documento proposto pelo Todos Pela Educação. A primeira diz respeito à melhoria da governança do sistema educacional, pois as políticas só vão dar certo se houver um modelo decisório e de implementação adequado. É fundamental melhorar a qualidade da gestão das redes de ensino subnacionais e do próprio MEC. Mais importante, deve-se fortalecer o regime de colaboração entre os níveis de governo, fortalecendo os laços verticais de cooperação entre União, Estados e municípios, bem como a parceria e articulação entre os governos locais. A melhoria das relações intergovernamentais é muito importante, especialmente por conta das desigualdades que há entre os entes federativos. Para resolver isso, um dos pontos centrais aqui é a criação de um Sistema Nacional de Educação, capaz de coordenar e democratizar as ações educacionais dos três níveis de governo

A segunda prioridade passa pelo aperfeiçoamento do sistema de financiamento da educação. Embora tenha havido avanços desde a criação do Fundef/Fundeb, ainda há espaço para aumentar a capacidade redistributiva da transferência de recursos, repassando mais aos governos subnacionais que têm maiores vulnerabilidades em seu corpo de alunos. Além disso, é necessário instaurar mecanismos de indução de boas práticas por meio da distribuição de dinheiro e/ou apoio técnico. No fundo, a questão aqui é como combinar a preocupação com a busca da equidade com a melhoria do desempenho do modelo educacional.

A aprovação de uma Base Nacional Comum Curricular foi um dos maiores avanços recentes, com o apoio de diferentes partidos e de gestores por todo o país. Mas agora chega a etapa mais difícil: a implementação. Eis aqui a terceira prioridade do "Educação Já": a criação de uma série de medidas que garantam a efetivação dessa transformação em todas as redes de ensino do país. Cabe frisar que um bom currículo, construído pelos atores que o utilizarão, e sob condições adequadas de execução, tem como principal efeito aumentar as chances do aprendizado de todos os alunos.

Nenhum sistema de ensino no mundo melhora se não aprimorar a formação e a profissionalização da carreira docente. Essa quarta prioridade capta o elemento mais central da política educacional, pois o caso brasileiro é caracterizado pela baixa qualidade da formação inicial de professores, pela falta de mecanismos mais efetivos para atrair e reter jovens talentosos na profissão, pela precariedade das escolas como ambiente de trabalho e pela escassez de incentivos que reforcem, continuamente, o desenvolvimento profissional, tanto para motivar como para responsabilizar os docentes. Em resumo, precisamos de professores qualificados continuamente, motivados e cobrados pela comunidade para que alcancem sua principal e mais nobre tarefa: o aprendizado de todos os alunos.

As últimas três prioridades dizem respeito a etapas do sistema de ensino. Deve-se fortalecer as políticas para a primeira infância, porque os estudos mostram claramente que o êxito nessa fase potencializa o aprendizado futuro, favorecendo sobretudo os que têm condições mais precárias de vida. Também é preciso criar as condições mais adequadas para a alfabetização, uma vez que 55% das crianças brasileiras de 8 a 9 anos de idade não estão alfabetizadas. Por fim, um novo modelo de ensino médio precisa urgentemente ser montado, dada a enorme evasão de alunos, a fragilidade do aprendizado, a falta de diversificação de saberes e o baixo protagonismo juvenil, elementos que, ao fim e ao cabo, restringem as oportunidades educacionais de parcela significativa da juventude brasileira.

Esse conjunto de mudanças exige uma decisão política em prol de reformas profundas e contínuas da educação. Países como o Chile, o Canadá, a Austrália, Cingapura e a Finlândia, entre outros, colocaram a política educacional no centro da agenda pública. O Brasil ainda não fez isso e, por isso, está perdendo a competição com outras nações nos exames internacionais, como o Pisa.

A pergunta que fica no ar é: o governo Bolsonaro terá coragem e competência para liderar esse processo? Afinal, mesmo fazendo reformas como a da Previdência, não haverá país algum a comemorar sem mudanças na educação. Adotar um rumo errado agora na política educacional condenará gerações. E o pior futuro é a falta de perspectiva para nossos filhos e netos.
Fernando Abrucio

Miséria só em baixo

A miséria das classes baixas é sempre maior que o espírito de fraternidade das classes altas
Victor Hugo, "Os Miseráveis"

Não há crédito sem débito, esta é a questão essencial da reforma da Previdência

Exatamente isso é o que ocorre com o projeto de reforma da Previdência Social, na medida em que o texto do Ministro Paulo Guedes anuncia o propósito de reduzir as despesas em 1,1 trilhão de reais ao longo de 10 anos. Não será fácil, sobretudo porque na essência da proposição tal economia será decorrente de vencimentos destinados às aposentadorias e pensões.

Citei uma regra de contabilidade de que não pode existir crédito sem débito e vice versa. Se o país estivesse em uma fase de desenvolvimento, poder-se-ia dizer que a escala projetada seria absorvida pelo mercado de pleno emprego e de reajustes salariais correspondentes à inflação do IBGE. Mas não é esse o cenário atual da economia brasileira.

As reportagens de Geralda Doca e Marcelo Correa, edição de ontem de O Globo, focalizam muito bem os objetivos principais da reforma previdenciária. Entretanto, a meta que surge dos números indica que os custos do equilíbrio estão voltados para aumentos de contribuição e cortes de benefícios.

Em relação às contribuições das empresas não estão previstos aumentos, pelo contrário, um dos objetivos pelos quais luta o ministro Paulo Guedes volta-se para o plano oposto: ou seja, em vez de elevar alíquotas, reduzi-las para os empregadores . Podendo até desonerar de vez a parcela de 20% devida pelas empresas sobre a folha de salários, como já afirmou Guedes.

A desoneração das empresas não se encontra no texto da reforma entregue anteontem pelo Presidente Bolsonaro. Entretanto, de acordo com as matérias publicadas na edição de ontem de O Globo, um dos objetivos da equipe econômica volta-se para extinguir a obrigação de 8% para o FGTS no caso do trabalhador aposentado que continue trabalhando. Desde que o aposentado ou aposentada venham a começar a trabalhar a partir da aprovação do projeto do governo.

Além disso, quando o aposentado e ou aposentada forem dispensados pelas empresas, estas estão dispensadas de recolher a multa de 40% sobre os depósitos aplicados em suas contas.

Na minha opinião, sem atribuir obrigações aos empresários, a cota dos empregados não poderá ser suficiente para possibilitar 110 bilhões de reais por ano de economia, o que atingiria a ideia de 1,1 trilhão de reais em 10 anos. Tem de se considerar também a incidência da inflação no período. Isso fica bastante claro se levarmos em conta como base a taxa inflacionária de 4%a/a, como ocorreu em 2018, de acordo com os cálculos do IBGE.

Esse é o panorama da luta que vai ser travada colocando de um lado o Governo, de outro o Legislativo, tendo no meio a mão de obra ativa brasileira. São 100 milhões de homens e mulheres, dos quais 35% trabalham sem carteira assinada, o que exime a contribuição previdenciária das empresas. O trabalho informal de um lado fornece contribuição tributária, de outro isenta os depósitos nas contas do INSS e do FGTS. Eis a questão.

Sargento de milícias

O romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, publicado integralmente em 1854, é um manual da picardia característica dos cariocas e fluminenses. Faz uma espécie de “fusion” identitária entre classe média e as camadas populares do Rio de Janeiro, na qual traça o arquétipo da malandragem. Foge das características do romantismo brasileiro da época, porque seu personagem principal, Leonardo, é um cara muito esperto, que se torna sargento graças à proteção de seu padrinho, Major Vidigal. Não é um herói nativista ou patriótico, capaz de servir de paradigma de nobres costumes para construção da identidade nacional, como outros personagens da literatura da época.

Como retrata a vida no Rio de Janeiro por ocasião da chegada de D. João VI e da corte portuguesa, em 1808, foge à regra das histórias baseadas no cotidiano das elites cortesãs, embora também faça a crítica do comportamento delas. É uma mistura de romance picaresco e crônica dos costumes, cuja originalidade e importância aumentam com o tempo, porque mostra características identitárias que se afirmaram como permanentes ao passar dos anos. Coube ao acadêmico Antônio Cândido destacar a importância literária do romance escrito em forma de folhetim e publicado originalmente no Correio Mercantil, entre 1852 e 1853.

No ensaio Dialética da malandragem, um marco da crítica literária no Brasil, Antônio Cândido mostra que o romance de Manoel Antônio de Almeida estabelece um nexo entre a ordem e a desordem, a primeira representada pelo Major Vidigal; a segunda, por Leonardo, mas ambos oscilam entre um polo e outro: ordem e desordem se articulam solidamente, mas “o mundo hierarquizado na aparência se revela essencialmente subvertido, quando os extremos se tocam”. Manuel Antônio de Almeida não faz juízo de valor sobre os personagens, cujas ações certas e erradas se misturam. Na sua obra, como na vida, o bem e o mal se contrabalançam a todo instante.

É nesse universo que os extremos são mitigados um pelo outro. Não existe moral no livro, somente as ações e resultados. A leitura do romance ajuda a compreender a complexidade do problema das milícias do Rio de Janeiro, quando nada porque sua origem são as entranhas da força policial criada por Dom João VI logo após chegar ao Brasil, para manter a ordem na nova sede de seu império. Não há rebelião política ou guerra na história do Brasil, desde 1809, na qual a Polícia Militar do Rio de Janeiro não tenha estado presente.

O outro lado da moeda é o achaque, a contravenção e a venda de serviços de proteção por elementos ligados ou oriundos da Polícia Militar fluminense. No caso do Rio de Janeiro, o colapso dos esquemas de corrupção política tradicionais, que operavam na administração direta e nas estatais, momentaneamente, fortaleceu o poder político das milícias, que agora rondam o Palácio do Planalto. Predominantemente formadas por ex-policiais militares, operam na economia informal, principalmente na prestação de serviços de toda ordem: do transporte de van ao gatonet, do fornecimento de gás à cobrança de agiotas, da proteção aos bicheiros à partilha do tráfico de drogas, da receptação de cargas coligadas ao contrabando, da grilagem de terra aos condomínios irregulares, dos serviços de segurança às execuções. Não existe protesto de título em cartório nessa economia informal, a cobrança de dívidas é feita à bala. Não é à toa que os índices de investigação de homicídios são baixíssimos. As milícias do Rio de Janeiro são hoje uma tremenda força política e eleitoral, cujo poderio não deve ser subestimado.

Trairagem

O secretário-geral da Presidência, Gustavo Bebianno, perdeu o cargo porque teria vazado informações e fotos sobre as relações do clã Bolsonaro com o ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega, acusado de ser um chefão do “Escritório do crime”, grupo de extermínio das milícias do Rio de Janeiro sob investigação do Ministério Público Federal (MPF). Bebianno é aliado de Paulo Marinho, primeiro suplente de Flávio, que caiu em desgraça antes da posse, e do general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, quem mais tentou mantê-lo no cargo. No Palácio do Planalto, há muita teoria da conspiração na suposta traição de Bebianno a Bolsonaro.
Luiz Carlos Azedo