quarta-feira, 19 de junho de 2024

Pensamento do Dia (esqueceu?)

 


Brasileiros ganham R$ 500 por mês para treinar AI

O mercado bilionário da inteligência artificial (IA) tem atraído talentos brasileiros com salários muito acima da média para engenheiros, matemáticos e outros profissionais que se destacam na área.

Mas nem todos os envolvidos com esta tecnologia estão em uma posição invejável.

Há todo um contingente de trabalhadores terceirizados que fazem um trabalho manual laborioso, ganham menos da metade de um salário mínimo, em média, e, por isso, têm mais de um emprego para conseguir pagar as contas — mas são essenciais para que os sistemas de IA sejam capazes de operar.

Os chamados “operários de dados” são considerados “trabalhadores fantasmas” porque executam nos bastidores uma série interminável de microtarefas para refinar as inteligências artificiais.


"Os sistemas de IA requerem muito trabalho humano manual e discreto para funcionarem, o que evidentemente contradiz a narrativa dominante da progressiva e inexorável automação”, diz a socióloga Paola Tubaro, especializada da ciência da computação e professora e pesquisadora do Centro de Pesquisa em Economia e Estatística, na França.

“Por isso, empresas de tecnologia e desenvolvedores de IA não se dispõem a divulgar esse tipo de trabalho, que assim permanece escondido, ou seja, 'fantasma'".

Mas o que faz um operário dos dados?

"Eles inserem dados para treinar e moderar sistemas e atividades de IA", explica Rafael Grohmann, professor da Universidade de Toronto que pesquisa o trabalho no mundo contemporâneo.

Esse tipo de atividade ficou conhecida como microtrabalho, pela natureza fragmentada das tarefas envolvidas. O fenômeno é novo, assim como os termos usados para descrevê-lo, diz Grohmann.

“Temos usado muito o termo data workers [operários de dados, em tradução livre do inglês], o que os diferencia dos tech workers [profissionais de tecnologia], que são os responsáveis por produzir, projetar e analisar os dados da IA".

Na prática, esses trabalhadores (de dados) também podem ser chamados de "treinadores de IA".

Pegue um sistema como o ChatGPT, por exemplo. Os “treinadores” são responsáveis por alimentar o robô com as informações e dados que ele precisa para responder perguntas de usuários, auxiliar em traduções, fazer pesquisas, dentre outras tarefas.

Praticamente todos os sistemas de IA dependem destes operários de dados. Redes sociais, por exemplo, os contratam para monitorar as postagens e interações e detectar ações que ferem suas regras ou a lei.

Na comparação com uma fábrica tradicional, esses profissionais seriam o chão de fábrica.

"A lógica do que é a classe operária vai mudando com o tempo. Essa é uma nova apresentação do que são os blue-collars [termo em inglês para a classe operária] e os white-collars [os executivos, que estão longe das tarefas manuais]", diz Grohmann.

Os operários de dados ganham, em média, R$ 583,71 por mês em um emprego, segundo a pesquisa Microtrabalho no Brasil: Quem são os trabalhadores por trás da inteligência artificial.

Esses trabalhadores ganham por cada tarefa concluída e não por hora trabalhada. Segundo o estudo, esse valor médio mensal corresponde a cerca de 15,5 horas de dedicação por semana (cerca de R$ 9,41 por hora, na média).

Segundo um estudo de 2018 da Organização Internacional do Trabalho realizado com 3,5 mil microtrabalhadores de 75 países, a média global de ganho por hora é de US$ 4,43 (cerca de R$ 24, em valores atuais).

Mas, enquanto nos Estados Unidos o valor é maior, de US$ 4,70 (cerca de R$ 25), os operários de dados da África faturam bem menos, US$ 1,33 (cerca de R$ 7) por hora.

No Brasil, de acordo com a pesquisa Microtrabalho no Brasil, o valor gira em torno de US$ 1,60 (cerca R$ 9).

A pesquisa, conduzida por Tubaro junto com o psicólogo brasileiro Matheus Viana Braz e o sociólogo italiano Antonio Casilli, fez uma radiografia da situação do trabalho fantasma no Brasil.

Esse valor fica muito aquém do que os empregadores prometiam a esses trabalhadores que ganhariam realizando estas funções.

Os 477 trabalhadores fantasmas ouvidos pela pesquisa esperavam receber três vezes isso, cerca de R$ 1,6 mil por mês.

Pelo ganho bem abaixo do esperado, eles costumam acumular empregos, por vezes na mesma área, e conseguem com as múltiplas jornadas chegar a uma renda mensal média de R$ 1,8 mil.

O pesquisador em inovação e ciência de dados Mauro Zackiewicz, de 50 anos, que tem um doutorado nesta área, conta que trabalhou por pouco menos de um mês para uma fabricante de celulares recebendo documentos, como áudios triviais, conversas curtas e, por vezes cenas de filmes ou novelas.

“Tinha de corrigir tudo, provavelmente para alimentar de dados um sistema de reconhecimento de voz, mas nem chegaram a me contar para o que fazíamos aquilo", conta ele.

"Ganhava pouca coisa, dava apenas para a subsistência, e nem tinha contrato, o que é, digamos assim, curioso para uma grande empresa."

A pesquisa Microtrabalho no Brasil constatou que 66% dessa força de trabalho só ganha o suficiente para pagar as contas mais básicas.

A grande concorrência entre esses trabalhadores é um fator que contribui para os salários baixos, explica Tubaro.

"As plataformas querem garantir mão-de-obra suficiente para atender picos de demandas. O resultado é que, na maior parte do tempo, há excesso de trabalhadores e, por consequência, muita competição entre eles", explica a socióloga.

Isso significa que, na prática, os operários de dados não conseguem bater as metas estabelecidas pelos empregadores e, como são remunerados de acordo com isso, ganham valores reduzidos por cada hora trabalhada.

A pesquisa Microtrabalho no Brasil constatou que há muitas pessoas com diploma universitário fazendo esse tipo de serviço.

Dos quinze participantes selecionados para entrevistas, como uma amostra representativa do setor, treze eram formados em cursos variados, como direito, administração, ciências da computação e fisioterapia.

Sete em cada dez trabalhadores deste mercado têm entre 18 e 35 anos, segundo o estudo. De cada cinco, três são mulheres.

A maioria mora nos Estados de São Paulo (28,8%), Rio de Janeiro (12,6%) e Minas Gerais (9,7%).

O estudante Gustavo Luiz, de 19 anos, se divide entre o curso de inteligência artificial da Universidade Federal de Goiás, e o emprego como operário de dados.

“Estou trabalhado no desenvolvimento de um sistema de IA para analisar sentimentos expressos em textos e frases em português”, conta ele.

“Esse modelo vai receber dados e tentar encontrar padrões, como de sentimentos, em comentários nas redes sociais.”

Por ser um fenômeno detectado mais recentemente, não há dados precisos sobre o aumento da demanda por esse tipo de trabalho no Brasil.

Mas ofertas do tipo em plataformas de trabalho, como a rede social LinkedIn, têm se multiplicado. Para começar a trabalhar com isso, normalmente basta se cadastrar em um site e seguir as orientações.

Guilherme Graper, de 24 anos, conta que trabalha em uma plataforma da Amazon, mas contratado por outras empresas.

"Por exemplo, tem uma demanda de colocar nomes de médicos nesse sistema para treinar uma IA para pesquisar por médicos em toda a internet", explica.

Os ganhos variam muito. Guilherme diz que já chegou a tirar em um mês apenas R$ 300, mas também já ultrapassou a casa dos R$ 5 mil. Em média, ele calcula que ganha cerca de R$ 2 mil mensais.

Na maioria dos casos, as empresas que contratam trabalhadores fantasmas prestam na verdade serviços para outras bem maiores.

Gigantes de tecnologia, como Meta (do Facebook e Instagram) e a OpenAI (do ChatGPT) subcontratam os seus operários de dados.

"Trata-se de uma realidade do Sul Global [termo que designa países mais pobres, a maioria localizada no hemisfério sul]. São trabalhadores na Venezuela, na Colômbia, no Quênia", ressalta Grohmann.

Apesar de estarem distantes dos maiores centros mundiais de tecnologia, como o Vale do Silício californiano, usualmente os operários de dados treinam IAs de propriedade das grandes marcas do setor.

"A distância não é somente geográfica, como também linguística e cultural. Geralmente, essa distância leva a redução de custos para as empresas do Vale do Silício, mas resultam em baixa qualidade", comenta a socióloga Paola Tubaro.

Tanto a terceirização quanto a falta de regulamentação da profissão levam também, segundo Tubaro, a "práticas sob condições indesejáveis, com precariedade, baixos pagamentos, falta de reconhecimento, informalidade e, como em casos de moderação de conteúdo em redes sociais, riscos à saúde mental".

"Os moderadores de conteúdo das redes sociais ainda estão expostos a riscos psicológicos", completa Tubaro.

Isso por efeito do contato diário com imagens de crueldade, crimes e outras atrocidades que são detectadas pelo algoritmo dessas plataformas e, depois, repassados para avaliação humana.

Já há, contudo, iniciativas que visam regulamentar esse trabalho. É o caso do projeto global Fairwork, coordenado pelo instituto Oxford Internet e pelo Centro de Ciências Sociais WZB Berlin.

Presente em 38 países de cinco continentes, inclusive no Brasil, a organização denuncia abusos relacionados aos trabalhadores de dados, além de propor soluções.

Em todo o mundo, a Fairwork afirma ter convencido 64 empresas de tecnologia a implementar um total de 300 mudanças em políticas internas, como de salários mínimos para a categoria.

A organização é influente principalmente na Europa, mas também tem presença no Brasil, onde tem atuado em prol da criação de leis para regularizar essa categoria de trabalhadores.

A Fairwork destaca em seu site que está "envolvida com o grupo de trabalho tripartido do governo (brasileiro) que procura elaborar um projeto de lei para proteger os direitos dos trabalhadores".

Além de atuar no Congresso em favor de leis que garantam mais direitos trabalhistas, a organização produz relatórios que denunciam o cenário no Brasil.

O documento, divulgado em 2023, apontou que, em uma análise de onze empresas do setor, apenas duas conseguiam garantir ao menos um salário mínimo de pagamento a estes trabalhadores.

Tubaro avalia que estas iniciativas podem ajudar a combater condições de trabalho que são consideradas precárias.

A pesquisadora destaca como bons exemplos leis recentemente aprovadas na Alemanha e na França e que, segundo avalia, "exigem que pelo menos as grandes empresas exerçam a devida diligência no respeito dos direitos humanos e laborais ao longo de suas cadeias de abastecimento".

Trata-se de um problema global. A Fairwork produz relatórios sobre os cenários para os microtrabalhadores em 36 países, tanto em desenvolvimento, como Argentina, Quênia e Índia, quanto desenvolvidos, como França e Estados Unidos.

Segundo um desses relatórios, 16% dos trabalhadores americanos realizam alguma forma de microtrabalho, mesmo que como renda secundária. É o país que lidera o ranking neste quesito.

Dentre a atuação de treze empresas nos Estados Unidos, apenas 3 alcançaram os critérios estabelecidos para serem consideradas como ambientes de trabalho justos.

"Há custos globais para esse rápido desenvolvimento e pelo aumento da presença da IA", afirma o pesquisador Rafael Grohmann. "Mas há especificidades para cada país e isso exige atenção".

Em países como os Estados Unidos, esses trabalhadores costumam atuar mais, por exemplo, como motoristas de Uber.

"As tarefas mais precárias, como as de moderação de conteúdo, costumam ser terceirizadas para nações da África, da Ásia e da América Latina", diz Grohmann.

Nosso senhor

O mercado financeiro e os rentistas (e os economistas que trabalham para os rentistas e os financistas) passaram a capturar o patrimônio público. Eles estão, no ano da graça de 2024, portanto 30 anos depois do real, capturando 7% do PIB
Luiz Carlos Bresser Pereira, ex-ministro da Fazenda

Pautas contraditórias

É surpreendente como as sucessivas vitórias eleitorais da direita ainda surpreendem analistas e militantes de esquerda presos à antiga Era de Abundância, por não perceberem a pauta dos eleitores na Era dos Limites: visível no desequilíbrio ecológico, no esgotamento financeiro dos Estados, na pressão dos imigrantes, nas reivindicações das minorias, nos deficits previdenciários, na inversão da pirâmide etária com mais velhos e menos jovens.

Até recentemente, com os recursos que pareciam ilimitados na natureza e no Estado, a esquerda apontava na direção do aumento dos direitos sociais. Era possível receber imigrantes sem reduzir direitos já conquistados, aumentar o consumo sem pressionar desequilíbrios ecológicos para as gerações futuras, atender a crescentes benefícios previdenciários, respeitar minorias sem ofender a maioria. A migração em massa desarticula os direitos conquistados em décadas passadas, a crise ambiental não permite oferecer o mesmo padrão de consumo às gerações futuras, as finanças públicas desequilibradas não asseguram os recursos fiscais necessários para aposentadorias e outros benefícios. Com a consciência dos limites de recursos e o fim da ideia de abundância para todos, esses direitos e promessas ficam ameaçados, e o eleitor opta pela direita para defender privilégios com a mesma lógica que antes votava em propostas progressistas da esquerda para aumentar direitos.


O eleitor fica na direita porque mantém a mesma lógica democrática de usar seu poder soberano para construir de imediato uma sociedade melhor para si e seu entorno. Antes, era abrindo as fronteiras para as novas gerações. Originários de outros países, os estrangeiros, agora, já não cabem dentro das fronteiras nacionais: nem os estrangeiros geográficos que pedem para entrar; nem os estrangeiros sociais, os pobres do próprio país, que um livro de 2002 chamava de "instrangeiros"; nem os estrangeiros geracionais, jovens atuais e os que ainda vão nascer e precisarão evitar a hecatombe climática.

A pauta dos eleitores perdeu sintonia com a pauta humanista, mas as chamadas forças progressistas mantêm-se prisioneiras a um tipo de futuro que o presente faz impossível. A visão humanista olha o futuro da humanidade com ampliação de direitos para todos os seres humanos, não importa em que lado estiver da fronteira geográfica, social ou geracional. O discurso da direita fala para o presente e para a nação, com a manutenção dos privilégios, a garantia da ordem e dos costumes e ainda oferece paliativos sociais que acenam a uma utopia provisória, como carro elétrico que minora a crise ecológica sem resolvê-la e rendas mínimas que mitigam a penúria dos pobres sem superar a tragédia da pobreza, sem incorporar os "instrangeiros".

A Era dos Limites criou um divórcio entre o humanismo planetário e futurista, e a democracia nacional e imediatista. O eleitor defende seus interesses locais e de curto prazo, mas a esquerda, em vez de inventar novas utopias, fica presa na nostalgia ideológica, até da necrofilia ideológica. Não oferece propostas para fazer a democracia avançar a alguma forma de "humanocracia" (voto nacional submetido a valores universais); não busca convencer o eleitor a entender os riscos ecológicos e morais da xenofobia e do imediatismo contra a humanidade e o futuro; nem desperta em cada indivíduo um sentimento de solidariedade com todos os seres humanos e com a natureza; não propõe uma alternativa à riqueza medida pelo PIB. Não entende que seu humanismo é recusado porque não atende à pauta dos eleitores com horror ao futuro, aos riscos, aos estrangeiros, às incertezas, à violência, ao crime, às mudanças no clima e nos costumes. No lugar de oferecer novas utopias convincentes filosoficamente e sedutoras eleitoralmente, a esquerda prefere ficar presa a ideias do passado ou cair no eleitoralismo, ou substituir a legítima vontade individualista e imediatista do eleitor pela vontade ilegítima de autocratas. No lugar de perceber o esgotamento de suas ideias, acusa o eleitor e a direita eleita.

A esquerda precisa entender as mudanças ocorridas, tratar as ideologias passadas como peças de museus intelectuais, do tempo anterior à Era dos Limites, e formular novos sonhos e propostas necessárias para ampliar direitos sociais e ecológicos a toda humanidade com apoio do eleitor nacional que não quer perder seus privilégios atuais em nome do futuro e da humanidade.

O futuro possível requer coragem

Há momentos em que é muito importante relembrar a História. Acredito que estamos em um desses momentos. O pessimismo é a grande realidade instalada a nível global. O desânimo e o desalento imperam, e a maioria das pessoas acha que a humanidade está sem rumo. Muitos, inclusive, já jogaram a toalha. Alguns, de tão desiludidos, anseiam pelo fim do mundo. Entre os grupos etários, a juventude é o mais afetado. Uma pesquisa com 10 mil jovens de 10 países publicada no “The Lancet” há um ano e meio revelou que 75% deles achavam o futuro assustador; 56%, que a humanidade estava condenada. Por essa razão, 48% afirmaram que não teriam filhos. O que podemos esperar do futuro se os mais novos, responsáveis por construí-lo, estão totalmente sem esperança? No limite, este pensamento fatalista pode representar um retrocesso civilizatório, ou mesmo o fim dos nossos tempos.

Há 35 anos, uma multidão que não aceitou continuar no obscurantismo fez o impossível se tornar realidade. O ano de 1989 foi um verdadeiro “annus mirabilis”, como se diz em latim, literalmente mudou tudo. Os protestos por liberdade que irromperam no Leste Europeu no período escalaram para a imensa Revolução Pacífica, culminando na queda do Muro de Berlim e no colapso soviético. Livre do fascismo e do comunismo, o mundo estava fadado a ser democrático. Nas palavras de Francis Fukuyama, era o fim da História como tal. A perspectiva de que seria substituída por outra mais justa, mais tolerante, guiada pela razão e pelo progresso, gerou uma enorme onda de esperança. Foi o início de uma época de otimismo e progresso.

Mas a utopia liberal das democracias perfeitas durou pouco. O panorama atual é desolador: vivemos uma mistura tóxica de insatisfação, ressentimento e intolerância, inclusive por parte dos que se apresentam como os defensores da diversidade, da equidade e da inclusão, mas perseguem e cancelam quem pensa diferente - a liberdade de expressão é um direito só deles, pois se acham os detentores da verdade. O grande perigo é que novamente estamos diante da ameaça do totalitarismo, do fundamentalismo religioso e do populismo autoritário. Hoje, o caminho do meio, do bom senso em torno de ideais comuns, construído a duras penas, foi totalmente bloqueado, está fora de moda e não tem apelo. Estamos vivendo o enfraquecimento das democracias com o abalo sistemático das instituições e dos valores democráticos em diversos países. Até os Estados Unidos e a França, dois bastiões da democracia liberal, apresentam sinais de deterioração.


No Brasil, a situação também é crítica. Os valores e convicções que servem de alicerces para a nossa frágil democracia começaram a ser degradados há 20 anos pela corrupção, pela pobreza e por apostas erradas da política econômica e fiscal dos governos de plantão. Tudo isso minou a confiança da população nas instituições. Na última edição do ranking “Democracy Index”, da “The Economist”, ficamos na 47ª posição entre 167 países, o que nos coloca na categoria “democracia imperfeita”.

O país está cansado de promessas de crescimento infundadas e de políticas sociais de maquiagem. Estamos a um passo de virar um país autoritário. Não bastasse, o Brasil entra agora na perigosa seara da insegurança jurídica e acelera ladeira abaixo para perder a confiança dos investidores nacionais e internacionais. É possível mudar esse jogo, temos só que acreditar nisso!

Precisamos superar o pessimismo e unir todos as pessoas de bom senso, de direita e de esquerda, diante um de um projeto sensato para o país. É isso que propõe o cientista político Luiz Felipe D'ávila no novo livro “Vire à direita e siga em frente”. Para D'ávila, só há uma alternativa para deixarmos um país melhor para os nossos filhos e netos. Os defensores da liberdade precisam sair do seu casulo e lutar nas ruas e na imprensa, no mercado e nas urnas, para construir um país realista, confiável, aberto para o mundo, com capacidade de crescimento, oportunidade de trabalho para todos, o mais rápido possível.

Certamente, o mundo não está em sua melhor forma, longe disso. No entanto, hoje temos muito mais informações do que jamais imaginamos ter e, por meio delas, podemos ver que, de perto e sem nenhum viés, o mundo melhorou drasticamente ao longo dos séculos. Essas mesmas informações nos mostram que tudo de bom que aconteceu foi consequência de ações e de muito esforço. Como diz o psicólogo Steven Pinker, o progresso não é inevitável, é intencional e pode ser direcionado, pois não é mera consequência do destino. Portanto, o progresso, se for motivado por ambições elevadas para uma sociedade melhor, pode se transformar numa grande conquista e num meio para criarmos um mundo e um país melhor.

O otimismo dos primórdios do século 20 cedeu lugar ao pessimismo quando populistas e outros políticos iliberais foram eleitos. Para o mundo melhorar, temos de evitar que as pessoas sejam seduzidas pelo discurso catastrofista.

Foi uma longa jornada até deixarmos de ser subjugados por reis, ditadores e tiranos e nos tornarmos cidadãos livres, responsáveis por nossas escolhas. Enfrentamos períodos de obscurantismo e de intolerância, de guerras e conflitos, para expurgar fanáticos e sabotadores da liberdade. Não podemos perder essa conquista jamais. Não podemos nos deixar contaminar e paralisar pela desesperança.

A lição de 1989 é que mudanças espetaculares são possíveis. Mesmo a situação mais terrível pode ser superada com racionalidade, com fé e coragem. O pragmatismo é o antídoto para combater as paixões extremistas e está na hora de usá-lo. A clareza de ideias, a diplomacia a organização e determinação são os meios. As pessoas podem construir o próprio futuro a partir de uma concepção de “bem comum”, do que queremos como sociedade e de quais os valores e os princípios nos servirão de bússola para chegar ao nosso destino.

Não somos vítimas passivas de fatos inesperados sobre os quais não temos controle. Nem das decisões de líderes, mesmo que democraticamente eleitos, com as quais não concordamos.

Homo sapiens, de mal a pior

Na pletora de más notícias e novas decepções, continuamos no esforço cidadão, cotidiano, teimoso mesmo, de não perder a esperança no Brasil e lutar por nosso país como por nossa própria vida. Nesses dias ásperos e tristes de inacreditável atraso civilizatório, em que se põe em risco, despudoradamente, a vida de crianças e adolescentes vítimas da mais perversa violentação humana, que é um abuso sexual, nos perguntamos: é em nome de que? Não bastam a repetição de “criança não é mãe” e estuprador não é pai”, que temos visto em mensagens e publicações, para alertar sobre, no mínimo, o absurdo dessa medida extemporânea, quando há tempos o país já tem uma legislação, prevista por nossa Constituição, e protetora para casos de gestações de fetos anencéfalos, risco de vida da mãe e frutos de estupro, permitindo o abortamento de modo legal e cercado dos melhores cuidados de saúde a essas mulheres, na maior parte das vezes menores de idade, a compor a vergonhosa estatística dos milhares no país.


Análises corajosas, sem concessões, podem, sem dúvida, levar a uma tomada de consciência. Sem dúvida, mesmo? Nossa sociedade, tão marcadamente desigual, inclusive no recebimento de informações já processadas e com todo o dolo da desvirtuação, está mesmo pronta a entender o que seja uma ação civilizatória, que independa de critérios ditos religiosos, e que arbitrem sobre preceitos médicos ou de decisões pessoais? Sem dúvida há que se atentar para não generalizar, porquanto não se pode atribuir a uma suposta vontade de apenas um único credo, como se este fosse homogêneo em sua opinião e certezas. Sabemos que não é assim.

Enquete muito recente sobre esse projeto de lei, revela que 88% dos que se manifestaram, são contrários a ele. Porém, será que essa reação é capaz de desconstruir a volúpia dos que querem criar mais um fato satânico de atraso, com tantas mazelas e problemas que o país tem a resolver, e ações educadoras a implementar, sobretudo para proteger os mais vulneráveis? Consola-nos o coro harmônico composto pela homilia do padre Júlio Lancelotti, em prol de nossas meninas e mulheres, os textos de há dois dias, seminais e transbordando de sensibilidade, das jornalistas Dorrit Harazin e Miriam Leitão, e o do médico Daniel Becker, de par com o estranhamento que contamina saudavelmente o nosso inconsciente coletivo de que há algo errado em pauta, e que não podemos ser apenas expectadores de tantos desatinos.

Pensar que a tudo isso se somam outros dados catastróficos na educação dessa mesma geração que é vítima, em particular a que mais sofre violência, com ensino básico que não provê mais do que uma alfabetização funcional, a impedir irremediavelmente mecanismos críticos de defesa; somado à recente abertura de escolas médicas em profusão, sem critério algum de qualidade ou compromisso com a saúde do país, e suas prioridades, fato aceito passivamente como um bom negócio para ganhar dinheiro, torna nosso exercício cotidiano de resiliência mais robusto, salvo nos que sucumbem à inércia, embriagados dela mesmo, com queixumes permanentes de fatalidade.

Vivemos esse agudo momento (ao tempo que nos indagamos se ele é apenas uma exacerbação mórbida de um mal crônico que assola nossa realidade brasileira) no qual até a bioética, como ciência, tem que se esforçar para não se enganar com ela mesmo, balançando entre seus limites, e nos obrigando a levantar questões do verdadeiro sentido da vida, de modo permanente.

Como nossa preocupação essencial é fazer pelo outro além de fazer por nós mesmos (como pôr a máscara do avião antes em nós mesmos para que possamos auxiliar o outro), é natural que nos sintamos decepcionados com o pouco que temos podido fazer para modificar o real concreto, ou ao menos penetrar, com a racionalidade que deve nos nutrir e guiar, nesse imaginário complexo e fascinante de nossa gente, para não perder a aventura de sonhar e alcançar dias mais humanos.