quinta-feira, 28 de maio de 2020

Como será sem muletas?



Não teremos outro dia como ontem, chega. Querem tirar a mídia que eu tenho a meu favor sob o argumento mentiroso de fake news
Jair Bolsonaro

Bolsonaro tenta melar o jogo quando perde

Na escalada do confronto entre os poderes, a crise de hoje parece ser sempre pior do que a de ontem – e quando nossa meia dúzia de leitores estiver vendo isto, certamente outro fato chocante no campo institucional-político-policial já terá desviado as atenções. Mas é fundamental que todo mundo que tenha apreço pela democracia preste muita atenção na sequência dos últimos dias. Ela trouxe um ministro general ameaçando o país com “consequências imprevisíveis à estabilidade” caso o celular do presidente da República fosse apreendido pelo STF, o inusitado apoio do ministro da Defesa a essa posição e uma declaração do próprio presidente de que não entregaria o telefone, numa antecipada confissão de que, sim, o chefe da nação está pronto a descumprir uma decisão judicial se ela for contra ele.

O celular de Jair Bolsonaro não será apreendido, mas nem por isso dá para fingir que o episódio não aconteceu – e nem seus desdobramentos, sob a forma de protestos meio atrasados e não muito explícitos do Supremo e do Congresso. Foi tudo muito grave, mas a situação conseguiu ficar pior com as duas megaoperações da Polícia Federal, uma por ordem do Ministério Público Federal contra um desafeto de Bolsonaro, o governador do Rio, Wilson Witzel; outra determinada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, no inquérito das FakeNews, tendo como alvo parlamentares bolsonaristas, blogueiros e integrantes do chamado “gabinete do ódio” instalado no Planalto.

O placar está um a um. Só que o jogo da democracia não funciona assim. Tem regras que devem ser obedecidas acima de tudo e de todos – e sem jogar Deus no meio. O que estamos assistindo, aqui da arquibancada, é uma constante tentativa de subvertê-las. Jair Bolsonaro não aceita qualquer marcação do bandeirinha que não seja a favor do seu time. Não quer que o árbitro contabilize as faltas contra seus jogadores e nem os gols que eles levam. Instruiu seu time a empurrar, dar rasteiras e enfiar os dedos nos olhos dos adversários durante a partida e, agora, está estimulando a galera a dar sopapos no juiz.


Bolsonaro só sabe jogar assim, e quem o conhecia de antes tem perfeita noção disso, de sua disposição de rasgar todos os regulamentos e partir para a força bruta quando começasse a perder. Começou. Não há qualquer dúvida disso quando se vê o acúmulo de problemas políticos e econômicos. Muito menos sob os efeitos avassaladores de uma pandemia que atinge o mundo todo mas que, lamentavelmente, tem tudo para ser mais dramática ainda por aqui diante da inépcia e da ignorância de quem tem que tomar decisões sobre ela.

E como reage Bolsonaro diante desse placar a cada dia mais desfavorável? Agredindo as instituições da democracia – aquelas que lhe lembram que é preciso seguir as regras do jogo. Assim ele continuará fazendo: investindo contra as leis, tentando acuar adversários, conspurcando instituições que até ontem eram vistas como profissionais e independentes, como Polícia Federal e Ministério Público. Até um eventual impedimento.

Quem vai expulsar o presidente de campo? Bolsonaro faz agora dois movimentos para não levar cartão vermelho. Um acordo com o Centrão, que pode lhe dar os votos para rejeitar um impeachment na Câmara, numa jogada dentro das regras constitucionais. Além disso, já cercado pelos generais palacianos, incorporou agora a suas comitivas, inclusive nas incursões a aglomerações políticas de fim de semana, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo – que outro dia saiu de sua posição discreta e institucional para apoiar a nota-arroubo de Heleno.

O presidente faz de tudo para passar a ideia de que tem as Forças Armadas a seu lado para o que der e vier, inclusive para melar as regras do jogo. Há controvérsias a esse respeito. Mas que o jogo está ficando pesado, está.
Helena Chagas

Pensamento do Dia


Operação da PF expõe cloaca do bolsonarismo

O inquérito das fake news abriu a tampa de um bueiro. Dele saltaram milicianos virtuais, blogueiros pagos, vivandeiras de quartel e até um ex-mensaleiro. Personagens da cloaca bolsonarista, que usa as redes para disseminar ódio e atacar instituições.

A Polícia Federal dissecou o funcionamento de uma máquina de desinformação. Ela atua de forma coordenada, com disparos em massa, uso de robôs e impulsionamento de conteúdo. É uma estrutura profissional, que depende de apoio financeiro para gerar resultado.

Entre os alvos da operação, estão os empresários Luciano Hang, da Havan, e Edgard Corona, da SmartFit. Eles integram o Brasil 200, que se apresentava como um movimento liberal. Por trás da fachada reformista, estimulavam ataques a parlamentares, juízes e jornalistas.

O ministro Alexandre de Moraes determinou a quebra dos sigilos da dupla desde julho de 2018. Seguindo o dinheiro, os policiais poderão esclarecer mistérios da eleição presidencial. As descobertas terão potencial para abastecer ações em curso no TSE.


A investigação também atinge ativistas de extrema direita como Sara Winter. Ex-feminista, ela chegou a organizar protestos contra o então deputado Jair Bolsonaro. Hoje integra uma milícia governista, que idolatra o capitão e defende o fechamento do Congresso e do STF.

Sua reação às buscas ilustra as práticas da turma. Em vídeos agressivos, ela ameaçou “infernizar a vida” do ministro Moraes. “O senhor nunca mais vai ter paz”, anunciou, entre ofensas e palavrões.

Os habitantes da cloaca dizem representar a “voz do povo” e ameaçam pegar em armas contra “traidores da pátria”. Puro fascismo, que encontra eco no discurso de deputados alinhados ao Planalto. Oito deles terão que depor à PF. Serão questionados sobre o gabinete do ódio, que tem conexões com a família presidencial.

Em mais um ato de submissão, o procurador Augusto Aras pediu a suspensão do inquérito. Bolsonaro acusou o golpe e convocou uma reunião de emergência no palácio. No dia em que o Brasil chegou a 25 mil mortes pelo coronavírus, o presidente voltou a ignorar a pandemia. Preferiu socorrer a sua milícia virtual.

Teleguiados à distância

Pena que ele (Alexandre de Moraes, ministro do STF) mora em São Paulo porque se ele estivesse aqui eu já tava lá na porta da casa dele convidando ele pra trocar soco comigo. Juro por Deus, essa era a minha vontade, trocar soco com esse filha da puta desse arrombado. Infelizmente, eu não posso. Mas eu queria
Sara Winter, apoiadora de Bolsonaro e criadora do grupo 300 pelo Brasil

Imprensa marrom

Antigamente, era mais fácil. Havia muita diversificação entre os veículos de imprensa, mas com uma divisão principal: os independentes e os chapa-branca. Aliás, esta última expressão é ela mesma do tempo antigo. Hoje, as autoridades circulam em carros com placas de bronze – evoluíram, não é mesmo? – ou com chapas frias. Sabem como é, o povo hoje sabe com quem está falando e muitas vezes não gosta.

Mas voltemos ao que interessa, a imprensa. Os veículos chapa-branca eram aqueles que só existiam para fazer propaganda e/ou defender os interesses do governo, de políticos, de igrejas e de negócios setoriais. Viviam de verbas públicas ou de dinheiro colocado pelo patrocinador.

A imprensa independente era aquela que vivia da notícia e, no caso da tevê, do entretenimento. Vivia no duplo sentido: tinha que ser reconhecida como tal pelo público (credibilidade) e tinha de ganhar dinheiro com venda em bancas, de assinaturas e de publicidade. A independência deveria ser editorial e econômica ao mesmo tempo.

Aqui, essa imprensa independente amadureceu ao longo da vida democrática pós-1985.


Tem várias características, algumas boas, outras ruins, mas há um ponto essencial. A imprensa brasileira não é bem agressiva, é atrevida. Nem sempre foi. Tornou-se atrevida, especialmente a política, em tempos relativamente recentes.

Por exemplo: alguns anos atrás, repórteres políticos não se atreveriam a perguntar ao presidente se ele queria interferir na Polícia Federal ou melar uma investigação sobre atividades de seus filhos.

Na verdade, não é que não se atreveriam, nem lhes ocorria perguntar esse tipo de coisa. Parecia normal que autoridades tivessem privilégios, incluindo as famosas mordomias.

Também não era um vício apenas nacional. Na Washington de John Kennedy, todo mundo sabia que o presidente gostava muito de mulheres e que as recebia na piscina da Casa Branca quando Jacqueline não estava por perto. Jornalistas sabiam, alguns até participavam das farras – e não publicavam nada. Ao contrário, publicava-se que se tratava de um feliz casal presidencial.

Em Brasília dos anos 80 e 90, os jornalistas também sabiam das mazelas pessoais (amantes, rolos) e, digamos, profissionais dos políticos, tais como negócios paralelos. Não lhes ocorria publicar, mesmo porque muitos jornalistas desfrutavam de vantagens indevidas, como empregos no Congresso, em autarquias e estatais. Além de financiamentos especiais em bancos públicos.

A mudança forte começou a aparecer na passagem dos anos 80 para os 90. Repórteres mais novos começaram a publicar os privilégios, os bastidores, inclusive das casernas – ou seja, as informações não oficiais, não autorizadas, mas obtidas por apuração e investigação independente.

Ao mesmo tempo, desenvolveu-se o jornalismo opinativo – outro que tanto incomoda as autoridades. Para o presidente Bolsonaro e seus seguidores, ou a imprensa é a favor ou é mentirosa, canalha, lixo e tantas outras ofensas.

Mas na democracia, quem decide se uma imprensa é boa ou não é o público, com sua audiência, sua leitura, seu respeito.

Essa imprensa está aí. Ainda bem.

As redes sociais, claro, são uma novidade. Mas a divisão entre independência e militância de qualquer tipo é a mesma que se via na imprensa tradicional.

Então, os principais veículos independentes, aqui e no mundo, estão migrando para as redes sociais. Continuam sendo a representação da imprensa livre e responsável.

Mas as redes também tornaram mais fácil o surgimento dos veículos “fake news”, que bem poderia ser a nova designação para imprensa marrom, aquela sem nenhum escrúpulo.

Do mesmo modo que antes não se poderia fechar a imprensa para bloquear o lado marrom, também hoje não se pode bloquear as redes para afastar os provedores de fake news, ofensas e ameaças.

Mas, atenção, liberdade de expressão não é um salvo conduto. Não pode haver censura prévia. Mas a publicação e seus autores podem ser processados, na devida forma da lei.

Falta educação na Pasta da Militância

O Ministério da Educação mantém-se fiel à tradição, no governo Jair Bolsonaro, de protagonizar crises políticas. A gestão de uma pasta fundamental para o desenvolvimento do país começou mal, avançou mandato adentro de forma trôpega e, durante a pandemia, apequenou-se.

O setor tem diversos desafios a enfrentar. Muitos deles se tornaram urgentes, mas outros poderiam ter sido resolvidos há tempos.

Os potenciais problemas da pasta tornaram-se perceptíveis já no período de transição, no fim de 2018. Militares e acadêmicos que formulavam seu planejamento estratégico foram surpreendidos quando Ricardo Vélez Rodríguez entrou no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) como um professor pouco conhecido e saiu como o indicado para ocupar a função de ministro de Estado. A vaga era entregue à ala ideológica que formava a base eleitoral do presidente recém-eleito, criando severos obstáculos à execução do plano programado pelos técnicos que integravam este grupo setorial da campanha eleitoral.

Não demoraria para que Vélez caísse. Mesmo assim, o cargo permaneceu sob influência do grupo que passou a usar a política externa, além das áreas de direitos humanos e da educação, para manter militantes bolsonaristas mobilizados em defesa de um governo com cada vez mais frentes de batalha nos campos político e jurídico.

Não foi à toa que estas três áreas foram expostas, com a divulgação do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril.


O episódio colocou o titular do Ministério da Educação, Abraham Weintraub, no epicentro das turbulências hoje existentes entre o Executivo, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Legislativo. Ele chegou a se manifestar com tanta eloquência na reunião que o presidente pediu mais engajamento de outros ministros citando seu exemplo, mas de “forma mais educada um pouquinho”. Weintraub colocou-se aos presentes como militante e nada do que falou poderá ser reproduzido em livros infantis.

O resultado não poderia ser mais preocupante para um gestor com diversos assuntos a despachar com os outros Poderes. A capacidade de articulação institucional de Weintraub é, hoje, uma nulidade. A notícia positiva para ele, por outro lado, é que justamente essa disposição para o enfrentamento foi que o manteve, pelo menos até agora, no cargo.

No fim de 2019, sua demissão era dada como certa por auxiliares do presidente. Bolsonaro precisou negar que estaria planejando mudar novamente o comando da Educação, sempre com o argumento de que gestões anteriores teriam deixado o Brasil pessimamente posicionado no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Antes de exonerá-lo, ponderava, seria justo dar crédito e condições para o ministro trabalhar.

E resultados é o que se espera neste momento em que a pandemia pode gerar graves danos para o ensino, para a vida de pais, mestres e alunos, além de também afetar a solvência de empresas do setor.

A reação inicial do governo até que foi ágil. O Planalto enviou ao Congresso um pedido para que fosse reconhecida a situação de calamidade pública em meados de março. No primeiro dia de abril foi editada uma medida provisória voltada especificamente para a área da educação durante a pandemia.

A MP flexibiliza o calendário escolar para garantir que os alunos tenham acesso a todas as horas-aula relativas aos 200 dias letivos exigíveis pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ou seja, 800 horas anuais, mesmo que de forma remota.

O Executivo reconheceu, na MP, a gravidade da covid-19 e os potenciais riscos das inevitáveis aglomerações que ocorreriam nas creches, escolas e universidades. Mas, desde então, outros gestos do Ministério da Educação e do próprio presidente não corroboraram com essa visão.

Bolsonaro tentou articular com o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), que colégios cívico-militares encabeçassem um movimento de retorno às atividades. A ideia não foi adiante.

Também falhou o plano do ministro de evitar o adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). As discussões sobre o assunto passaram a ser conduzidas diretamente entre a Câmara e o presidente.

O titular da pasta também tem sido alijado das discussões sobre outro tema que angustia o setor e gestores locais: o financiamento da educação. Uma proposta de emenda constitucional estabelecendo um novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica precisa ser aprovada e regulamentada ainda neste ano, pois o atual Fundeb vale apenas até dezembro.

Deputados gostariam de aumentar a participação do governo federal no financiamento da educação básica, mas prefeitos ouviram uma proposta da equipe econômica que acabaria por não contemplar totalmente o setor. A ideia seria privilegiar a destinação de verbas para a saúde, por causa da pandemia. Em outras palavras, renovar o fundo como ele é hoje sem carimbar os recursos. As prefeituras poderiam adquirir testes para covid-19, respiradores e outros equipamentos médico-hospitalares, em vez de comprar material escolar. Não há acordo ainda. A educação ficaria, novamente, em segundo plano.

Cabe ao poder central coordenar as ações do setor público e da iniciativa privada. Será um erro deixar que pais e alunos considerem 2020 um ano letivo perdido, mesmo que o futuro profissional dos estudantes ainda esteja nublado.

À medida do possível e dependendo das limitações e especificidades de cada local, métodos de ensino remoto e de reposição do conteúdo perdido precisam ser objeto de total atenção do governo federal. O retorno às salas de aula também precisará ocorrer de forma ordenada e seguindo diretrizes sanitárias. Cada Estado ou município terá que saber o momento certo de fazê-lo. Voluntarismos vindos do ministério ou do Palácio do Planalto não contribuirão nesse processo, sobretudo se forem apenas para manter a militância aquecida. Misturar a situação atual com as discussões sobre a polêmica educação domiciliar, uma bandeira bolsonarista, tampouco parece ser boa ideia.
Fernando Exman

Brasil: economia não parou


No pais dos adélios

O mundo anda escasso de boas notícias, mas a semana começou bem: os principais grupos de mídia do país decidiram suspender temporariamente a cobertura do convescote de malucos do Palácio da Alvorada. Já não era sem tempo. Não faz o menor sentido submeter repórteres às humilhações constantes do presidente e da sua claque de imbecis amestrados, numa situação cada vez mais perigosa para os jornalistas.

Escrevo “imbecis amestrados” na falta do termo clínico correto para descrever os cidadãos que frequentam o chiqueirinho do ódio. Olhando de longe parecem fãs, mas quando se fecha o foco sobre o grupo o que se vê, salvo raríssimas exceções, são pessoas fora de si, altamente descompensadas. É um bando de adélios em potencial, instigado por um psicopata.


Para a notícia ser ótima de verdade, porém, a suspensão não devia ser temporária, mas permanente. E me pergunto se não seria melhor ainda estendê-la a todos os locais frequentados pelo senhor Messias. Afinal, é perfeitamente possível cobrir os fatos sem ter de suportar a sua belicosa presença.

Tenho uma fantasia de quarentena. Acho que a imprensa deveria pura e simplesmente boicotá-lo. Uma presidência sem qualquer cobertura jornalística. Ia ser estranho? Ia. Nunca se fez? Nunca. Mas ia ser uma forma eloquente e didática de protesto.

Ia ser interessante observar a reação de Bolsonaro à ausência de qualquer veículo de mídia sério, zero jornalistas de respeito à sua volta — a qualquer hora, em qualquer dia e lugar, e não só na saidinha do palácio.

Viajou? Dane-se, vá sozinho, ninguém cobre.

Inaugurou ponte? Leve a sua meia dúzia de deputados de bolso e solte no Twitter.

Quer assinar documentos, receber ministros, fazer visitinhas inconvenientes a autoridades? Peça ao anspeçada para gravar com o celular e ponha no Facebook.

Sim, eu sei — um dos papéis relevantes que a imprensa presta ao país é mostrá-lo continuamente, expondo a sua falta de educação e de sentimentos, a sua ignorância, o seu despreparo, a sua arrogante boçalidade.

Mas sonho: um noticiário sem a sua imagem e sem a sua voz. 

Ele não seria eliminado das notícias, é claro — ainda é, infelizmente, o presidente do país. Apenas perderia o palanque oficial que a mídia, ainda que a contragosto, proporciona. A sua história seria contada por terceiros. Ele não teria mais o prazer de se ver refletido nas telas das emissoras, ou estampando as páginas dos jornais.

O nível da quarentena ia melhorar muito.
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“Conversa com Bial” vai ao ar tarde, quando muita gente já está dormindo; mas esse tem sido um dos programas essenciais da temporada. Isolado em casa, Bial conversa com gente igualmente isolada — e, de repente, o que era um programa de entrevistas vira uma conversa entre amigos. Deixamos de ser espectadores e passamos a ser confidentes. Sem o aparato intimidador do estúdio, sem maquiagem, sem plateia, celebridades mostram-se pessoas. O episódio com William Bonner, que foi ao ar na terça-feira (mas que está disponível, como os demais, no Globoplay) é tão perturbador quanto histórico: ali está o narrador da história recente do Brasil, tão desalentado e abatido quanto qualquer um de nós, constatando que nos tornamos, definitivamente, um país bruto e canalha.

Melhore a economia: mate os velhos


É bom que as mortes se concentrem entre os idosos. Melhorará nosso desempenho econômico, reduzirá nosso déficit previdenciário
Solange Vieira, assessora do ministro da Economia, Paulo Guedes

Para bom entendedor, um pingo é letra

Na manhã do último sábado, quando repercutia a incrível e patética reunião do dia 22 de abril, do presidente Bolsonaro com seus ministros – de Estado, esclareça-se –, fui caminhar aos pés da serra do Curral. Éramos um grupo de cinco amigos, três homens e duas mulheres. Um deles me perguntou, antes mesmo do cumprimento, que se dá à distância de um metro e meio ou por meio dos cotovelos: “Qual é sua opinião sobre a reunião do último dia 22 de abril”?

Fui salvo por um dito popular do qual não se lembram as atuais gerações, mas já foi muito usado pela minha geração: “Para bom entendedor, um pingo é letra”.

Na verdade, tentava em vão não dizer nada sobre algo que me deixara, no começo da noite de sexta-feira, quase prostrado. A pandemia que avançou sobre o mundo, a partir da cidade de Wuhan, na China, o pandemônio político no qual se transformou este país faz tempo, como já disse e repito, aliados aos problemas naturais da vida, podem acabar com qualquer ser humano sensível e capaz de imaginar no que se poderá transformar nosso país em futuro próximo.


Para não alongar mais uma conversa sobre episódio que me jogara na mais profunda tristeza, mesmo não o tendo visto por inteiro naquele dia, devolvi-lhe a pergunta: “E você, assistiu, do princípio ao fim, à reunião dita ministerial?”. Após sua confirmação, me limitei a um balbucio, algo mais ou menos assim: “Se viu, não vejo necessidade de qualquer comentário complementar. Você viu, e pronto”.

Doce ilusão – não com meu amigo e companheiro de caminhada, que compartilhava comigo da mesma tristeza, revolta, melancolia, angústia ou qualquer outro nome que se possa dar a isso, mas com os aplausos que ouvi, li e vi, de fontes as mais variadas, ao longo desses dias que vieram depois da liberação do vídeo, pelo ministro do STF, Celso de Mello. Um vídeo que mostrava não uma reunião de ministros, mas uma verdadeira “pajelança”, como disse Gabeira, com vistas a animar o público-alvo ou seus pretensos ministros, digo eu, leitor.

Passaram-se três dias e li, anteontem, quase que sem acreditar, no “Estado de S. Paulo”, esta manchete: “Ministros militares agora negociam cargos com Centrão”. Depois, li em “O Globo” que o presidente Bolsonaro, após declarar em nota “compromisso e respeito com a democracia e membros dos Poderes Legislativo e Judiciário”, além de pedir o fim do inquérito sobre interferência na Polícia Federal, fez uma visita-surpresa ao procurador geral da República, Augusto Aras, responsável pela investigação. O chefe da PGR ficou feliz com a visita: “Estaremos esperando vossa excelência com a alegria de sempre”.

“O príncipe que pode fazer o que quiser é um louco”, escreveu Maquiavel em 1532, em sua mais conhecida obra, “O Príncipe”. É ainda dele: “Não há poder que dure para sempre”.

Warao: A tribo índia à beira da extinção

Quem já ouviu falar de Pacaraima? E do Rio de Janeiro? Situadas num país que é quase um continente, não podiam estar mais nos antípodas uma da outra. É evidente que estamos a falar de uma megacidade e de uma outra minúscula, mas que viu a sua população aumentar 500% em apenas seis meses. Pacaraima é uma cidade de um dos estados mais pobres do Brasil – Roraima – e que faz fronteira com a Venezuela. Aí foi montada a Operação Acolhida, liderada por militares e que é um dos bons exemplos de controle e acolhimento da vaga de migração que se abateu aquando da crise venezuelana.

Mas, saindo das instalações militares e da triagem, a população em movimento é, na sua esmagadora maioria, deixada ao abandono nas ruas, sem quaisquer condições sanitárias ou de alojamento. Para termos uma ideia da situação, basta dizer que esta população não tem acesso a infraestruturas sanitárias, fazendo as suas necessidades fisiológicas em plena rua e abrigando-se debaixo dos poucos alpendres e na estação de camionagem. Para uma cidade que se debatia com inumeras dificuldades a todos os níveis, este aumento inesperado e imenso de população, teve um resultado dantesco, que provocou, inclusivé, a revolta dos moradores.

Pedem muito pouco: apenas uma área onde se possam instalar. 
Num país imenso como o Brasil, terra é coisa que não falta. 
Mas não sobra para esta tribo, que se vê enclausurada, abandonada e sem quaisquer defesas

Ao assistir todos os dias aos números crescentes das vítimas da Covid-19 e às centenas de mortos enterrados praticamente em valas comuns em Manaus, que dista quase mil quilómetros da pequena cidade de fronteira, não posso deixar de pensar em como será a situação naquela zona!

Com poucos e sobrelotados campos de acolhimento, quer o distanciamento social, indispensável à contenção do vírus, quer a higienização das pessoas e locais é uma quimera! Já o era muito antes da pandemia e embora o número de deslocados tenha vindo a diminuir, o número de infetados e mortos, não pára de crescer, sendo um foco incontrolável da doença.

Uma população já de si fragilizada, com vários grupos ainda mais vulneráveis (crianças e adolescentes desacompanhados, uma vasta comunidade LGBT, mulheres grávidas, idosos…), encontra-se completamente abandonada por quem afirma que a pandemia é uma empolação de caráter económico e que a doença não passa de um mero “resfriado”.

Ninguém fala da situação destes imigrantes e refugiados. Como também ninguém fala da situação dos índios warao, apanhados também nesta vaga de mobilidade fronteiriça, mas que, em bom rigor, não são nem migrantes nem refugiados.

Os Warao, muito embora sejam uma tribo venezuelana, iniciaram já há muito esta mobilidade transfronteiriça, mercê da alteração climática junto do rio Orinoco, que dificulta a sua permanência naquela região. Nómadas por definição, há décadas que se vinham movimentando, desconhecendo divisões administrativas e guiando-se apenas pela sobrevivência no meio da floresta.

Os Warao são, neste momento, o grupo mais vulnerável, dentro dos grupos vulneráveis de Pacaraima. Confinados, de facto, a um único campo, vivem em “redários” que mais não são que dois enormes pavilhões onde se amontoam redes de dormir e onde cada familia tenta estabelecer um limite de espaço onde empilha os seus parcos haveres. A cozinha é comum e ao ar livre. As instalações sanitárias e de água potável são na ordem de um para trezentos.

Esta tribo tem tentado por todos os meios ser reconhecida pela FUNAI, fundação que trata dos assuntos indigenas no Brasil, como pertencendo também às tribos brasileiras, uma vez que, sendo transfronteiriça e movimentando-se no território brasileiro, não tem um espaço geográfico definido.

Pedem muito pouco: apenas uma área onde se possam instalar. Num país imenso como o Brasil, terra é coisa que não falta. Mas não sobra para esta tribo, que se vê enclausurada, abandonada e sem quaisquer defesas em relação a determinadas doenças tidas como comuns para a maioria da população. Ora, face à virulência do vírus que enfrentamos, é fácil de entender que estamos perante uma situação para lá de dramática.

Esquecidos por uns, ignorados por outros e abandonados por todos, os Warao enfrentam não apenas um vírus, mas um verdadeiro genocídio.

Crise histórica já se delineia na América Latina

Com um atraso de três meses em relação à Europa, a América Latina está prestes a se tornar o epicentro global da crise de coronavírus. Provavelmente, levará até julho para que as infecções por covid-19 se estabilizem. No Brasil, o pico de mortes não é esperado até o início de agosto.

Nesse cenário, já são possíveis algumas previsões de como a América Latina vai mudar como resultado da crise.

A região está entrando em sua pior recessão desde as crises de endividamento dos anos 1980. A situação é surpreendentemente parecida como a daquela época. Hoje, como então, a dívida externa dos Estados está aumentando rapidamente ‒ atualmente devido às medidas sociais resultantes do combate à covid-19, no passado por causa dos investimentos estatais.

Também desta vez, caíram a demanda e os preços do petróleo, assim como de alguns produtos agrícolas e de mineração. Para um exportador de commodities energéticas e não energéticas como a América do Sul, essa é uma péssima combinação, porque a capacidade de honrar suas dívidas está diminuindo.

Serão inevitáveis novas crises da dívida externa, algo que Equador e Argentina estão tentando agora evitar com negociações. Resta saber como os investidores financeiros e os bancos multilaterais de desenvolvimento reagirão a uma crise regional de endividamento.


Os investidores financeiros privados já estão retirando seu capital da região. Como investidor, a China poderia aproveitar a situação e emprestar dinheiro a países que perderam sua credibilidade, em troca de garantias nas áreas de agricultura, mineração e energia.

O enfraquecimento das moedas também está impedindo que se façam futuros empréstimos no exterior. Os juros e os pagamentos em dólares tornaram-se proibitivamente caros para todos aqueles que não ganham na moeda americana. Os pesos e o real mais fracos também têm vantagens: os déficits da balança comercial, por exemplo, se reduzem mais rapidamente porque os países (possivelmente) importam menos.

No entanto, a região dificilmente poderá aproveitar a principal vantagem de uma moeda fraca: após a crise, a América Latina não vai se tornar automaticamente um local competitivo simplesmente porque os custos caíram. Isso vale especialmente para o setor industrial.

Devido ao atraso tecnológico e às futuras cadeias produtivas globais mais curtas, é provável que a América do Sul se torne novamente um mero exportador de matérias-primas. Ainda não se sabe se a América Central e o México se beneficiarão de uma moeda mais fraca como fornecedores para os Estados Unidos. No entanto, isso parece improvável, dada a política isolacionista no norte do continente.

O controle estatal sobre a economia vai aumentar: por meio de impostos mais altos ou de empresas apoiadas pelo poder público. O alto desemprego e a crescente pobreza encolherão a distribuição de renda e, portanto, também o consumo. Além das exportações de matérias-primas, o principal motor de crescimento da América Latina cambaleia: a demanda das 630 milhões de pessoas.

Para investidores, ficará menos atraente investir na produção de bens de consumo na América Latina. Até recentemente, latino-americanos ansiosos para consumir ainda eram o principal incentivo para construir ou comprar fábricas na região. Esse argumento está agora perdendo força.

Os governos não conseguirão resistir à tentação de manter ou mesmo ampliar a autoridade adquirida durante a crise de coronavírus. Atualmente, isso pode ser observado em todos os países. No México, por exemplo, o presidente López Obrador saúda os efeitos benéficos da covid-19, que reduzem a influência excessiva do setor empresarial no país. Ao mesmo tempo, ele expande o controle estatal sobre a economia, como na Argentina e no Brasil.

O Estado de Direito e a democracia estão sofrendo pressão em todos os países, não importa o direcionamento político dos diferentes governos. A independência do Judiciário está sendo corroída, enquanto a mídia é assediada e os parlamentos, em que os governos não têm maioria, são hostilizados.

É provável que a tendência autoritária tenha continuidade diante da ameaça de novos distúrbios sociais, como foram vistos no ano passado em Chile, Equador, Colômbia e Bolívia. Os protestos deverão continuar, provavelmente, na era pós-coronavírus ‒ possivelmente com uma intensidade ainda maior, porque as consequências sociais da crise serão severas.

Se novas manifestações surgirem no final do ano, os governos não deverão hesitar em reprimi-las com o argumento de uma emergência nacional ou de uma grave crise. Durante a pandemia de coronavírus, os governos descobriram que a liderança autoritária foi bem recebida por um grande número de pessoas. É tentador apostar nos novos instrumentos.

Sem dúvidas: a América Latina enfrenta os maiores desafios políticos e econômicos dos últimos 50 anos.