quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Lambanças de Bolsonaro e Pazuello

Se Jair Bolsonaro fosse presidente durante a 2ª Guerra e Eduardo Pazuello seu chefe do Estado Maior, os pracinhas mandados pelo Brasil para lutar na Itália teriam ido parar no Congo Belga. Ou a FEB só desembarcaria no famoso teatro de operações depois de a peça terminada — com o que, sob Bolsonaro e Pazuello, o Brasil teria sido protagonista de uma ópera-bufa, não de uma saga de que os militares tanto se orgulham. É como combatem a pandemia.

Mas não são só as trapalhadas. Bolsonaro e Pazuello não gostam de máscaras, e com razão. Elas são desconfortáveis para seus narizes de Pinóquio, mais compridos do que as pernas —suas mentiras têm pernas tão curtas que, todo dia, eles são obrigados a desdizer-se e a negar não só as frases da véspera como suas próprias negações. O que, para eles, não é difícil, porque, sendo Pinocchio um boneco de pau, o nariz e a cara também são.



Como a inteligência militar é binária —uns mandam, outros obedecem, segundo o categórico Pazuello—, é natural que as Forças Armadas assistam sem tugir ou mugir às grandes lambanças em curso pelo seu chefe supremo e pelo mamulengo que ele nomeou para um cargo-chave. Mas, neste momento, é irresistível perguntar o que estarão achando de Bolsonaro agarrar-se desesperadamente a um produto que ele não queria, repudiou e quase proibiu —a vacina, e logo a do Butantan—, e de depender da condescendência da China, país que ele e seus dementes levaram dois anos agredindo.

Bolsonaro e Pazuello deixam muito mal o conceito que os militares fazem de si mesmos —conceito que, aos olhos deles, os torna tão superiores a nós, paisanos, em competência e lealdade. Com aqueles dois como modelo, como sustentar tal ilusão?

A competência é essa que está aí. Quanto à lealdade, logo veremos Bolsonaro passar sua culpa adiante e jogar o patético Pazuello na fogueira. É rapidinho.

O incontrolável

A biografia do capitão Jair Messias Bolsonaro feita do CEPEDOC da Fundação Getúlio Vargas é uma exemplar sucessão de fatos que o levaram à presidência da República devido à leniência com que foi tratado, tanto no Exército quanto no Congresso, onde atuou como deputado federal por 27 anos. Coerente com suas idéias corporativas, e politicamente radical, não teve quem o parasse. Que sirva de lição para os dias de hoje. 

Alguns exemplos: em 1986, capitão no 8º Grupo de Artilharia de Campanha, foi preso por ter escrito na revista Veja artigo intitulado “O salário está baixo”. Em 1987, uma reportagem da mesma Veja revelou um plano para uma “Operação beco sem saída”, com o objetivo de “explodir bombas em várias unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras (...) e em vários quartéis”. A operação só sairia do papel se o reajuste concedido aos militares ficasse abaixo de 60%. 

Atribuído a Bolsonaro e ao capitão Fábio Passos da Silva, o plano irritou o ministro do Exército, General Leônidas Pires Gonçalves, que convocou os capitães para explicações. Os dois “negaram peremptoriamente, da maneira mais veemente, por escrito, do próprio punho, qualquer veracidade daquela informação”, segundo declaração do próprio general Leônidas. 


Mais tarde, porém, testemunhas e provas documentais, como um croqui desenhado pelo próprio Bolsonaro, levou o ministro a se convencer que errara ao inocentar os dois capitães. O resultado de uma sindicância foi enviado ao Superior Tribunal Militar (STM) com pedido de exclusão das Forças Armadas dos dois capitães, o que não foi aceito. Os juízes, por maioria, acataram a defesa dos militares que “se consideravam vítimas de um processo viciado”. Bolsonaro foi para a reserva em 1988, mesmo tendo sido absolvido. 

Não foi apenas o General Geisel que o considerou “um mau soldado”. O Coronel Carlos Alfredo Pellegrino, em relatório, disse que Bolsonaro tentava liderar oficiais subalternos, mas não conseguia pela “falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos”. No julgamento do STM, foi acusado de ter “grave desvio de personalidade”. Em 1991, no primeiro de seus mandatos de deputado federal, defendeu o retorno do regime de exceção, e o fechamento temporário do Congresso Nacional. Para ele, muitas leis atrapalhavam o exercício do poder e que, “num regime de exceção, o chefe, que não precisa ser um militar, pega uma caneta e risca a lei que está atrapalhando”. 

O pronunciamento levou o corregedor do Congresso Nacional, deputado Vital do Rego, a solicitar ao procurador-geral da República, Aristides Junqueira, o início de uma ação penal contra Bolsonaro por crime contra a segurança nacional, ofensa à Constituição e ao regimento interno da Câmara. Em 1994 afirmou preferir “sobreviver no regime militar a morrer nesta democracia”. 

Sustentando que Bolsonaro havia sido desrespeitoso com o ministro da Administração, Luis Carlos Bresser Pereira, durante depoimento na Comissão de Trabalho, o deputado gaúcho Osvaldo Biochi, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), solicitou sua cassação, mas o máximo que aconteceu foi uma advertência. 

Assumiu seu novo mandato na Câmara em fevereiro de 1999 e, em junho, a Mesa Diretora da Câmara propôs ao plenário sua suspensão por um mês, por ter defendido o fechamento do Congresso e afirmado que “a situação do país seria melhor se a ditadura tivesse matado mais gente”, incluindo o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. A Mesa Diretora havia optado por apenas censurá-lo, após ter recebido uma retratação, mas voltou atrás quando Bolsonaro não reconheceu a retratação, afirmando que sua assinatura havia sido falsificada. No entanto, a proposta nunca chegou a ser votada pelo plenário da Câmara. 

Em dezembro, voltou a defender o fuzilamento do presidente Fernando Henrique Cardoso. O líder do governo na Câmara, Artur Virgílio, do PSDB, chegou a pedir sua cassação, mas a proposta nunca chegou ao plenário da Casa. Ao votar em abril de 2016 a favor do impeachment da então presidente Dilma Rousseff, Bolsonaro fez uma homenagem ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, identificado como torturador. Foi denunciado ao Conselho de Ética da Câmara, por apologia à tortura, mas nada aconteceu.

Democracia não usa farda


O que enfraquece a democracia é o desprestígio e aparelhamento político das instituições
Carlos Alberto dos Santos Cruz, general ex-ministro da Secretaria de Governo

Crimes de responsabilidade

Já não é nenhuma novidade, tampouco causa nenhum escândalo. A cada dia, mais pessoas admitem abertamente que a conduta do presidente Jair Bolsonaro – tanto as ações como as omissões – durante a pandemia de covid-19 pode configurar crime de responsabilidade.

Ressalta-se que essa afirmação sobre o comportamento de Jair Bolsonaro não tem surgido apenas de setores da oposição, como se fosse mais uma tentativa de causar desgaste ao adversário político. Quem tem dito que o presidente Jair Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade durante a pandemia são pessoas das mais variadas tendências, de diferentes trajetórias profissionais, muitas delas sem nenhuma vinculação partidária.

Ante a ampla diversidade de vozes, essas afirmações sobre a conduta do presidente Jair Bolsonaro não podem ser atribuídas, portanto, somente a eventual interesse político. Na realidade, muitas dessas declarações têm antes o tom de um reconhecimento a contragosto.

Além disso, mais do que o resultado de um raciocínio sofisticado, a exigir difíceis passos lógicos, a correlação entre o comportamento de Jair Bolsonaro durante a pandemia e crime de responsabilidade ganha, a cada dia, uma dimensão de evidência. Não é tarefa fácil argumentar que o presidente da República não cometeu, desde março do ano passado, algum crime previsto na Lei 1.079/1950.

Ao tratar dos atos do chefe do Poder Executivo federal, a lei diz que “são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: (i) a existência da União; (ii) o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados; (iii) o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; (iv) a segurança interna do País; (v) a probidade na administração; (vi) a lei orçamentária; (vii) a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos; (viii) o cumprimento das decisões judiciais” (art. 4.º).

Em especial, há um artigo na Lei 1.079/1950 que exige do presidente da República respeito à vida. “São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: (...) violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição” (art. 7.º, 9).

O art. 141 da Constituição de 1946, a que faz referência a Lei 1.079/1950, dispõe sobre a “inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade”.

Trata-se de uma situação peculiar. A rigor, crime de responsabilidade é algo gravíssimo, que pode levar o presidente da República ao afastamento do cargo e à perda do mandato. No entanto, nos tempos atuais, parece que a imputação de crime de responsabilidade perdeu seu caráter controvertido.

O quadro chegou a tal ponto que até o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou, no dia 15 de janeiro, que o afastamento do presidente Jair Bolsonaro do cargo, “de forma inevitável, será debatido (pelo Congresso) no futuro”. Até então, Rodrigo Maia vinha, de forma recorrente, refutando qualquer possibilidade de abertura de processo de impeachment contra o presidente da República.

Não é uma situação confortável para Jair Bolsonaro, até porque a lei brasileira optou por um controle amplo dos crimes de responsabilidade. Segundo a Lei 1.079/1950, qualquer cidadão pode denunciar o presidente da República ou ministro de Estado por crime de responsabilidade perante a Câmara dos Deputados. Até o ano passado, havia mais de 50 pedidos de impeachment contra o presidente da República na mesa do presidente da Câmara, a quem compete avaliar o preenchimento dos requisitos legais desses atos.

Por suas muitas e graves consequências sobre o País, o recebimento de uma denúncia contra o presidente da República exige especial prudência e cautela. Mas isso não pode significar omissão. As leis do País continuam vigentes. Assim, as denúncias contra Jair Bolsonaro devem ser devidamente avaliadas.

Pensamento do Dia

 


Brasil precisa de mais que uma vacina para evitar múltiplos colapsos como o de Manaus

Neste domingo, milhões de brasileiros acompanharam o passo a passo da maior decisão científica de que se tem notícia na história do Brasil, pelo menos no que tange ao potencial impacto na vida nacional num momento de crise. Com se assistissem aos votos dados por jurados de um desfile das escolas de samba, a maioria dos nossos compatriotas foi repentinamente introduzida, sem nenhum preparo prévio, ao lingo técnico, às pompas, e a todo o processo deliberativo empregado há década pela Anvisa para aprovar um nova vacina ou medicamento. Pouco entendendo o conteúdo dos votos, muitos sabiam apenas que pelo menos três dos cinco diretores da Anvisa precisariam aprovar as vacinas para que elas pudessem ser usadas em território nacional.

E assim, por horas a fio, o suspense foi mantido. Mas no momento em que o terceiro voto decisivo foi dado para a aprovação de duas vacinas ―a chinesa Coronavac, desenvolvida pelo laboratório Sinovac, em colaboração com o Instituto Butantan de São Paulo, e a segunda criada pela Universidade Oxford e a farmacêutica AstraZênica, licenciada no Brasil pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) ―a comemoração coletiva nas redes sociais e grupos de WhatsApp atingiu níveis reservados somente àquela observada para gols de final de campeonato. Evidentemente, toda esta comemoração se justificava plenamente. Afinal, depois de viverem quase um ano sob o trágico impacto de uma crise sanitária, que resultou em 8.5 milhões de casos confirmados e quase 210.000 mortos, sem nem ao menos terem o conforto de contar com um Governo federal que assumisse a responsabilidade em coordenar uma resposta nacional à maior crise sanitária em um século, muitos brasileiros se emocionaram com a decisão. E em meio a esta emoção, eles manifestaram em seus comentários o desejo latente de que este tenha sido um passo decisivo para remover o Brasil do caos em que ele começou a mergulhar no dia 26 de fevereiro de 2020, quando o primeiro caso de covid-19 foi oficialmente diagnosticado.

Infelizmente, como o colapso estarrecedor e sem precedentes ocorrido na cidade de Manaus ilustrou de forma explícita, o Brasil vai precisar de muito mais do que vacinas eficazes e seguras contra a covid-19 para escapar dos múltiplos colapsos, em múltiplas áreas, que se avizinham no nosso horizonte. Por exemplo, apesar de finalmente termos o início de uma campanha de vacinação, que ainda vai sofrer com uma série de obstáculos, a maioria deles criado pela inépcia e inoperância do Ministério da Saúde, serão precisos meses para que o efeito das vacinas seja sentido em termos de uma queda significativa na transmissão do coronavírus a nível populacional. Com todas as regiões do país sincronizadas, no que tange ao crescimento de números de casos e mortes e taxas de ocupação de leitos de UTI, o Brasil enfrenta uma segunda onda da pandemia que tem tudo para ser muito pior do que a primeira.

Eu digo isso porque, além da realização de eleições municipais que muito provavelmente foram responsáveis pela sincronização da segunda onda de covid-19, das festas de final de ano cujo efeito começa a ser sentido na forma de uma grande aceleração em casos/óbitos e taxas de ocupação de leitos hospitalares em todo país, e do surgimento de variantes do Sars-CoV-2 com maior poder de transmissão, a vasta maioria dos governantes brasileiros decidiu priorizar “a economia” de suas cidades e Estados em detrimento de medidas mais restritivas de isolamento social, como o chamado lockdown. Mesmo sabendo que este recurso continua a ser uma das poucas armas bem sucedidas para se reduzir rapidamente a taxa de transmissão do coronavírus, como mostram inúmeros exemplos mundo afora, no Brasil o lockdown virou palavrão e foi condenado a ser carta fora do baralho do arsenal de combate à pandemia. Como resultado desta visão totalmente equivocada, como a situação de Manaus demonstrou, o Brasil caminha para enfrentar múltiplos colapsos simultâneos. No topo da lista, a explosão de novos casos de covid-19, que atingirá um pico nas próximas semanas, bem como a enorme demanda por cuidados hospitalares, tanto de pacientes com sequelas crônicas da infecção pelo coronavírus como de pacientes com outras patologias, poderá gerar um colapso do sistema de saúde pública, não em um punhado de cidades, mas em nível nacional. Além da falta de leitos para internação de novos casos graves de covid-19, existe também a possibilidade concreta de que um grande número de municípios sofra um colapso de abastecimento de insumos médicos, fazendo com que a crise de fornecimento de oxigênio de Manaus se transforme numa imagem recorrente em todo o país. Como consequência mais devastadora deste processo, várias cidades podem começar a evoluir para um colapso funerário, pela completa falta de condições de dispor dos corpos das vítimas da covid-19. Neste sentido, na semana passada, Manaus anunciou em alto e bom som para todo Brasil: eu sou você amanhã.

A esta série de desastres na área da saúde temos ainda que somar um eventual colapso social e econômico, resultado do fim do auxilio emergencial, bem como do crescimento do desemprego no país. Este último fator de desestabilização foi amplamente ilustrado pelo anúncio da montadora de automóveis Ford, que depois de 100 anos, anunciou o final de suas operações no Brasil, eliminando, num piscar de olhos, milhares de empregos que dificilmente serão recuperados a curto prazo. A tudo isso o Governo federal responde com a mesma paralisia e falta de qualquer iniciativa de assumir o controle das múltiplas crises que convergem a passos largos em todo o país. Aliás, esta inércia política do Governo federal confirma de forma categórica a conclusão que eu cheguei, logo no inicio desta crise, de que no Brasil “lutamos contra a pandemia e o pandemônio político”.

Por todas estas razões não podemos achar que a aprovação das vacinas pela Anvisa sinaliza o fim da pandemia. Muito pelo contrário, a situação brasileira neste momento é gravíssima e tende a se agravar nas próximas semanas. Para tanto, o Brasil precisa fazer como o Reino Unido fez: ouvir a ciência de verdade e abandonar decisões baseadas apenas em expedientes políticos, em detrimento das boas práticas de manejo de uma pandemia. Como o Reino Unido, o Brasil precisa decretar um lockdown nacional imediatamente. Precisa também criar, em caráter emergencial (o famoso, pra ontem), uma Comissão Nacional de Combate ao Coronavírus, que atue de forma independente do Ministério da Saúde, amparada pelo STF, Congresso Nacional e todos os governadores do país, para gerenciar todos os aspectos sanitários da crise da pandemia, incluindo a implementação de um Plano Nacional de Imunização e a supervisão da logística de distribuição de suprimentos médicos para todo o território nacional.

Ah sim, eu quase ia me esquecendo. Além de equacionar a pandemia, o Brasil precisa resolver urgentemente as causas do pandemônio político que continua a assolar o país. Para bom entendedor, meia batida de panela basta.
Miguel Nicolelis

Uma vacina contra privilégios

Considere uma fotografia. Nela você vê meninos, jovens e idosos, homens e mulheres. Todos olham para a câmera sorrindo, e logo você acha que se trata de uma família. 

Mas só há um modo de confirmar suas intuições, porque, se a foto exibe contundentemente os indivíduos, ela não mostra o mais importante: as suas relações. 

Uma visão mais precisa do quadro só pode ocorrer quando você, realizando um trabalho parecido com o dos jornalistas, antropólogos e policiais, indagar quem é quem e — nessa indagação — descobrir a teia invisível que liga esses indivíduos entre si. Quando os elos são revelados, os indivíduos ganham existência — são parte de um enredo.

Aquela bela mulher é a mãe dos meninos; o sujeito engravatado é seu ciumento marido; aquele velho sorridente é o avô; aquela pessoa no fundo é a empregada... 

Todos nós aprendemos a ser quem somos por meio de relações centradas no nosso grupo doméstico. Foi por meio de um código administrado pelos nossos pais — os “donos na casa” — que aprendemos uma língua e o mundo. Esse código só é questionado nas crises, pois o sistema da casa é tido como natural. Ele é hierárquico e sustentado pelos axiomas morais de direitos e deveres (o “pode” ou “não pode”) não escritos. 

Descobrimos a individualidade na “rua” quando “levamos pau” na escola, brigamos, xingamos e, sobretudo, namoramos, experimentando uma sexualidade vedada no lar. O mundo da “rua” nos revela um outro lado. Nele, não somos exclusivos, porque suas regras são impessoais e, por isso, sempre surgem contra nós, porque nos obrigam a existir como anônimos e — eis o absurdo! — como iguais: desconhecidos e comuns. 

Contra elas, usamos as teias invisíveis da casa. O resultado é uma óbvia esquizofrenia (semente de corrupção, nepotismo e despotismo); e uma ambiguidade que cobra seu alto preço contrariando os valores democráticos da vida pública.



Somos “pessoas” em casa e “indivíduos” na rua. Como pessoas, temos os privilégios dos nobres; como indivíduos, somos cidadãos sujeitos da lei. Como ficar vacinado contra o uso dos elos pessoais na rua afirmando que, mais do que pedestres, somos netos de um desembargador ou filhos do presidente? 

Se somos “alguém”, como é que os outros não sabem quem realmente somos? O “você sabe com quem está falando?” é um grito a favor de privilégios em situações igualitárias. 

No Brasil, os regimes mudam, mas o “você sabe com quem está falando?” permanece cada vez mais atual. Ele vitaliza na medida em que a demanda de igualdade (que exige coerência) parece aumentar. 

Mas há uma grande resistência. O melhor exemplo é o estilo intolerante, incoerente e grosseiro de um presidente que canibalizou pessoal e familisticamente um cargo que pertence ao povo brasileiro. E, por meio dele, bloqueia questionamentos baseados na premissa democrática da igualdade. A razão do estilo áspero, irracional e agressivo de Bolsonaro é um equivalente do “você sabe com quem está falando?”, revelador de uma alergia à liberdade de imprensa — esse aval da democracia. 

Como um anti-igualitário, Bolsonaro se assemelha a Trump, mas há uma notável diferença. Lá, eles instituíram a igualdade republicana até agora contínua nos seus valores; aqui, a igualdade republicana sofreu descontinuidades, e ela é formalmente válida ao lado de muitos mecanismos que sublinham os privilégios — as leis privativas de certos cargos e segmentos. 

Escolhendo não escolher entre a casa e a rua, inventamos um estilo de vida minado por contradições, que eram harmonizadas por uma abusiva condescendência. Um preguiçoso “deixa pra lá” que os meios de comunicação hoje denunciam por meio de uma implacável transparência. Nela, vemos a permanente ambiguidade do sistema. 

Para quem está faz tempo na estrada, parece claro que vivemos reinventando a democracia, somente para sentir saudade do autoritarismo. Amamos as regras universais no papel e para os outros, mas as odiamos na prática, quando descobrimos que a elas estamos sujeitos. 

A pandemia é ainda mais trágica porque não tem viés político. Exceto pela gigantesca ausência de liderança adequada e humana, uma ausência resultante de um irracional negacionismo. Mas o fato concreto é que o vírus desorganiza hierarquias e obriga a neutralizar a nossa habitual desumanidade. Ela estampa o dilema da ambiguidade relativa que mantém privilégios, mas, simultaneamente, apresenta a cura. 

Iniciamos a vacinação dentro de um campo politizado precisamente pela velha enfermidade de um “você sabe com quem está falando?” —o famoso “quem é que manda?!” — que prolonga a doença e a morte. E assim será até nos convencermos de que a cura dos privilégios chega com a vacina da democracia — essa forma de organização coletiva simples e frágil que, como os bons remédios, requer uma enorme paciência, um exigente bom-caratismo e um persistente bom senso. 

Na pandemia, Exército volta a matar brasileiros

Em vários momentos da nossa história, o Exército brasileiro se pôs a matar a população em grande quantidade. Na Revolta de Canudos, por exemplo, destruiu um povoado de 25 mil habitantes, na Bahia, em 1897. Nem as crianças foram poupadas.

A Comissão Nacional da Verdade, que atuou entre 2012 e 2014, apontou 434 mortos e desaparecidos pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988. A maior parte dos crimes aconteceu durante o regime militar (1964-1985), quando as Forças Armadas se uniram às polícias para torturar e assassinar.

Com a redemocratização, o Exército se adequou ao seu papel constitucional. Nos últimos anos, começaram a acontecer coisas antes impensáveis, como um general, Eduardo Villas Bôas, pressionar o Supremo Tribunal Federal para que não se tomasse uma decisão em favor do ex-presidente Lula.

No governo de Jair Bolsonaro, o Exército voltou a se lambuzar de política. Oficiais da ativa e da reserva ocupam postos-chave, participam de manifestações antidemocráticas e, assim, emitem sinais de que as Forças Armadas endossam o que presidente diz e faz.



No momento, o Exército participa de um massacre. Um general, Eduardo Pazuello, aceitou ser ministro da Saúde mesmo, como admitiu, sem saber o que é o SUS (Sistema Unificado de Saúde). Suas credenciais eram as de um craque da logística. Ele pode ser bom em distribuir fardas e coturnos, mas, como estamos vendo, não sabe salvar vidas.

Demorou a comprar seringas e agulhas, e ainda mandou um lote vir de navio, porque é mais barato. Só agora, e quase à revelia dele, cidadãos daqui começam a ser vacinados, embora mais de 35 milhões já tenham sido ao redor do planeta. O Brasil passou dos 209 mil mortos, e Pazuello continua defendendo o uso de remédios que não servem para combater os efeitos do coronavírus.

Não se trata de um caso isolado, de um incompetente que está fazendo trapalhadas. Bolsonaro o nomeou para que ele as fizesse. O lambe-botas do presidente soube com dias de antecedência que os hospitais de Manaus entrariam em colapso por falta de oxigênio para os pacientes. Nada fez, a não ser prescrever a inútil cloroquina. A tragédia do Amazonas reforça o que não é novidade, mas ainda assim é terrível: temos um governo que atua para que um número cada vez maior de brasileiros morra. Não é acidente, é projeto. Em cada mil brasileiros, um já morreu de Covid-19.

Os generais de Brasília (Mourão, Augusto Heleno, Braga Netto, Azevedo e Silva) pouco fazem além de inscrever seus nomes na história como operadores de um morticínio – não se pode usar a palavra genocídio porque algumas damas da intelectualidade ruborizam.

O Exército ainda está sendo cúmplice da, quem diria, venezuelização do Brasil. Em vez das milícias boliviarianas de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, estão em formação as milícias bolsonaristas: facilitação da compra de armas por civis, aumento de poder e de vencimento para policiais, mobilização de apoiadores contra o Legislativo e o Judiciário para que estes se submetam ao Executivo. Enquanto tentamos sobreviver na pandemia, temos um governo que joga contra nós e é integrado por oficiais que envergonham as fardas que vestem ou vestiam.

*

Na segunda-feira, 18, após a publicação da coluna, o Exército enviou carta em referência às informações publicadas.

Segue o trecho:

“Cabe ressaltar que, durante a pandemia, o Exército, junto às demais Forças Armadas e a diversas agências, tem-se empenhado exatamente em preservar vidas. Para isso, vem empregando seus homens e mulheres por todo o território nacional, particularmente em áreas inóspitas, onde se constitui na única presença do Estado, realizando atendimentos médicos, aumentando estoques de sangue por meio de milhares de doações, transportando e entregando medicamentos e equipamentos, montando instalações, desinfetando áreas públicas, enfim, estendendo a Mão Amiga a uma sociedade que lhe atribui os mais altos índices de credibilidade”. 

Aqui se matam mulheres

Que o Brasil é um país machista, não resta a menor dúvida. O nosso presidente, com o perdão da má palavra, Jair Bolsonaro, encarna à perfeição o homem brasileiro padrão. Com seus surtos de exibicionismo viril e seu profundo desprezo pelo sexo feminino – pelo gênero humano, na verdade –, ele é uma espécie de Vladimir Putin do Terceiro Mundo… Não é à toa que sob seu (des)governo explodiram os casos de feminicídio.

FP Rodrigues


Em 2019, o número de assassinatos de mulheres aumentou 7,3% em comparação com 2018. Foram 1.314 homicídios – média de um a cada sete horas, três por dia, o que coloca o Brasil no quinto lugar no ranking de países que mais matam mulheres no mundo. E, infelizmente, a desorganização social provocada pela pandemia piorou ainda mais a situação. Não há números totalizados referentes a 2020 ainda, mas sabe-se que somente no primeiro semestre houve um crescimento de 2% no número de assassinatos de mulheres. Nos meses mais críticos da pandemia, entre março e abril, o número de mulheres mortas em São Paulo subiu inacreditáveis 41%.

Em quase 80% dos casos de feminicídio, os agressores são o atual ou o ex-companheiro, que não se conformam com o fim do relacionamento – e a violência acomete mulheres de todas as classes sociais, indiscriminadamente. Segundo as estatísticas, antes do crime, há episódios de intimidação moral, sofrimento psicológico, ameaças e mesmo agressões e lesões corporais. O sociólogo alemão Henning von Bargen afirma que homens que enfrentam uma crise social, cujos empregos e padrões de vida estão ameaçados, são particularmente suscetíveis à ideia de culpar as mulheres por sua própria miséria. Daí para a violência é um passo…

Não foi à toa, caríssimo(a) leitor(a) que associei Bolsonaro a Putin no primeiro parágrafo. Em 7 de fevereiro de 2017, o presidente russo promulgou lei que despenaliza a violência doméstica, sempre que o agressor não seja reincidente dentro do prazo de um ano. Ou seja, as agressões que causam dor física, mas não lesões, e deixam hematomas, arranhões e ferimentos superficiais na vítima não são consideradas mais crime lá. Só quando houver reincidência, o agressor poderá ser processado pela via penal e punido com prisão, sempre e quando a vítima conseguir comprovar os fatos. Ah, a Rússia, preocupado(a) leitor(a), a Rússia que manda foguete para o espaço, possui bomba atômica, vacina contra covid-19, etc. ocupa o quarto lugar no ranking mundial do feminicídio…