segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Gente fora do mapa

Pablo Picasso

O meu tipo inesquecível

É gordo, antissemita, patriota e asmático. No terreno da terapêutica, dá-se à homeopatia e às ervas medicinais. Em matéria de religião, cultiva o materialismo, mas com reservas; claro, detesta superstições. Só acredita no que veem seus olhos. Gosta de se gabar de que é “caboclo”, mas na verdade ninguém sabe que sangue tem ele. Entende de astronomia e mecânica, pinta quadrinhos a óleo, com modelos “imaginação”. Não ele que se fosse submeter a copiar qualquer coisa, até mesmo a natureza. Desenha casas com um caminho branco à frente e cisnes nadando em lagos azulíssimos. A mulher há 25 anos que o venera, embora mentalmente o engane com Charles Boyer e Pedro Vargas. E se desforre das insuficiências da vida e do vil quotidiano carioca acompanhando as novelas em série, mês atrás de mês. Aliás ele também as escuta, à noite, e opina severamente.

Como “caboclo”, o meu herói sonha com um Brasil sem judeus nem galegos, um Brasil brasileiro, cheio só de autóctones de tanga e cocar, armados de metralhadora, fazendo uma limpeza nesta terra infeliz.

Há desconfiança de que outrora ele amou Plínio Salgado. Mas o fato é que desde maio de 38 largou tais amores. Interpelado um dia sobre essa história, declarou que detesta “pequenas violências”. Os integralistas deram parte de fracos e só lhe conquistaram o nojo. Fosse com ele, teria liquidado tudo, não se punha com meias medidas. Evidentemente, não é homem de meias medidas. O que o inibe um pouco é certo temor pela polícia, incoerente em pessoa de tal truculência. Põe a culpa na asma; não fosse a asma, a Canalha ia ver.

A Canalha é meio vaga. Pode ser o governo; não, não é o governo. Nem é este ministro, nem aquele conde, nem o general Fulano; ou ser o partido comunista? Nela se inclui, decerto, a alta finança internacional e a alta política. Os polvos, os tubarões, Churchill, Stalin, Attlee e Trumann. Nacionais, não nomeia ninguém que não pesca peixe miúdo. Além disso, estão perigosamente próximos, muito ao alcance da voz.

Abaixo da Canalha, há outra entidade mais ínfima, mais ignara e anônima: A Negrada. Houvesse ele nascido em outro século, tivesse um pouco mais de coragem e saúde, seria comandante de navio negreiro ou capitão do mato. Haveria de beber sangue de negro; beber não, que tinha nojo. Haveria de vomitar sangue de negro. Ai, como os odeia. São a nódoa de uma civilização. O cidadão desta terra não pode manter o seu estado de branco; a Negrada não conhece mais o seu lugar. Ah, se subisse UM HOMEM ao governo, para mandar fuzilar a pretalhada e atirar a carniça para o urubu comer.

Às vezes chega em casa trêmulo, bate a porta com estrépito, põe-se em mangas de camisa e pega da pena para escrever uma carta anônima ao jornal. Explica ao Senhor Diretor UM CASO REVOLTANTE: “As camadas inferiores estão inteiramente sem freio. Ainda hoje, no bonde Praça Onze, vinha um cavalheiro distintíssimo (era ele), lendo placidamente o seu jornal; de súbito, sente-se empurrado por uma negra boçal, carregada com dois moleques malcheirosos, que praticamente o atirou fora do banco, a pretexto de arranjar um lugarzinho. O cavalheiro, chocado e constrangidíssimo, cedeu IRONICAMENTE o seu pedaço de banco e foi pendurar-se ao balaustre. Mas teve pena de ser um gentleman, consciente dos seus deveres para consigo próprio e a Sociedade, senão teria dado o castigo devido àquela atrevidaça. Para onde vai este pobre país, Senhor Diretor?”

Contudo, tais cartas ainda lhe carregam mais a bílis, em vez de descarregá-la. Os diretores, vendidos todos ao judaísmo internacional, jamais as publicam. Ele já disse entretanto que um dia desses desabafa nos ineditoriais. Embora os ladrões cobrem uma fortuna por quaisquer duas linhas nos seus pasquins.

Por falar em dinheiro, poderemos agora entrar no capítulo das suas finanças. É funcionário público, e com os últimos aumentos, passou a perceber 1.500 cruzeiros por mês. Defende-se, porém, de qualquer modo, tem biscates misteriosos, mora num apartamento na rua Riachuelo e comprou um terreno para WEEK-END na estrada Rio-São Paulo. E ainda dá casa e comida a dois filhos malandros. (A filha que teve, expulsou-a de casa, e NEGA-LHE A EXISTÊNCIA. Cerra porém os olhos às visitas secretas que a mulher faz à rapariga. O seu mal é ter o coração muito bom, sempre o diz).

O seu HOBBY são os pombos-correios. Fá-los viajar do apartamento da Riachuelo para a casinha da Rio-São Paulo e da Rio-São Paulo para a Riachuelo. Confia-lhes bilhetinhos que dirige a si próprio, e os quais vai colher pessoalmente no sábado à tarde ou segunda pela manhã, conforme os mensageiros tenham partido da cidade ou do campo. Solta-os pouco antes de tomar o trem, e chegando ao seu destino cronometra o tempo, como se se tratasse de cavalos de corrida. Às vezes, quando vem carregado com as gaiolas dos pombos, nas viagens de ida e volta dos fins de semana, tem encrencas terríveis com os condutores de trem, de ônibus e de bonde. Gaba-se até de já haver levado três choferes ao distrito: dois galegos e um negro. Só que uma vez o delegado, mal informado, prendeu a ambos. A ele e ao motorista. Datará desse dia a sua repugnância por desentendimentos com a polícia?

Dizem que na repartição é bom funcionário, fiel ao livro do ponto, temente dos seus superiores. Chegam a acusá-lo de fazer correr listas para a compra de mimos de aniversário, oferecidos ao chefe da seção. Ele explica que aquilo é um simples gesto de cortesia, de homem para homem.

Em breve estará aposentado, com 35 anos de serviço público. Alimenta grandes esperanças para essa época. Quando houver garantido o futuro dos seus, então mostrará QUEM É. Dizendo isso, corre o olhar em círculo pela roda do café, e os detém, como uma nuvem negra, sobre um dos mais humildes membros da assistência, que se encolhe todo, ameaçado.

Depois dá um aceno breve de cabeça e sai para a fila da manteiga, antes de tomar o bonde que o levará à sua residência.
Rachel de Queiroz (O Cruzeiro - 16/11/1946)

Ameaças à Amazônia vão muito além das queimadas

As ameaças à floresta amazônica vão muito além do fogo e aumentaram depois que as queimadas saíram de cena, em meio ao espanto internacional causado pela omissão ativa do governo de Jair Bolsonaro. O desmatamento continua crescendo a ponto de tornar inviável a meta de reduzi-lo em 80% até 2020, obrigação assumida pelo Brasil nas Conferências do Clima. O governo brasileiro não só não está muito interessado nisso, como passou a trabalhar ativamente para que a livre exploração de terras amazônicas possa ocorrer sem entraves legais ou barreiras de nenhuma espécie.


A Amazônia já é uma terra de ninguém, mesmo com proteção legal existente, que é frágil, carece de recursos, pessoal e fiscalização. Anteontem, o presidente Jair Bolsonaro, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina e o ministro Paulo Guedes, da Economia, por meio do decreto 10.084, revogaram decreto de 17 de setembro de 2009, que estabeleceu o zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar e, em função dele, normas para o financiamento do setor. O zoneamento excluiu a possibilidade de exploração da cultura na Amazônia, no Pantanal e na Bacia do Alto Paraguai.

O governo julga a legislação obsoleta, mas ela foi efetiva para afastar mais um meio de pressão sobre a floresta e, tão importante quanto, criar um selo verde informal para o etanol brasileiro como alternativa bem-sucedida de energia mais limpa e menos agressiva ao ambiente. Graças ao decreto, apenas 144 mil hectares, ou 1,5 % da área total plantada com cana no país, estão na Amazônia.

A penada do governo em uma iniciativa bem-sucedida não resultará na invasão da floresta por vastos canaviais porque boa parte da região é inapta para o cultivo. Mas a ocupação produtiva nas franjas da floresta ocupada por pastagens, por exemplo, empurrará os bois mais para dentro da floresta, uma das linhas de frente do desmatamento contínuo da região. A posição oficial é deplorável do ponto de vista ambiental e visa continuar com o desmonte legal e institucional dos meios de proteção da Amazônia, em nome da liberdade de produção sem freios. É obscurantista e retrógrada, porque há uma grande quantidade de terras disponíveis para isso fora dos biomas protegidos.

A Amazônia tem diante de si uma ameaça maior do que a cana, a do plantio de soja, da qual o Brasil é o maior exportador mundial. Após contar com o beneplácito do governo e do presidente Jair Bolsonaro, a Associação dos Produtores de Soja abriu campanha contra a “moratória da soja”, um acordo feito entre a Abiove (produtores de óleo vegetal) e 13 tradings, entre as maiores do mundo, para que não fossem comprados e comercializados grãos produzidos em áreas desmatadas após 22 de julho de 2008. O estopim para a campanha, que desembocará no Cade contra o suposto cartel, que estaria impondo condições aos fornecedores, parece ter sido a ação dos organizadores da moratória para barrar o avanço do desmatamento a partir da nova fronteira agrícola do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piaui e Bahia) e no norte do Pará.

A moratória da soja tornou-se um caso de sucesso internacional. Na prática, a área com soja no bioma amazônico desde 2006 mais do que quadruplicou de 1,1 milhão para 4,66 milhões de hectares em 2018 (Valor, 7 de novembro), mas dentro de padrões ambientais aceitáveis. A Aprosoja argumenta que têm o direito de desmatar até 20% da propriedade no bioma amazônico e em 65% no Cerrado, e que não podem ser discriminados por isso. A esse argumento fez eco um secretário da Casa Civil, Abelardo Lupion, que disse que era preciso “acabar com essa palhaçada da Abiove”.

O direito ao desmate precisa ser qualificado. 12% da soja cultivada na Amazônia e no Cerrado, numa área de 2,6 milhões de hectares, ocorre em imóveis sem Cadastro Ambiental Rural (Luís Paulo Guedes e Toby Gardner, Valor, 31 de outubro). Por pressão da bancada ruralista, foi aprovada uma MP que acabou com o prazo legal para esse cadastramento.

Destinar dinheiro do Fundo da Amazônia para regularizar terras de grileiros, abrir as áreas indígenas para mineração e outras atividades, restringir a ação do Ibama contra madeireiros ilegais são ações que se sucedem sem parar, fruto de planejada e insistente intenção de pôr fim a restrições legais à exploração privada sem limites dos recursos naturais do país. A soja, porém, é o carro chefe das exportações brasileiras de commodities. O prejuízo pode ser é severo.

Último capítulo sem surpresas

Não foi uma boa para mim lá embaixo, pensava eu quando o carro alcançava a Rodovia Reginaldo Rossi, saindo de Porto de Galinhas para Recife. O trabalho duro transcorreu bem. Mas as notícias pareciam me espancar. A mais importante delas, a decisão do Supremo de acabar com a prisão para condenados em segunda instância.

Já escrevi muito sobre isso. Sabia que esse seria o resultado. Achei até que Toffoli se esforçou no jogo de cena para buscar uma atenuante. Mas era a pura e simples queda da prisão em segunda instância que estava em jogo. Com essa decisão e também com o bloqueio de investigações sobre atividades financeiras, demos um passo atrás, depois de tanta esperança popular no combate à corrupção.

Que sentido tem argumentar de novo? Agora é esperar as consequências, não apenas na inquietação popular, mas também na vida política em geral. Não voltamos à estaca zero. Mas foi uma guinada que interessa àqueles que ainda esperam enriquecer com dinheiro público.


Como se não bastasse, a grande pancada, Bolsonaro atingiu três vezes minhas convicções, isso num prazo de 24 horas. No campo da cultura, promoveu um diretor de teatro que ofendeu Fernanda Montenegro. O governo não reconhece os grandes talento nacionais porque está envenenado pela luta ideológica.

Bolsonaro decidiu ainda que vai mandar um projeto de mineração nas terras indígenas. Compreendo que os militares veem uma vantagem estratégica na exploração de minério na Amazônia. Tenho uma visão estratégica diferente; além do mais, venho de Minas. Aprendemos a dizer: olhem bem as montanhas. Não só no sentido de cuidar delas. Mas de olhar mesmo porque elas desapareceram.

Segundo a Constituição, será preciso uma lei complementar para autorizar esse passo. Romero Jucá tentou muito. E não conseguiu ao longo dos anos em que tive a oportunidade, entre outros, de combater essa ideia.

Não contente, Bolsonaro revogou um decreto que proibia o avanço da plantação de cana-de-açúcar no Pantanal. Um dos grandes defensores dessa ideia foi o governador André Puccinelli, que ameaçou inclusive Carlos Minc, na época ministro do Meio Ambiente. Puccinelli foi preso por corrupção e deixou a cena.

Romero Jucá não foi preso nem deixou totalmente a cena política. Perdeu a eleição e foi várias vezes citado na Lava-Jato. De qualquer forma, a luta desses dois políticos do PMDB é hoje recompensada pela visão de Bolsonaro. Não se trata, como se vê, de um problema partidário.

São duas grandes questões que precisam ser respondidas com argumentos adequados. Quero dizer: não basta ser contra a mineração nas terras indígenas, mas é necessário também apresentar uma visão estratégica para a Amazônia que seja mais interessante e moderna do que a velha expectativa de enriquecer com o minério, quando outras fontes de riqueza da produção do conhecimento e a indústria do turismo devem ser levadas em conta.

O Pantanal já teve canaviais no século XIX. Havia indústrias e quase 200 quilômetros de plantação. O Pantanal não acabou.

Acontece que estamos no século XXI, e o Pantanal não é mais o mesmo. Tornou-se mais vulnerável com os grandes incêndios, explorou suas belezas naturais e sua fauna, tornando-se um polo turístico nacional. Assim como a mineração nas terras indígenas, o crescimento de canaviais no Pantanal não aparece hoje num contexto de falta de alternativas econômicas.

Pelo que conheço do Congresso, não foi até hoje, nem será simples agora, aprovar a mineração nas terras indígenas. É bandeira de Bolsonaro? É. Mas significa de fato a aspiração da maioria dos brasileiros ou a bandeira ficou meio dobrada diante de outras mais sedutoras eleitoralmente?

Combater a proposta de Bolsonaro não significa nem combater as ideias da maioria. É combater uma visão minoritária sobre a Amazônia.

Numa semana em que se apanha na Justiça, na cultura, nas propostas antiecológicas de Bolsonaro, felizmente, como todos, segui trabalhando. Idas e vindas na Rodovia Reginaldo Rossi. Ele tentou ser vereador e perdeu. As derrotas nem sempre derrubam. Costumam dar um samba-canção ou um bolero.
Fernando Gabeira

Pobreza na aposentadoria: como os pensionistas alemães se viram

Sentar num café e saborear um pedaço de torta é algo de que Hans Rudolf W. tem saudades, em sua vida de aposentado. Ele jamais imaginara que uma diversão tão inocente se tornaria um luxo fora de seu alcance financeiro.

Agora, o senhor de 77 anos passa a maior parte do tempo no apartamento que partilha com a esposa, na cidade renana de Bonn. Com seus sofás confortáveis e cortinas de renda, a residência de quarto e sala parece típica de um aposentado na Alemanha. Entretanto, o orçamento do casal é apertado, só dando para cobrir o básico, como comida, gastos acessórios e seguros.

"Desde que a minha mulher teve uma cirurgia no cérebro, ela não come muito. E eu também não como muito", comentou à DW. "Desse jeito, então, a gente consegue se virar."


Hans Rudolf W. começou a trabalhar assim que concluiu o curso médio, primeiro num banco, depois como taxista e zelador. Quando se aposentou, sexagenário, contudo, tudo o que lhe sobrou foi uma pensão mensal de 335 euros (1.536,89 reais), menos do que um terço do limite de pobreza no país.

Ele imediatamente requereu assistência do governo para prover suas necessidades básicas. Agora o Estado lhe paga cerca de 300 euros mensais e assume a metade do aluguel, e a previdência social da esposa cobre a outra metade.

Casos como este estão se tornando cada vez mais comuns na Alemanha, onde quase 17% dos aposentados correm o risco de cair na pobreza, e metade deles recorre à assistência governamental, segundo o Instituto Alemão de Pesquisa Econômica (DIW).

E os números só seguirão crescendo. Como no país as aposentadorias são diretamente subordinadas aos salários recebidos, quem sofrerá mais são os trabalhadores de meio expediente e os pequenos assalariados.

Por isso, neste domingo, os partidos da coalizão governamental se reúnem para finalizar um plano, a entrar em vigor em 2021, capaz de reduzir a carga de muitos cidadãos de terceira idade. O governo alemão concorda em implementar um nível básico de pensão para os baixos-assalariados que contribuíram para o sistema de aposentadoria por pelo menos 35 anos.

No entanto, as legendas políticas ainda estão debatendo um componente básico: a União Democrata Cristã (CDU), da chanceler federal Angela Merkel, quer verificar se os aposentados que se cadastrarem para a ajuda realmente precisam dela, ou se têm economias ou um parceiro financeiramente estável, por exemplo. O Partido Social-Democrata (SPD), minoritário na coalizão, esboçou originalmente o plano, e se opõe a essa sindicância.

Hans Rudolf W. deseja que o esquema de pensão básica seja aprovado, com ou sem a verificação. Ele já tem mesmo que provar que precisa da verba extra do governo, apresentando suas economias, seguros e confirmação de que não mais trabalha.

Para o pensionista, o mais importante é obter um incremento de renda suficiente para substituir a previdência de que depende, no momento. "Não fico constrangido de receber assistência do governo. No entanto, há sempre esse gosto meio amargo quando você diz que está recebendo previdência social."

Ele se considera afortunado, apesar das circunstâncias, pois, ao contrário de milhões de outros aposentados da Alemanha, não tem que recorrer ao banco alimentar. Às vezes, quando aparecem despesas extras que não pode cobrir, ele recorre a organizações assistenciais da comunidade local, que suprem necessidades como novas roupas ou colchões.

O mais importante é que não se sente isolado: ele tem filhos, netos e um bisneto que o visitam com frequência, conta, apontando para as prateleiras decoradas com fotos de parentes sorridentes. Ainda assim, seria um grande alívio para ele se qualificar para o esquema de pensão básica, tão logo seja introduzido, em 2021. "A primeira coisa que eu faria, é levar minha mulher à cidade. Faz tempo que a gente não vai lá."
Deutsche Welle

Paisagem brasileira

Casa à beira-mar, Benedito Calixto (Brasil, 1853 – 1927)

Ultrapolarização pode afugentar os investimentos

Lula chamou Bolsonaro de miliciano. E foi chamado pelo capitão de canalha. Se o nível rasteiro serve para alguma coisa é para demonstrar que o cenário político, antes apenas medíocre, tornou-se execrável. Adicionada a outras fatalidades políticas, a ultrapolarização amedronta investidores estrangeiros que já olhavam para o Brasil com um pé atrás.

A despeito do esforço de algumas autoridades de Brasília, entre elas o próprio Jair Bolsonaro, para transformar frustração em sucesso, as duas rodadas de leilões de petróleo realizadas na semana passada revelaram-se frustrantes. Inaugrou-se um debate sobre o modelo dos leilões. As regras, de fato, afugentaram as grandes petroleiras internacionais. Mas elas talvez não expliquem tudo.

Arrisca-se a peder a riqueza da discussão quem não levar em conta os efeitos da instabilidade política sobre o ânimo do capital. No momento, o Brasil é presidido por um ex-deputado que não dispõe de uma relação azeitada com o Congresso. O presidente briga com a maior rede de TV do país. Ele despreza o meio ambiente. Tem três filhos encrenqueiros. E briga com a vizinha Argentina, terceira maior parceira comercial do Brasil.

Submetido a esse cenário tóxico, o investidor estrangeiro observa os primeiros movimentos de Lula fora da cadeia, olha ao redor e constata o seguinte: Os discursos políticos tornaram-se radioativos. As ruas voltaram a balbuciar críticas à Suprema Corte e ao Congresso. Súbito, o investidor conclui: É melhor aplicar dinheiro no inferno do que no Brasil.

Justiça gelatinosa

Esgotadas as instâncias ordinárias com a condenação à pena privativa de liberdade não substituída, tem-se uma declaração, com considerável força, de que o réu é culpado e a sua prisão necessária. Nesse estágio, é compatível com a presunção de não culpabilidade determinar o cumprimento das penas, ainda que pendentes recursos
Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Branco, “Curso de Direito Constitucional” (R$ 230), adotado no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), do qual Gilmar é sócio

Um país ainda mais injusto

Lula está livre. E o presidente Jair Bolsonaro, que, para estranhamento de muitos, reagiu inicialmente com a mudez, deve ter comemorado no silêncio.

Nas contas do capitão, que só chegou onde chegou vitaminado pela rejeição do eleitor à trinca Lula-PT-corrupção, os demônios da esquerda apontados à distância, frequentadores do regime totalitário de Nicolás Maduro, das manifestações chilenas ou do impalpável Foro de São Paulo, agora existem. E se materializam no adversário perfeito, que não pode ser candidato.

Solto, Lula continua culpado e condenado em segunda instância, portanto, impedido de disputar eleições pela Lei da Ficha Limpa. Tem mais uma condenação pendente e é réu em outros cinco processos. Ou seja, livrou-se dos monstros da cadeia, mas não da capivara.

Mas no país em que o conchavo entre poderosos sempre prevaleceu, não é difícil crer que as ocorrências da semana passada façam parte de uma meticulosa armação, com ganhos para Bolsonaro e Lula, ambos somando para si enquanto o país se lasca. Um enredo que contemplaria o impedimento de prisão em segunda instância para soltar Lula e o futuro julgamento da suspeição de Sérgio Moro na condenação do ex.

Lula e seus advogados preferiam apostar as fichas na suspeição e consequente anulação do processo, mas foram alertados do risco. Ainda que o vazamento de gravações entre procuradores da Lava-Jato e Moro publicados pelo Intercept possa influenciar os ministros da Corte, a forma ilegal da obtenção dos áudios e a possibilidade de que tenham sido manipulados criam desconfianças.

Nada mais lógico então que concordassem com as vantagens do impedimento da condenação na segunda instância, uma vitória perene que fará Lula nunca mais voltar para a cadeia mesmo se vierem novas condenações. Com 74 anos e apenas um dos seis processos já apreciado pelo STJ, terceira das quatro Cortes em que agora um réu terá de ser julgado antes de ser preso, o ex obteve na quinta-feira garantia de liberdade. Com o voto de Minerva do presidente do STF, Dias Toffoli. 

O mesmo Toffoli que já acumulara créditos com Bolsonaro ao aliviar a barra do filho 01, senador Flávio, suspendendo as investigações da rachadinha e proibindo o uso de informações do antigo Coaf sem autorização judicial.

Para Bolsonaro há outras contrapartidas, preciosas para a campanha de 2022, já em curso: é melhor ter Lula livre e culpado do que Lula inocente, libertado por má-conduta de seu ministro da Justiça no processo de condenação do ex. 

Com o “eles” que até pouco tempo era o “nós” fora da cadeia mas condenado, a corda que separa os extremos bolsonaristas e lulistas tende a ter a tensão aumentada, algo já deplorável hoje, e com chances de piorar. Com mais danos para o país, aprisionado na política bipolar e na imbecilidade do digladio nas redes sociais.

Lula está livre, não vai voltar nunca mais para a prisão. Bolsonaro agora tem um opositor que canalizará o ódio contra ele, mas não tem adversário para enfrentá-lo nas urnas. Um arranjo e tanto.

Enquanto isso, o país que mantém nas suas cadeias mais de 350 mil presos provisórios, que nem julgados foram mas continuam atrás das grades, moldou um entendimento constitucional de prisão só depois da condenação na 4ª instância com o intuito único de soltar Lula. Já começa a ver a abertura da porteira para outros condenados do primeiro escalão e com ela o aprofundamento da desigualdade, com o cruel descumprimento do principio maior da Constituição, esse sim pétreo, de que todos são iguais perante a lei.

Mary Zaidan

A linguagem da democracia

Os palavrões e grosserias com que o presidente da República ofende a população desde a sua posse empalidecem se comparados à agressividade do deputado Eduardo Bolsonaro ameaçando reeditar o AI-5 em caso de “radicalização da esquerda”. Comparável só os elogios recorrentes do próprio presidente ao coronel Brilhante Ustra. Trata-se, em ambos os casos, do elogio de uma ditadura que a democracia proscreveu. Alguém ainda duvida da empatia de pai e filho com o regime autoritário?

Ambos usam palavras como armas com que ferem a dignidade das vítimas do AI-5 e da tortura e a de todos os democratas, não só os que viveram aqueles tempos tenebrosos, também os que hoje não renunciam a um futuro com liberdade.


A ameaça é a expressão máxima de uma escalada de brutalidade verbal que vem se acumulando no debate político, sobretudo no campo virtual, transformado em praça de guerra. Envenena o espaço público, contamina a vida privada, divide famílias, separa amigos.

É difícil dizer quando e porque isso começou. É provável que a impunidade garantida na internet pelo anonimato tenha facilitado essa deriva. Valentões são mais valentes quando não mostram a cara, usam pseudônimos, programam robôs para distribuir insultos.

A violência, dando o tom da convivência, pavimenta o caminho da ditadura. Interessa aos autoritários. Aumentar a temperatura dos conflitos é uma estratégia diabólica. Último ato, nomear para a Secretaria de Cultura o cidadão cuja qualificação é ter insultado Fernanda Montenegro.

A resposta democrática de quem não é boçal e recusa o embrutecimento é defender e ampliar os espaços de civilidade. A violência verbal, como as ameaças, é o prenúncio da violência física. As mulheres que apanham que o digam.

Implícita na civilidade está uma ética que começa em cada um e ganha substância na relação com os outros: família, amizades, amores, redes de pertencimento. A civilidade não é apenas uma virtude privada. Hoje é também um ato de resistência. A civilidade é a linguagem da democracia.
Rosiska Darcy de Oliveira